Vacinas para quilombolas são desviadas no sudeste do Piauí

Defensoria Pública aponta que 1.400 doses, que deveriam ir para comunidades no Território Quilombola Lagoas, não chegaram à população, prioritária no programa de imunização; pesquisador da Univasf vê negligência da Secretaria de Saúde

Por Luiza Sansão, em De Olho nos Ruralistas

Pelo menos 1.400 doses de vacina contra a Covid-19, que deveriam ter sido destinadas a todo o Território Quilombola Lagoas, foram desviadas, de acordo com levantamento da Comissão para Acompanhamento de Demandas Quilombolas da Defensoria Pública do Estado do Piauí, que comunicou oficialmente o fato à Secretaria de Saúde do Estado no dia 07.

A Associação Territorial do Quilombo Lagoas e docentes da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) encaminharam denúncia ao Ministério Público Federal e à Defensoria Pública do Estado, na terça-feira (13), solicitando a apuração de irregularidades no processo, detectadas a partir da reconstituição cronológica da campanha de vacinação no território. Há suspeitas de que pessoas que não vivem no território foram vacinadas.

A Secretaria de Saúde do Estado do Piauí (Sesapi) informou que iria resolver o problema encaminhando as doses para as comunidades que ainda não foram imunizadas.

A campanha de vacinação, que começou em 31 de março, deveria acontecer nos doze núcleos do Quilombo Lagoas, que reúnem 118 comunidades, localizadas em seis municípios do sudeste do Piauí. Foram, então, encaminhadas 3.962 doses da vacina AstraZeneca à 12ª Coordenação Regional, com sede em São Raimundo Nonato. A vacinação acabou ocorrendo somente no município, enquanto as comunidades situadas nos outros municípios foram excluídas do processo.

Ao tomar conhecimento do fato, o professor Bernardo Curvelano Freire, do Colegiado de Antropologia da Univasf, questionou o coordenador regional da Sesapi, João Eudes de Almeida Castro. “Ele tratou as 3.962 doses como se estas fossem, todas, para o território quilombola localizado somente em São Raimundo Nonato e disse que, até aquele momento, nenhuma das outras Secretarias Municipais de Saúde havia feito contato”, conta o professor, que coordena o projeto de extensão Pibex Fórum Permanente de Cartografia Quilombola. Ele se refere às prefeituras cujas jurisdições incidem sobre o território quilombola.

Conforme expresso na denúncia, Eudes “confessou existir uma dificuldade não somente em elaborar um plano de ação coletivo, como reconheceu haver tanto uma resistência das gestões em compreender as especificidades do território quilombola quanto de elaborar um plano de ação regional para a pandemia de Covid-19”.

LÍDER DIZ QUE SECRETARIA DA SAÚDE DESCONHECE DESTINO DAS DOSES

Para o pesquisador da Univasf, a atitude de Eudes foi, “no mínimo, negligente” e faltou transparência na condução do processo. “Não houve nem uma publicação do plano específico de vacinação e nem da destinação das doses em caso de incompatibilidade de quantidade”.

O vice-presidente da Associação Territorial do Quilombo Lagoas, Cláudio Teófilo Marques, já havia questionado a secretaria sobre a quantidade de doses, em São Raimundo, onde estão pouco menos de 2 mil quilombolas. “As outras doses vão pra onde?”. O coordenador regional da Sesapi teria desconversado.

“A gente percebe que esse povo está todo perdido em relação ao território”, critica o líder quilombola. “A gente está sempre orientando, mas parece que eles não prestam atenção”.

Questionado pela reportagem, o coordenador regional da Sesapi afirmou que as informações que chegaram à secretaria “não faziam referências às comunidades que estavam localizadas em outros municípios”. Isso explicaria a destinação da vacina apenas ao município de São Raimundo Nonato.

Segundo Eudes, a Coordenação Estadual solicitou à Secretaria Municipal de Saúde de São Raimundo Nonato a “devolução” das doses na sexta-feira (16). Estas, então, teriam sido repassadas pela Sesapi às Secretarias Municipais de Saúde de Fartura do Piauí, Várzea Branca e São Lourenço, para a vacinação dos quilombolas dos três núcleos que haviam ficado de fora da campanha de vacinação.

VULNERÁVEIS, QUILOMBOLAS TÊM PRIORIDADE NA VACINAÇÃO

A situação de vulnerabilidade social em que vivem as comunidades quilombolas e indígenas é o que determina a prioridade na vacinação. Exatamente devido à carência de políticas públicas para as populações tradicionais, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e outras organizações sociais demandaram judicialmente ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs 709 e 742), que as autoridades federais cumpram seu mandato constitucional sobre a saúde dos indígenas e quilombolas, o que ainda não foi feito.

Na denúncia encaminhada pelos professores da Univasf, consta que, “em momento algum, a Secretaria de Saúde divulgou qualquer plano de vacinação como parte da determinação do Poder Judiciário”.

De acordo com Chagas Sousa, integrante da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, “a vacina é apenas um dos direitos em que as comunidades quilombolas deveriam ser priorizadas pelo Estado brasileiro frente a todos os outros que vêm sendo discutidos e buscados ao longo da luta quilombola no país”.

“Muitos municípios fazem o que fez o de São Raimundo Nonato, que monopolizou as doses das comunidades, fornecendo somente ao seu município e deixando os outros sem vacina e sem explicação”, critica Sousa. Ele vê nisso uma mentalidade ainda racista e colonizadora. “Nós precisamos fazer valer esse direito que foi conquistado pelo movimento quilombola do Brasil”, diz.

Foto principal (Bernardo Curvelano Freire/Univasf): comunidade Lagoa do Moisés, no Território Quilombo Lagoas, Piauí

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