Um sistema de atenção à saúde de base universal com financiamento público é fundamental para construir igualdade. Entrevista especial com Gonzalo Vecina Neto

“Temos que entender a importância de combater a desigualdade. Não tem o menor sentido conviver numa sociedade de desiguais”, alerta o médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP

IHU On-Line

A crise sanitária e seus desdobramentos no Brasil nos mostrou “a realidade tal como ela é” e isso diz respeito não só às desigualdades que foram escancaradas, mas à importância do Sistema Único de Saúde – SUS como um mecanismo fundamental no enfrentamento das desigualdades. “Tivemos que ter uma pandemia para conseguir enxergar a importância da existência de um sistema de atenção à saúde de base universal. Quem mostrou isso à sociedade brasileira foi o Sars-CoV-2. Até ele aparecer, o que a sociedade pensava do SUS? Não era coisa boa. Todo mundo queria ter um plano de saúde, mas não queria ter o SUS como seu plano de saúde”, ponderou Gonzalo Vecina Neto na conferência virtual “Pandemia e a gestão da saúde local e global”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na semana passada.

Segundo ele, na atual conjuntura, há um movimento de “fortalecimento da ideia do SUS” e um dos principais desafios do futuro é garantir o aperfeiçoamento do sistema de saúde para enfrentar as desigualdades sociais. “Esse é o grande medo que tenho, de que passada a pandemia, daqui sete ou oito meses, nos esqueçamos da importância do SUS e de outra grande questão que aprendemos também: a importância sanitária da desigualdade social”.

A seguir, publicamos a conferência de Vecina Neto no formato de entrevista. Ele reflete sobre a crise sanitária, a atuação do governo e do Ministério da Saúde em meio à pandemia e destaca cinco vetores que precisam ser desenvolvidos para garantir o aprimoramento do SUS. “Um sistema de atenção à saúde de base universal com financiamento público é um componente fundamental para construir igualdade, como educação pública de boa qualidade constrói igualdade, como acesso a emprego, justiça e educação constroem igualdade. Não tem bala de prata para lidar com essa agenda. Vamos ter que fazer uma sociedade capaz de construir esse conjunto de direitos. Nós do setor saúde precisamos ter essa percepção ampla, porque a saúde depende de tudo isso”, insiste.

Gonzalo Vecina Neto é graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração, Concentração de Saúde, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV EAESP. Atuou como secretário municipal de saúde de São Paulo, secretário nacional de vigilância sanitária do Ministério da Saúde e diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. É professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP desde 1988 e superintendente do Hospital Sírio-Libanês desde 2007.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A crise sanitária está contribuindo para o aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde – SUS brasileiro?

Gonzalo Vecina Neto – O Sistema Único de Saúde – SUS é um sonho dos trabalhadores da saúde: ter um sistema de atenção à saúde de base universal, que se proponha a entregar uma assistência médica integral e, além de tudo, tenha a capacidade de construir a igualdade. Quando olhamos para os países desenvolvidos do hemisfério Norte, o que enxergamos, do ponto de vista da assistência à saúde, são sistemas universais, financiados com recursos públicos. Esse é um sonho que nos acompanha desde que os países começaram a organizar seus sistemas de saúde e a pensar na saúde como um direito universal, assim como educação e habitação e outros direitos. Sair de um sistema de seguridade social no qual quem tinha carteira de trabalho assinada era reconhecido como cidadão e tinha direito à assistência à saúde e caminhar para um serviço nacional de saúde, aos moldes do modelo inglês, foi um belo sonho que realizamos. Mas este sonho está longe de ser concretizado; nós sabemos das nossas limitações e vou falar sobre elas, para discutir a saúde local e a saúde global.

Realidade brasileira na crise sanitária

Ao mesmo tempo que sabemos das limitações que o nosso SUS tem, sentimos a sua importância no atendimento da emergência sanitária que o mundo todo está vivendo – e o Brasil está vivendo com mais intensidade. Conseguimos, como bons brasileiros que somos, acrescentar complexidade ao que já era complexo e estamos vivendo uma situação bastante dramática. Somos um dos países campeões em mortalidade e em não vacinação; temos alguns elementos ruins a acrescentar ao que estamos vivendo. Essa situação exigiu que nós fizéssemos um bom diagnóstico do que estamos vivendo porque temos que olhar para o futuro. E, de repente, isso foi uma coisa muito positiva.

Uma forma de olhar a natureza é através da cadeia alimentar: quando se olha a cadeia alimentar, percebe-se que todos os seres que a habitam têm uma razão de ser, e a retirada de um ser da cadeia gera um desacerto nela. Se retirássemos os carnívoros da cadeia alimentar, o que aconteceria com os herbívoros? Eles deixariam de ser alimento dos carnívoros e a sua população cresceria muito. Existem inúmeras consequências disso, que não vou discutir aqui, porque minha proposta é outra. Mas o fato é que quando se olha para a cadeia alimentar, se tem uma explicação para a existência de todos os seres: bactérias têm explicação, fungos têm explicação, e muitos dos microrganismos estão em íntima interação conosco e são fundamentais para a nossa vida. Os habitantes que nos habitam, boa parte deles, têm uma relação saprofítica conosco e não uma relação parasítica.

O vírus, contudo, é algo diferente porque ele não faz como as leveduras que fazem cerveja ou vinho, ou uma bactéria, como os coliformes, que são fundamentais no processo digestivo humano. Ainda não há uma explicação de por que ele existe. Poderíamos pensar que o vírus existe para controlar as populações de outros microrganismos, como as bactérias. Mas o vírus é uma existência que, por não ter capacidade de se reproduzir sozinho, não é considerado uma forma de vida. O vírus só se reproduz quando invade uma célula animal ou vegetal. Então, há uma pergunta: para que a natureza criou os vírus? Essa é uma pergunta que tem seus aspectos filosóficos, mas eu e outros pesquisadores conseguimos encontrar uma explicação importante para a existência dos vírus: eles nos mostram a realidade tal como ela é e nós não a enxergávamos. Tivemos que ter uma pandemia para conseguir enxergar a importância da existência de um sistema de atenção à saúde de base universal. Quem mostrou isso à sociedade brasileira foi o Sars-CoV-2. Até ele aparecer, o que a sociedade pensava do SUS? Não era coisa boa. Todo mundo queria ter um plano de saúde, mas não queria ter o SUS como seu plano de saúde.

De repente, notamos que é o SUS quem consegue fazer com que uma adequada abordagem da pandemia possa existir. É o SUS que faz vigilância sanitária, que aprova medicamentos, que aprova alimentos, que faz uma parte da vigilância epidemiológica – e esse é um aspecto que vamos ter que corrigir. Quer dizer, a vigilância epidemiológica tem a responsabilidade de identificar a ocorrência de doenças na sociedade e, de repente, quando aparece uma doença nova, como é o caso da Covid-19, quem dá o alarme, quem diz como combater esse episódio sanitário é a vigilância epidemiológica. Mas, no Brasil, estamos com um grande problema no que diz respeito ao funcionamento da vigilância epidemiológica, porque o Ministério da Saúde saiu da equação.

IHU On-Line – Como avalia a gestão da crise na esfera federal?

Gonzalo Vecina Neto – O presidente da República, olhando para a pandemia e para o projeto de país que ele tinha – de um país que iria se desenvolver e ganhar muito dinheiro –, viu nessa pandemia um risco muito grande para o seu projeto político, inclusive o de reeleição. Qual foi a aposta dele? Se não entendermos isso, não conseguiremos explicar o que está acontecendo. Se o projeto político é ter uma sociedade onde a economia funcione azeitada, qual era a alternativa que ele tinha quando a crise começou e não existiam vacinas? Fazer com que a imunidade de rebanho fosse o mais rapidamente alcançada. Ou seja, 70% das pessoas iriam ter a doença e, com isso, ela deixaria de existir. É uma tese epidemiológica correta e a imunidade de rebanho existe de fato. O único problema é que a imunidade de rebanho mata muita gente porque a letalidade dessa doença, apesar de baixa em comparação com doenças mais letais, é considerável. Para chegar à imunidade de rebanho teríamos que ter entre 1,5 milhão e 2 milhões de mortos, sem vacina, sem isolamento social, sem uso de máscara. Estamos chegando aos 500 mil mortos [17-06-2021]. Não estamos tão distantes: estamos no primeiro terço do caminho da imunidade de rebanho, que foi a aposta que o presidente fez e continua fazendo até hoje.

Ele proibiu o uso de máscara e quer levantar novamente essa hipótese de não se usar mais máscara, proibiu a compra de vacinas – num primeiro momento, impediu a compra da Sinovac – e não tomou decisões em relação às vacinas que foram oferecidas pela Pfizer, como a CPI está demonstrando. O projeto dele era chegar à imunidade de rebanho através das mortes. Essa proposta não deu certo e conseguimos, com o SUS funcionando precariamente – porque o seu funcionamento é precário –, mostrar para a população que o pouco de SUS existente conseguiu segurar minimamente essa crise sanitária, melhor até que os sistemas de saúde privados, porque os que existem no Brasil são também muito parciais. No Sul, 24% da cobertura de assistência médica é privada, no Sudeste, particularmente puxado por São Paulo, 35% da população tem acesso à assistência privada. Algumas cidades de São Paulo, como Santo André, onde ficava o polo mais importante da indústria automobilística, chegou a ter 70% da cobertura de assistência médica privada. Mas, no Norte, somente 10% da população tem assistência privada e, no Nordeste, 12%. Então, na maior parte do país, o SUS é fundamental.

IHU On-Line – A comunicação, especialmente via redes sociais e WhatsApp, teve que peso no enfrentamento da crise sanitária e na avaliação social do SUS?

Gonzalo Vecina Neto – A comunicação foi boa e foi ruim. De um lado, ficamos sabendo o que estava acontecendo no Brasil inteiro, quase que simultaneamente, graças aos sistemas de comunicação, à internet, ao Instagram, ao Facebook. Isso foi muito positivo e temos que aprender a usar de forma mais positiva a capacidade de transmissão de conhecimento e, com isso, contribuir para fortalecer os indivíduos e a sociedade. De outro lado, tivemos o gabinete do ódio e as fake news. A questão é o que podemos fazer para melhorar este balanço, porque é impossível anulá-lo. Sempre vão existir ignorantes e mal-intencionados que vão utilizar um instrumento que está à disposição de todos. O que temos de tentar fazer é controlar isso sem ceder à vontade de censurar; tem que ser de uma forma diferente. Eu não sei a resposta para isso; ela virá com o viver.

Importância sanitária da desigualdade social

De qualquer forma, ter o conhecimento do que estava acontecendo no Brasil mostrou para os brasileiros a importância de ter um sistema de atenção à saúde universal e de base pública. Neste momento, estamos vivendo um fortalecimento da ideia do SUS. Mas esse fortalecimento ainda está longe de virar prática. Essa é uma questão que não podemos esquecer. O meu grande medo é que o tempo, o senhor das coisas, fará com que tudo isso passe. E isso passará e, ao passar, nós podemos nos esquecer do que aprendemos. Esse é o grande medo que tenho, de que passada a pandemia, daqui sete ou oito meses, nos esqueçamos da importância do SUS e de outra grande questão que aprendemos também: a importância sanitária da desigualdade social. Provavelmente esse seja o problema mais terrível da sociedade brasileira. Estamos falando que o vírus mata, mas o vírus não mata. Quem mata é a desigualdade. Quem está morrendo mais nessa pandemia são os pobres e mais ainda os negros. O que mata não é a cor da pele; é a pobreza. A desigualdade faz com que os 40% que não têm emprego formal precisem estar na rua todos os dias para ter o que comer e, quem sai na rua, encontra o vírus. O que matou foi a desigualdade e não o vírus. Temos que entender a importância de combater a desigualdade. Não tem o menor sentido conviver numa sociedade de desiguais.

Vou dar um exemplo para vocês. O Brasil foi o último país do mundo a acabar com uma prática que era normal em 1888. Desde que o homem começou a se fixar no ambiente, há dez mil anos, considerava-se que ser escravo ou ter escravo era uma coisa normal. Hoje, tenho certeza de que nenhum de nós acha isso normal. Na mesma linha, estamos vivendo numa sociedade onde uma parte das pessoas não tem vida normal, não tem acesso à comida, à educação, à moradia; só tem acesso à esmola, à caridade, à filantropia. Nós somos um país que ainda constrói direito com caridade, filantropia, e isso é um crime.

Como os países desenvolvidos conseguiram diminuir a desigualdade? Tendo políticas públicas que a combatessem. Como se combate a desigualdade? Com distribuição de renda. Tem que pegar o dinheiro dos impostos que eu pago e dar para quem não paga? Sim, é isto. O único jeito de acabar com a desigualdade é distribuindo renda. Alguns dizem: vamos “ensinar a pescar” e é muito importante também. Mas “ensinar a pescar” não leva ninguém para a frente sem distribuição de renda. Então, nesta virada que estamos fazendo na nossa sociedade, onde estamos discutindo o que é normal, temos que repensar a questão das desigualdades. Nesse sentido, um sistema de atenção à saúde de base universal com financiamento público é um componente fundamental para construir igualdade, como educação pública de boa qualidade constrói igualdade, como acesso a emprego, justiça e educação constroem igualdade. Não tem bala de prata para lidar com essa agenda. Vamos ter que fazer uma sociedade capaz de construir esse conjunto de direitos. Nós do setor saúde precisamos ter essa percepção ampla, porque a saúde depende de tudo isso.

IHU On-Line – O que o SUS precisa para funcionar de modo mais adequado?

Gonzalo Vecina Neto – O sistema de saúde, para funcionar de uma maneira mais adequada, precisa de cinco vetores.

Primeiro vetor – financiamento público

O primeiro vetor é o financiamento público. Quanto custa a assistência em saúde em qualquer país civilizado? Essa é uma pergunta difícil de responder, mas, na média, os países civilizados gastam entre 10 e 13% do total de dinheiro que a economia produz. Esse é um jeito de olhar. E não há muitos outros jeitos. Outro, seria avaliar quantas internações seriam necessárias e os seus custos, mais consultas, mais vacinas, ou seja, seria muito complexo e difícil montar essa equação.

O modelo americano é distópico: é o sistema de saúde mais caro do mundo e não é o mais resolutivo. O sistema de saúde americano gasta hoje dez mil dólares per capita/ano em assistência à saúde, 18% do PIB, e os resultados são piores do que os dos países da Europa e de um dos países que menos gasta per capita, que é Cuba. Cuba tem uma mortalidade infantil mais baixa que a americana e uma expectativa de vida mais alta. Então, não é por aí. Mas, na média, os países da União Europeia gastam entre 10 e 13% do PIB. Nossos vizinhos – com aqueles que dá para comparar, Uruguai, Argentina e Chile, porque não dá para comparar com a Colômbia, que vive em guerra há anos, ou com a Bolívia ou Venezuela – estão gastando entre 8 e 10% do PIB e têm problemas semelhantes aos nossos. O Uruguai, menos, porque é um país menor e passou por menos perrengues, embora tenha passado por uma ditadura importante.

Olhando de novo para a União Europeia, é importante observar que não basta ter um padrão de gasto. É importante também avaliar como esse gasto é composto. Na comunidade europeia, desses 10 a 13% do PIB, cerca de 70 a 80% é gasto público. O Brasil, neste ano, deve estar gastando 9,3% do PIB, um pouco abaixo da média europeia. Porém, o principal componente a ser analisado é que percentual desse valor é gasto público. Do total de dinheiro aplicado em saúde no Brasil, 43% é público e 57% é privado: vem do bolso das pessoas e das empresas. Nos países do Sul, a relação não é muito diferente, principalmente na Argentina e no Chile. O gasto privado é quase maior do que o gasto público. O Chile tem um modelo mais parecido com o que temos hoje, embora a ditadura militar lá tenha desenvolvido um tipo de assistência médica privada. A Argentina tem um modelo de atenção à saúde pré-serviço nacional de saúde brasileiro, pré-SUS, um modelo bismarckiano de seguridade social.

Subfinanciamento brasileiro

De qualquer forma, o Brasil tem um subfinanciamento muito importante. Neste ano, o Brasil deve gastar algo em torno de R$ 700 bilhões em saúde. Destes, cerca de R$ 390 bi são gastos privados e cerca de R$ 300 bi são gastos públicos. Do gasto público, um pouco menos da metade é para o Ministério da Saúde e o restante é dividido entre estados e municípios. Mas o mais importante a se notar é que a metade do gasto público em saúde no Brasil é do Ministério da Saúde, que está ausente da pandemia. Quem faz a atenção primária é o município, quem faz boa parte da atenção secundária e terciária é o estado, embora todo município de médio e grande porte no Brasil faça também atendimento médico hospitalar de alta e média complexidade.

O Ministério da Saúde praticamente não tem serviço no Brasil inteiro: há algo no Rio de Janeiro como sobra de guerra e que são coisas do Rio de Janeiro, ex-capital da República. A importância do Ministério da Saúde como indutor de políticas públicas na saúde é crítica. Então quando o Ministério da Saúde sai da equação da saúde pública, ela vira um desastre. É isso o que no fundo vivemos no meio desta crise.

A estruturação do Programa Nacional de Imunizações – PNI, que foi criado em 1973 e formalizado em Lei em 1975, e que aplica 300 milhões de doses de vacina por ano, foi perdida. Não estamos fazendo campanha de vacinação da gripe (cujas 80 milhões de doses foram produzidas e entregues). As vacinas da Covid-19 estão nos postos, mas as pessoas não estão indo se vacinar. Além disso, está caindo a cobertura vacinal de sarampo, rubéola, de todas as doenças. Por que está caindo? Não é por falta de vacinas, elas estão nos postos, foram compradas e distribuídas. Por que as pessoas não estão indo se vacinar? Não me venham com história de negacionismo. As pessoas não estão indo se vacinar porque não sabem, porque não foram convocadas. Para proteger a saúde precisa de campanha. Nós sempre fizemos campanha, na televisão, nas rádios, nos jornais. Ninguém fala de vacinação, exceto a imprensa, que está tentando cumprir esse papel, mas é insuficiente. Por que há essa diferença entre estados, vacinando grupos etários mais novos? Porque está sobrando vacina e os velhos e as pessoas com comorbidades não foram se vacinar. A cidade de Betim/MG resolveu vacinar crianças a partir dos 12 anos, fantástico. Agora se todo mundo está recebendo quantidades insuficientes de vacina, como Betim está fazendo esse milagre? Deixando de vacinar quem deveria estar sendo vacinado, os que correm maior risco. Não tem outra explicação, e isso não é bom. Vacinar de 12 a 18 anos com a vacina da Pfizer, que está chegando a conta-gotas no Brasil, é uma boa ideia se for vacinar grupos que têm comorbidade. Enfim, sem ação do Ministério da Saúde, é um desastre.

Planos de saúde privados X SUS

Se pegarmos os R$ 300 bilhões destinados para o Ministério da Saúde, estados e municípios, e dividirmos por 200 milhões de habitantes, dá um pouco mais de R$ 1 mil per capita/ano. Dentro da fatia privada, que são R$ 390 bilhões, R$ 220 bi são de assistência médica supletiva e prestação de serviço. No Brasil, 23% da população tem plano de saúde. Desse total, 80% são planos coletivos – parte do pagamento feito pela empresa, parte pelo empregado –, somente 20% são pagos por pessoas individualmente.

Nós temos R$ 220 bi gastos com planos de saúde em 2020, para atender 48 milhões de brasileiros, e quando fazemos a equação dos valores gastos, percebemos que há mais de R$ 4 mil gastos por ano. Então enquanto o SUS gasta um pouco mais de R$ 1 mil, a iniciativa privada gasta mais de R$ 4 mil. O que a iniciativa privada entrega a mais? Nada. No Brasil, 95% dos transplantes são feitos pelo SUS, 95% das hemodiálises são feitas pelo SUS, 100% dos medicamentos de alto custo – para tratamento de hemofilia, câncer, aids, para programa nacional de imunização – são pagos pelo SUS. O SUS é mesmo um sucesso.

Veja o caso da aids: em 1995, o Brasil foi o único país do mundo que resolveu fazer um programa nacional de enfrentamento da aids, com distribuição de medicamentos, com uma história de luta fantástica. O resultado é o seguinte: hoje nós temos 900 mil portadores do vírus da aids no Brasil, que estamos tratando pelo SUS. A África do Sul, no mesmo ano de 1995, resolveu não tratar ninguém – e era um país em situação semelhante ao Brasil, assim como uma série de outros países – e hoje tem 15% da população com testagem de vírus positivo para HIV. No Brasil, 15% para 210 milhões de habitantes seria algo da ordem de 40 milhões de brasileiros. Não fosse o SUS, isso seria mais um desastre nacional.

A questão do financiamento é fundamental. Desde que o SUS foi criado, essa questão é fundamental. Ainda estamos sob a égide de um dispositivo constitucional que foi votado no tempo do Temer – que fez um governo terrível para a saúde pública e o resto –, responsável pela aprovação da Emenda Constitucional 95. Existia um desequilíbrio das contas públicas, em que gastávamos mais do que arrecadávamos, e isso não deve acontecer. Então nesses momentos de desequilíbrio, temos que escolher o que pagar e a opção do governo Temer foi congelar gastos públicos por 20 anos. Se pensássemos no universo de nossas casas, o que aconteceria se congelássemos nossos gastos nos patamares de 2016? Não tem saída para isso. Isso não é coisa de governante; é coisa de desocupado, de assassino ou algo assim. De qualquer forma, o atual presidente está tentando manter as coisas deste jeito, mas não tem como manter isso. A Emenda Constitucional 95 já está criando problemas profundos.

No ano de 2020, a lei da emergência sanitária jogou R$ 40 milhões no orçamento previsto em 2019. Ao invés de R$ 130 milhões, gastamos R$ 170 milhões, mas neste ano voltamos aos R$ 130 milhões previstos em 2019; nós não vamos fechar o ano. A saúde não fecha o ano e as consequências serão mais mortes. Um genocídio. Então, financiamento é uma questão crítica da assistência à saúde. Ponto. Temos que lutar pelo financiamento e para lutar por ele precisamos entendê-lo. Temos que entender qual o gasto per capita, a composição público-privada do gasto, compreender que o ingresso de aporte de recursos públicos vem mais pelo consumo do que pela renda, de modo que precisamos inverter essa lógica e garantir que esse aporte venha de impostos sobre a renda, não sobre o consumo, tornando os impostos progressivos.

Segundo vetor – gestão

O Brasil tem um sistema de gestão que é ruim e esse é o segundo problema. Nós somos muito ineficientes no gasto público, e não somente na saúde, mas em tudo.

Durante mais de dez anos eu fui superintendente do Hospital Sírio-Libanês, passei muito tempo e fiz muitas coisas lá e, dentre elas, dupliquei o tamanho do hospital e aprendi sobre gestão na iniciativa privada. O estoque médio do Hospital Sírio-Libanês era de 22 dias. Eu comprava fazendo um tipo de seleção, o que é diferente de licitação. Durante cinco anos, fui presidente da comissão de julgamento de licitações do Hospital de Clínicas da USP e durante 27 anos fui médico lá. O estoque médio do Hospital de Clínicas hoje é de 90 dias. Estoque é dinheiro parado. Quanto tempo demora para repor um quadro que pede demissão em um hospital público? Um ano, dois anos. Quanto tempo na iniciativa privada, fazendo processo seletivo? Entre um e dois meses do momento em que a vaga foi aberta até o ingresso do novo contratado. Administrar é, basicamente, alcançar resultados através da mobilização de recursos. O Estado brasileiro não sabe mobilizar recursos; licitar e concursar é impossível na velocidade que a saúde necessita. A saúde é muito complexa. Nenhuma outra atividade humana funciona sete dias por semana, 24 horas por dia, somente a saúde. É muito complexo, com tanta tecnologia diferente funcionando.

Parcerias público-privadas

As parcerias público-privadas – um tema que exige um debate mais amplo – são uma alternativa perigosa, mas são uma alternativa. É perigosa porque o homem gosta de roubar, no setor público e no setor privado. Não é o setor público que instiga ao roubo, mas a impunidade. Ter controle, fazer controle, manter controle é fundamental para não ter corrupção. No setor público existe uma corrupção que não é alcançada pela punição e no setor privado há formas de fazer isso. Nesses dez anos administrando o Sírio-Libanez, pegamos uma quadrilha especializada que roubava remédios de alto custo do hospital, porque havia sistemas de controle e auditoria interna operando. Gestão é fundamental e controle da corrupção faz parte da gestão.

Terceiro vetor – modelo federativo

O terceiro problema – e muito do que precisamos falar de saúde local e global está neste problema – é quem faz o que no SUS. É óbvio que o modelo federativo brasileiro acabou tendo uma contribuição muito grande para os 5.570 municípios – particularmente os de médio e grande porte, que são uns 250 a 300 municípios. Em todos eles existe participação com dinheiro do município, ou seja, cidades mais ricas acabam tendo uma estrutura sanitária própria. Mas o maior investimento vem do Estado. O primeiro grande problema desse modelo é a estruturação da atenção primária, porque ela é estruturante da atenção à saúde. Há uns 20 anos gostávamos muito de falar em necessidade e demanda e diferenciávamos “necessidade” como algo que epidemiologicamente precisa de atenção à saúde, ao passo que demanda é algo que o indivíduo quer. Só que isso mudou muito.

Eu gosto de lembrar de uma história que um amigo pediatra, que atendia em uma Unidade Básica de Saúde – UBS de uma favela próxima à minha casa, me contou: uma senhora chegou ao posto gritando e chorando, tendo o que parecia ser um surto psicótico e ele, inicialmente, não quis atendê-la, alegando que era pediatra, mas de tanto os demais profissionais do posto insistirem, ele a atendeu. A senhora estava chorando porque o marido havia sido mandado embora e chegou em casa bêbado, pegou a cachorra e a jogou pela janela do quinto andar. A pergunta é: essa senhora tinha um problema de saúde? Ou era um problema social? Até que ponto ela precisava ver um médico ou profissional de saúde? Eu não tenho dúvida de que ela precisava de um profissional de saúde, que não tinha muito o que fazer, exceto ouvi-la, escutá-la. Esse é um papel importante nosso na atenção primária. Se tivermos uma boa atenção primária como é o Programa Saúde da Família – PSF, o que temos de humanisticamente atender será feito na atenção primária, enquanto a medicina, com bons protocolos, poderá atender as doenças mais prevalentes, o que diminui os atendimentos de nível secundário e terciário. Contudo, precisamos ter condições de gerar acesso no secundário e terciário e, nesse sentido, estamos engatinhando.

Os sistemas de regulação do SUS são muito ruins e temos de melhorá-los. Para melhorarmos, precisamos enfrentar um paradoxo: diminuir a importância dos municípios, pois para operar isso é necessário reunir um conjunto de cidades e criar um sistema de acesso para os serviços que, estando nos municípios, podem ser dos próprios municípios ou do estado. Para isso é preciso criar um sistema de gestão compartilhado e com acesso aos recursos para determinada região. No Brasil não há isso, apenas algumas mínimas tentativas no Ceará e no Paraná. Precisamos reestruturar a rede de atenção no Brasil, repensar os pequenos hospitais que, no fundo, não servem para nada. Desculpem falar isso, mas hospital que não tem tecnologia não atende velho com doença crônica. Não tem jeito. Há 20 anos havia procedimentos que não eram feitos em idosos, mas que hoje são possíveis, como, por exemplo, trocar um joelho em um velhinho de 80 anos. Isso é possível por quê? Porque tem UTI. Se não tiver, não tem como fazer cirurgia. A organização das coisas precisa ser repensada.

Até mesmo o setor privado está aprendendo que é necessário se dedicar à atenção primária. É preciso ter o que os americanos chamam, ilustrativamente, de “gatekeeper”, de “goleiro”, que tem que organizar a demanda. Eu não penso no gatekeeper, mas em um general manager, auxiliado pelo agente comunitário de saúde, que é a nossa fantástica contribuição.

Temos que pensar de novo a questão da saúde local e global e pensar, particularmente, no papel da equipe de saúde à frente dos pacientes, porque precisamos incorporar à atenção básica a promoção da saúde. Mas o que é isso? É algo que o sujeito-paciente faz adequadamente informado. E isso não é ir ao médico e ele orientar o paciente a não comer sal ou a fazer exercícios. Não se trata de o médico falar essas coisas, mas, sim, explicar qual a dieta adequada em um acordo terapêutico com o paciente, usando a sua capacidade de tomar decisões, e não o médico tomar decisões. Não se deve afirmar coisas como “o senhor deve fazer exercício”, mas perguntar, “qual é a agenda do senhor?”, “vamos discutir o que dá para o senhor não fazer e o que o senhor precisa fazer diferente”. O plano terapêutico cocriado tem promoção da saúde e com isto nós conseguimos atacar os determinantes das doenças crônicas degenerativas. Não temos outra saída. Precisamos repensar o papel da saúde, senão continuaremos sempre “curando” doenças e não tratando saúde. Temos que repensar o modelo assistencial, levando em conta esses componentes sociais tão complexos que eu mencionei.

Quarto vetor – ciência e tecnologia
O quarto componente desta equação é a questão da ciência e tecnologia. Nós não temos vacina porque não temos uma política pública de produção de imunobiológicos, de medicamentos. Eu não estou discutindo se isso será público ou privado. O processo de produção de bens para a saúde é público, independente se for feito pelo Estado ou pelo setor privado, mas a política indutiva é pública. O dono do mercado é o Estado. Saber gerenciar a política pública é papel do Estado. Nós temos que pegar as universidades, que agora estão de joelhos com 10% das bolsas de mestrado e doutorado que tinham antes deste governo, e trazê-las de volta. Como se faz ciência em qualquer lugar do mundo? Com mestres e doutores, com a pós-graduação. É a pós-graduação que, indo atrás das linhas de pesquisa dos professores, produz respostas para a sociedade. É ela que produz publicações e, com estas publicações, a possibilidade de haver inovações, que se trata da aplicação de um conhecimento em algo que possa ser vendável em uma sociedade capitalista como a nossa.

Mas para esses que estão no governo, a pós-graduação é lugar de fumar maconha. Eles conseguiram reduzir 90% das bolsas de pós-graduação no país. Nós só temos possibilidade de ter duas vacinas no Brasil daqui a alguns meses porque o Doria resolveu financiar, e aí o “astronauta” [Marcos Pontes, Ministro de Ciência e Tecnologia], por ordem do genocida [Bolsonaro], resolveu também financiar. Um estudo de fase três custa algo em torno de R$ 300 a 400 milhões; não tem saída.

Quinto vetor – controle social
O quinto componente é o controle social. Nós precisamos revisitar e melhorar o controle social. Trata-se de uma jabuticaba, que só tem no Brasil, mas é uma jabuticaba que deu certo. Apesar de ser muito difícil trabalhar com controle social, ele estabelece uma democracia participativa na gestão dos serviços públicos, mas vivemos uma democracia eleitoral em que o legislativo é quem aprova os orçamentos. O desafio é como fazer conviver uma democracia participativa com uma democracia com eleições de pessoas. Essa é uma questão difícil, mas temos de reivindicar, porque é positiva para o Brasil.

Gonzalo Vecina Neto: “O Estado está sendo o grande sabotador da vacina”. Foto: Reprodução.

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