Lei que cria licenciamento estadual e facilita a atividade garimpeira no estado foi suspensa por decisão cautelar. Parecer jurídico do Cimi defende que medida seja declarada inconstitucional
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, em fevereiro, a Lei estadual 1.453/2021, de Roraima, que regulamentava o licenciamento ambiental do garimpo no estado e liberava o uso de mercúrio na atividade. A decisão cautelar foi tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, e ainda precisa ser analisada pelo plenário da Suprema Corte.
Em parecer técnico (acesse aqui), a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Norte 1 defende que a lei seja declarada inconstitucional, por violar direitos dos povos indígenas e disposições da Constituição Federal, da legislação nacional e de tratados internacionais que o Brasil integra.
A suspensão da Lei 1.453/2021 foi determinada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6672, de autoria do partido Rede Sustentabilidade. O projeto que resultou na lei agora suspensa foi proposto pelo governo do estado de Roraima, aprovado pela Assembleia Legislativa estadual e sancionado no dia 8 de fevereiro.
Num estado em que as invasões a terras indígenas, o desmatamento de áreas protegidas e até a disseminação do coronavírus entre os povos originários em meio à pandemia estão diretamente ligados à prática do garimpo ilegal, o projeto vinha enfrentando a oposição de diversas entidades da sociedade civil e de organizações indígenas desde sua tramitação.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e os Ministérios Públicos Estadual (MPE) e Federal (MPF), assim como o Cimi, manifestaram-se publicamente contra a medida, considerada inconstitucional.
Além de liberar a utilização do mercúrio no garimpo, a Lei previa a emissão de Licenças de Operação Diretas pelo órgão ambiental estadual, dispensando os procedimentos de licenciamento já previstos no país, como a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA).
Na ADI, a Rede argumenta que a lei era inconstitucional por diversos motivos, entre os quais a afronta ao “direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” e à divisão entre os entes federados.
A ação, que pede que a Lei 1.453 seja declarada inconstitucional pelo STF, destaca que os estados podem estabelecer legislações estaduais mais protetivas do que a existente em nível nacional, mas que “as autoridades roraimenses parecem ter feito exatamente o oposto”.
Esta análise também é feita pelo parecer jurídico do Cimi, o qual destaca que a Constituição Federal destinou à União a competência para “estabelecer as áreas e condições para o exercício da garimpagem”.
Em sua decisão, o ministro Alexandre de Moraes concordou com o argumento. O relator destacou que a Política Nacional do Meio Ambiente conferiu competência ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) “para o estabelecimento de normas e critérios para o licenciamento de atividades potencialmente poluidoras”, como o garimpo.
O ministro aponta, ainda, que a expedição de licenças ambientais específicas para cada fase dos empreendimentos e atividades com potencial de poluição “representa uma cautela necessária” para a proteção do meio ambiente.
A Lei Estadual 1.453 “não somente entra em contraposição com as obrigações internacionais que o Brasil contraiu em 2018, mas também representa uma sentença de morte para povos indígenas em Roraima”
Consequências para os povos indígenas
Muitos dos argumentos levados pela Rede Sustentabilidade ao STF e acatados pelo ministro relator foram também abordados no Parecer Jurídico produzido pela assessoria jurídica do Cimi Regional Norte 1, que salienta os riscos e as violações que a lei suspensa apresenta para os povos indígenas de Roraima.
Nos últimos anos, a presença de garimpeiros ilegais em terras indígenas do estado vem sendo constantemente denunciada pelos povos da região. O Conselho Indígena de Roraima (CIR), que também se manifestou contra a aprovação da Lei 1.453/2021, tem denunciado a presença de garimpos ilegais no interior da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol.
Na TI Yanomami, as lideranças dos povos Yanomami e Ye’kwana vem denunciando a presença de 20 mil garimpeiros ilegais no território, em plena pandemia de covid-19. As lideranças cobram a retirada dos invasores, que além de ocasionarem conflitos e a devastação do território, atuam como vetores do coronavírus para a população indígena. A situação motivou a criação da campanha “Fora Garimpo, Fora Covid”.
Para o Ministério Público Federal (MPF), que ingressou com uma ação civil pública no ano passado cobrando um plano emergencial de combate à covid-19 entre os Yanomami e e Ye’kwana, existe o risco de “perpetrar-se verdadeiro genocídio de populações na TI Yanomami”.
A situação também foi abordada numa medida cautelar emitida em julho de 2020 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que analisou a situação a pedido da Hutukara Associação Yanomami e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). A CIDH solicitou ao Brasil que adote as medidas necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade dos povos Yanomami e Ye’kwana, que estão “em situação grave e urgente”.
Em 2019, um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) entre a população Yanomami identificou a presença de mercúrio em 56% das mulheres e crianças da região de Maturacá, no Amazonas, em quantidades superiores à tolerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Segundo a Fiocruz, a contaminação por mercúrio, utilizado para separar o ouro dos demais sedimentos colhidos durante o garimpo, pode provocar alterações diretas no sistema nervoso central, causando problemas cognitivos e motores, perda de visão e doenças cardíacas, entre outras debilidades. Crianças são especialmente vulneráveis.
Em 2018, o Brasil ratificou a Convenção de Minamata, por meio da qual se comprometeu a diminuir e eliminar a utilização do mercúrio na exploração de ouro e em outras atividades.
Para a assessoria jurídica do Cimi Norte 1, a Lei Estadual 1.453 “não somente entra em contraposição com as obrigações internacionais que o Brasil contraiu em 2018, mas também representa uma sentença de morte para povos indígenas em Roraima”.
Embora a medida não autorize o garimpo diretamente nas terras indígenas, o parecer jurídico salienta que “necessariamente estes territórios se verão impactados” quando esta atividade é praticada na Amazônia Legal. “É impossível desvincular esta dos povos indígenas, pois estes têm sido os maiores prejudicados desta atividade no Brasil”, afirma o parecer.
Por isso, a assessoria jurídica do Cimi Norte 1 avalia também que a Lei 1.453 também violou o direito à consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas, de maneira que deve ser declarada inconstitucional.
Em nota, o CIR garantiu que “os povos indígenas continuarão vigilantes e mobilizados, aguardando que o plenário da Suprema Corte declare a inconstitucionalidade da Lei Estadual 1.453/2021 por considerar uma grave violação e ameaça à vida da população indígena”.
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Devastação causada pelo garimpo na TI Yanomami, em Roraima, registrada em maio de 2020. Estima-se a presença de 20 mil garimpeiros ilegais na Terra Indígena. Foto: Chico Batata/Greenpeace