O ministro que veio que nada mude

Três dias depois de indicado e em meio à maior crise sanitária da história, Queiroga não tem data para assumir; e não quer mudar nem “política” que produz a tragédia, nem a equipe militarizada que herdará.. E mais: a geopolítica de Lula por vacinas

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

A MESMA CARTILHA

Marcelo Queiroga ainda nem assumiu o comando do Ministério da Saúde, mas já se sucedem os episódios que demonstram que sua gestão será do tipo algo deve mudar para que tudo continue como está. Ontem, ao lado de Eduardo Pazuello, ouviu o general repetir à imprensa o que o próprio presidente tinha dito quando anunciou sua escolha: que a nomeação do médico significa apenas a continuidade do trabalho do militar da ativa. Segundo Pazuello, Queiroga “reza na mesma cartilha”. Queiroga parece estar de acordo: “A política pública do governo, não só do Ministério da Saúde, é a política do governo federal, do presidente da República eleito pelos brasileiros.”

Alinhado a Jair Bolsonaro e sem poder criticar o general, o futuro ministro já escolheu seu bode expiatório para o caos sanitário: a população. “Não adianta o governo recomendar uso de máscara, que é simples, e as pessoas não terem condições de aderir. O governo recomenda o fim de aglomerações fúteis e as pessoas ficam fazendo festa. Não adianta esperar que o governo resolva tudo”, criticou, deixando de lado os fatos exemplos de aglomerações sem máscara dados pelo governo federal. 

À colunista Monica Bergamo, o médico sem querer demonstrou a que ponto chegamos: caberia a ele “convencer o presidente” sobre fatos há muito superados. “Ele está sensível para a questão das máscaras“, exemplificou. No meio da pandemia, é esse o trabalho do ministro da saúde do país com o maior número de mortes do mundo… 

Mas o bolsonarismo não admite nem mesmo um simulacro de mudança no projeto de livre circulação de vírus e pessoas que é a marca deste governo. “[Bolsonaro] Já colocou outros e errou feio. [Augusto] Aras, Kassio [Nunes Marques] e agora mais um totalmente avesso às ideias do governo?”. O post deu o tom da recepção dos apoiadores de Jair Bolsonaro nos grupos de WhatsApp, segundo a colunista Malu Gaspar.

Esse equilíbrio impossível entre ciência e bolsonarismo tem tudo para ser um belo faz de conta. Queiroga afirmou ontem que pretende aplacar os sucessivos recordes de mortes a partir de um protocolo nacional de distanciamento social que leve em conta… a economia. O pedido para que o Ministério da Saúde estabeleça parâmetros gerais foi feito há semanas por secretários estaduais e, depois, foi reforçado por governadores que agora pedem uma reunião com o novo ministro para debater o assunto. Ontem mesmo, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), reforçou: sem restrições, país terá quatro mil mortes. Mas, aparentemente, o lockdown estará fora de cogitação no cardápio do futuro ministro – o que só torna mais difícil sua adoção, apesar da farta evidência indicando que a medida funciona bem para frear a epidemia. 

De acordo com O Globoa outra aposta de Marcelo Queiroga será a melhora dos serviços hospitalares da rede pública, o que passaria por “mais oferta de telemedicina para diagnóstico, atenção à distribuição de oxigênio e ventiladores e unificação de protocolos para tratamento de urgência”. Ou seja, atenção sem prevenção – o que diversos gestores já admitiram que não está adiantando a essa altura do campeonato. 

O que não quer dizer que não existe muito a ser feito. O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) calcula que os estoques públicos de medicamentos para intubação durem só mais 20 dias – e pede que o Ministério da Saúde garanta com a indústria a continuidade do fornecimento. As empresas, por sua vez, dizem que não vão dar conta no curto prazo. Mesmo com essa bomba nas mãos, o governo federal ainda não proibiu a exportação dos remédios. Queiroga assumirá informado da situação. 

Aliás, ainda não se sabe quando assumirá. O Planalto primeiro divulgou que a posse seria hoje, depois jogou para semana quevem, mas sem data definida. Enquanto isso, é possível que Marcelo Queiroga  ande por aí fazendo as vezes de macaquinho de realejo de Pazuello.

Segundo o Valor, crescem pressões chegando para que o novo ministro possa escolher a sua equipe. A insatisfação parte do centrão, obviamente, mas também do Supremo e do TCU. Eles querem a desocupação militar do Ministério da Saúde. Queiroga, contudo, não está se ajudando. Questionado se terá autonomia, disse que fará “ajustes no momento adequado” como se tivesse todo o tempo do mundo pela frente.

Não tem. O Senado aprovou ontem um requerimento para que ele apresente ao Legislativo os planos do governo para enfrentamento à pandemia

ACIMA DE DUAS MIL

Pela primeira vez, a média móvel de mortes por covid-19 no país ficou acima de duas mil. Com o registro de mais 2.736 óbitos ontem, ela chegou a 2.031, o que significa 85 vidas perdidas a cada hora. Mesmo tendo só 3% dos habitantes do planeta, ontem o Brasil foi responsável por quase 30% das mortes registradas no mundo todo.

No longo “platô” que vivemos no ano passado, a média de mortes diárias ficou ao redor de mil durante quase três meses, depois voltou a cair. A história em 2021, contudo, é outra: voltamos a ter mil óbitos por dia em meados de janeiro e, em vez de este (alto) número se manter estável, ele logo começou a crescer alucinadamente, dobrando em dois meses. Na região Sul, os três estados bateram recordes de mortes em março, mesmo antes de o mês acabar. E o país inteiro segue observando taxas alarmantes de ocupação hospitalar.

Em São Paulo,67 dos 105 municípios que têm UTIs para covid-19 já esgotaram completamente sua capacidade. O governo do estado prevê que todas os leitos de tratamento intensivo do estado estejam lotados a partir de hoje. Mas João Doria (PSDB), que tanto gosta de exibir uma imagem oposta à do presidente Bolsonaro na pandemia, desistiu de anunciar novas medidas restritivas. De acordo com o Centro de Contingência, as medidas atuais têm sido suficientes para aumentar a taxa isolamento… que, no entanto, segue abaixo da meta de 50%. No país, o índice de isolamento está em 34%.

Em um ano de pandemia, a doença já matou mais do que a Aids em quatro décadas: foram mais de 285 mil mortes pela covid-19, contra 281 mil causadas pelo HIV desde os anos 1980.

FUNCIONANDO… MAL

Eduardo Pazuello disse que está entregando ao sucessor um Ministério da Saúde “organizado, funcionando e com tudo pronto”.  Mas eis a realidade atravessando mais uma vez a marcha militar do ministro.  

Um documento do gabinete da presidência da Anvisa obtido pela Folha aponta que o Ministério da Saúde forneceu máscaras impróprias a profissionais que atuam no atendimento aos doentes da covid-19 em hospitais. Essa distribuição aconteceu na gestão do general, entre julho e dezembro do ano passado, a despeito das reclamações e até da recusa de alguns estados em usar os equipamentos. Essas manifestações chegaram à Anvisa, que avisou a pasta. O que fez o ministério? Não só se recusou a recolher os produtos e a substituí-los, como enviou aos hospitais mais máscaras não indicadas para uso hospitalar.

Detalhe: a empresa que forneceu parte dessas máscaras tem como representante no Brasil um executivo que atua no mercado… de relógios de luxo suíços. O caso está sendo investigado em um inquérito civil pelo MPF desde o dia 3 de fevereiro.

PORTA FECHADA

E o Tribunal de Contas da União lançou luz sobre o arranjo de saúde paralelo dos militares e tenta ao menos constranger Ministério da Defesa, Exército, Aeronáutica e Marinha a pararem de segurar leitos durante a pandemia. O ponto de partida do TCU foi a existência de leitos ociosos em uma unidade militar em Manaus enquanto a rede pública local tinha colapsado. Pacientes tiveram que ser transferidos para outros estados, mas os leitos destinados a militares permaneceram intocados. O ministro do tribunal Benjamin Zymler, relator do processo, determinou que o Ministério da Defesa e as Forças Armadas informem a disponibilização diária de leitos de enfermaria e UTI, em cada unidade de saúde militar, destinados a pacientes com covid-19, além da taxa de ocupação. As unidades de saúde militares custaram R$ 2 bilhões aos cofres públicos no ano passado. 

PODE TUDO

O Ministério da Saúde perguntou ao TCU se pode mesmo aplicar as regras mais flexíveis para compra de vacinas, aprovadas recentemente em duas medidas provisórias convertidas em lei. A resposta foi clara: “Para comprar a vacina o governo pode fazer tudo o que estiver ao seu alcance. Que não sejam usados argumentos ou pretextos burocráticos para se evitar ou retardar uma decisão como essa”, disse Bruno Dantas, ministro do órgão. Só falta assinar os contratos – segundo o quase ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, os acordos com a Pfizer e a Janssen foram finalizados, mas, além da palavra dele, não há notícias muito concretas sobre isso. De todo modo, as 138 milhões de doses ainda devem demorar a chegar.

E a Fiocruz anunciou que vai começar a produzir a vacina do zero a partir de maio, quando enfim deixará de depender da importação do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA). As adaptações na fábrica onde o processo será realizado estão quase prontas e, em abril, a Anvisa deve certificar as condições de funcionamento e dar sinal verde. 

Enquanto isso, ontem a instituição entregou o primeiro lote de vacinas produzidas lá a partir da matéria-prima importada. Foram 500 mil doses, e outras 580 mil devem ser entregues até amanhã. Segundo Maurício Zuma, diretor da Bio-Manguinhos, unidade que fabrica as vacinas, a expectativa é entregar seis milhões de doses por semana

Em tempo: Paulo Guedes disse à CNN que a compra de vacinas está atrasada desde abril do ano passado, quando Luiz Henrique Mandetta comandava a Saúde. O ex-ministro reagiu, chamando-o de desonesto e mentiroso

EM MOVIMENTO

Adversário mais forte de Jair Bolsonaro, o ex-presidente Lula falou ontem com a CNN dos Estados Unidos. Elogiou Joe Biden e pediu para o governo do país avaliar o envio de sobras de vacina para o Brasil ou outras nações “ainda mais pobres” (não que o Brasil seja exatamente pobre…). Ele sugeriu que Biden convoque uma reunião do G-20 para discutir a questão: “É importante chamar os principais líderes mundiais e colocar em volta da mesa uma só coisa, uma questão: vacina, vacina e vacina”. 

Esse não foi o primeiro movimento de Lula para tentar destravar a vinda de imunizantes para o Brasil. A colunista do Globo Bela Megale escreveu na semana passada que essa atuação começou há tempos. Três meses atrás, o líder foi convidado por Kirill Dmitriev, diretor do Fundo de Investimento Direto Russo, para conversar sobre a Sputnik V. Três ex-ministros da Saúde dos governos PT (José Gomes Temporão, Alexandre Padilha e Arthur Chioro) participaram da videoconferência. Segundo Padilha, a reunião “abriu a relação do fundo russo com o Consórcio do Nordeste” – que, por sua vez, anunciou a compra de 37 milhões de doses do imunizante ontem.

E quando a China atrasou o envio de matéria-prima para a produção de vacinas no Brasil, em janeiro, Lula e Dilma Rousseff mandaram uma carta diplomática para o presidente Xi Jinping: “Consideramos oportuna essa mensagem, como forma de manifestar a nossa certeza de que a antiga e sólida amizade entre os nossos povos não será abalada pelo negacionismo, pela incivilidade e pelas grosserias proferidas pelo presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e seu governo. A amizade e a parceria entre a China e o Brasil são inabaláveis, porque os governos passam, mas os laços que unem os povos são permanentes”. E sinalizaram, delicadamente, a necessidade de que o envio de insumos fosse destravado: “Em nome desta grande amizade que brilha em qualquer circunstância e que soubemos construir entre esses nossos dois países e nossos povos, não faltará ao Brasil insumos indispensáveis para dar continuidade à recém-iniciada produção de vacinas que salvem a vida do povo brasileiro”.

Voltando aos Estados Unidos: tem muita gente de olho nas 30 milhões de doses do imunizante da AstraZeneca que estão encalhadas no país – a FDA, agência reguladora de lá, está esperando o fim do ensaio com voluntários americanos para avaliá-lo e autorizar o uso do produto, o que deve acontecer em abril. Biden disse mais de uma vez que não pretende doar nada antes de ver sua população toda coberta. Mas eles já têm muito mais doses do que precisam, e a própria AstraZeneca pediu ao governo que considere realizar as doações. Esta semana, o presidente disse que está conversando com  “diversos países” sobre o assunto e vai anunciar alguma decisão “muito em breve”. 

MORTE SUSPEITA

Morreu ontem um presidente ainda mais negacionista do que Jair Bolsonaro: John Magufuli, da Tanzânia. Ele não aparecia em público desde o dia 27 de fevereiro e o rumor geral era o de que estaria com covid-19 – mas as autoridades falam em problemas cardíacos. 

Ninguém sabe a extensão da pandemia na Tanzânia, porque o governo parou de divulgar casos e mortes em abril do ano passado. Além de se opor ao uso de máscaras, rejeitar medidas de distanciamento social e defender tratamentos caseiros, Magufuli interrompeu a testagem e dizia que a oração protegia as pessoas contra o vírus. Em junho, ele declarou que o país estava livre da covid-19 graças ao poder das orações. Depois, decidiu não comprar imunizantes, argumentando que as vacinas não funcionam e são perigosas, como “parte de uma conspiração do Ocidente para roubar a riqueza do continente”. Em janeiro e fevereiro, porém, cresceram muito as mortes atribuídas a pneumonias. Os ventos estavam começando a mudar. Pouco antes de desaparecer, o presidente chegou a pedir que as pessoas usassem máscaras e seguissem os conselhos de especialistas.

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