Saúde mantém grávidas que já tomaram primeira dose da Astra no limbo da vacinação

por Raquel Torres, em Outra Saúde

CONTINUAM NO LIMBO

O Ministério da Saúde continua sem oferecer nenhuma solução decente para evitar a morte de gestantes que já tomaram a primeira dose da vacina de Oxford/AstraZeneca e, portanto, estão apenas parcialmente imunizadas. Como se sabe há muito tempo, gestantes (mesmo sem comorbidades) têm mais chance de complicações e morte por covid-19.

Ontem, em coletiva de imprensa, Marcelo Queiroga avisou que essas mulheres não poderão tomar a segunda dose de outra marca – muito embora a pasta tenha suspendido o uso da AstraZeneca no grupo.

A recomendação ainda é a de que as mulheres esperem 45 dias após o puerpério para que possam, enfim, receber a segunda dose do mesmo fabricante. Isso pode significar muitos, muitos meses de intervalo. “A intercambialidade [de vacinas] ainda não está autorizada, seja em grávidas ou em não grávidas. Não há evidência científica acerca de intercambialidade de vacinas em gestantes”, declarou o ministro.

Não é o que dizem a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras. Na segunda-feira, a Febrasgo emitiu uma nota defendendo que essas mulheres podem, sim, fazer uso combinado de vacinas, porque já há muitas evidências sobre a segurança da mistura na população em geral. “De acordo com os dados que temos hoje, não tem problema nenhum de intercambialidade. Se a gestante quiser, ela pode vir a tomar a segunda dose com a vacina preferencialmente da Pfizer, que nós já temos estudos”, explica a ginecologista Cecilia Roteli Martins, presidente da Comissão Nacional Especializada de Vacinas da Febrasgo, na Crescer.

Queiroga afirmou que a vacinação com produtos diferentes está vetada não apenas para grávidas, mas para qualquer pessoa – embora a estratégia esteja sendo permitida em vários países, entre eles o Canadá e o Reino Unido. 

Alguns estados, como o Rio de Janeiro, estavam oferecendo a “mistura” de doses para resolver o problema das gestantes. A capital já disse que vai manter o esquema, à revelia do ministro.

Em tempo: pelo menos o governo federal decidiu que gestantes sem comorbidades também devem ser vacinadas, desde que com os imunizantes da Pfizer ou a CoronaVac. Já é alguma coisa.

CONTRATO VAZOU

O Ministério de Saúde vai pagar 2 dólares a mais do que governos estaduais por dose da vacina Sputnik V. A diferença, no entanto, não está na escala – o Consórcio Nordeste contratou 37 milhões de doses a 9,95 dólares cada, enquanto o governo federal 10 milhões a 11,95 dólares – mas na forma de fechar o negócio. Ao invés de tratar diretamente com o Fundo Russo de Investimentos, o governo Jair Bolsonaro preferiu, mais uma vez, a intermediação de uma empresa: a União Química. E, novamente, o Centrão aparece enrolado na história. 

“A farmacêutica com sede no Distrito Federal pertence a um empresário que já doou dinheiro a um partido do Centrão, o PSD; tem um ex-deputado do Centrão como diretor [Rogério Rosso]; e conta com o lobby do líder de Bolsonaro na Câmara e ex-ministro da saúde, o deputado federal do Centrão Ricardo Barros, do PP do Paraná”, lista a reportagem do Intercept Brasil, que teve acesso ao contrato de R$ 693,6 milhões assinado adivinha por quem? Roberto Dias. 

Da mesma forma que o “rolo” da Covaxin – vacina fabricada pelo laboratório indiano Bharat Biotech – envolveu, segundo os irmãos Miranda, considerável dose de pressão por parte de ocupantes de cargos públicos em nome dos interesses da empresa que estava intermediando a compra, a Precisa Medicamentos, o negócio da Sputnik V também pode ter envolvido pressão, desta vez sobre a Anvisa.  O aval da agência ao imunizante até hoje não foi dado – e é só por isso que o dinheiro ainda não saiu dos cofres públicos. 
“Feito o câmbio de dólar para real, o negócio sairá R$ 120 milhões mais caro do que se o governo tivesse imitado os estados, que trataram diretamente com a empresa russa que representa o Instituto Gamaleya, desenvolvedor da Sputnik”, continua a reportagem. O contrato foi assinado no apagar das luzes da gestão Eduardo Pazuello. 

O dono da União Química, Fernando Marques, e Rogério Rosso já foram convocados para falar na CPI, mas ainda não há data para os depoimentos. 

MIL ROLOS

Agora que a caixa de Pandora foi aberta, não param de sair coisas dela. Ontem, a TV Globo mostrou que Roberto Dias contrariou a consultoria jurídica do Ministério da Saúde e concordou em pagar um valor 1.800% maior do que o recomendado à empresa VTCLOG pelo serviço de receber e organizar medicamentos. Segundo os técnicos, a remuneração correta era de R$ 1 milhão, enquanto a empresa defendia que, pelo contrato, o valor seria R$ 57 milhões. Dias concordou com uma contraproposta da empresa, no valor de R$ 18 milhões. A consultoria alertou que a sugestão poderia “representar um sobrepreço de mais de R$ 17 milhões” e aconselhou a rescisão do contrato. Dias não ligou e seguiu em frente. 

E não uma, mas duas empresas faziam a intermediação da compra da vacina indiana Covaxin. Documento obtido pela Folha mostra que, além da Precisa Medicamentos havia uma empresa dos Emirados Árabes na história. Trata-se da Envixia que aparece no memorando de entendimento como responsável por apoiar todas as atividades relacionadas a registro e comercialização do imunizante no Brasil. E o UOL foi atrás e constatou que suspeitas de corrupção também pairam sobre o dono dessa empresa, por intermediar um esquema fraudulento de testagem em massa na Índia. 

Falando nisso… O Ministério da Saúde tinha respaldo jurídico para rescindir o contrato com a Precisa Medicamentos. O comando da pasta, no entanto, preferiu apenas suspender o contrato de R$ 1,6 bilhão

POLITIZAÇÃO

A ex-coordenadora do PNI (Programa Nacional de Imunizações) Francieli Fantinato depôs ontem à CPI da Pandemia e afirmou ter deixado o cargo em função da politização do governo em torno das vacinas. Ela também confirmou a constatação óbvia de que o negacionismo do chefe da nação atrapalha a campanha, e disse que é impossível o programa de imunização funcionar sem doses e sem uma boa comunicação por parte do Estado. “Infelizmente, eu não tive nenhum dos dois”.

Ainda segundo Francieli, a decisão de excluir a população carcerária dos grupos prioritários foi uma ordem direta do ex-secretário-executivo do Ministério, o coronel da reserva Elcio Franco. 

Aliás… Partiu de Elcio Franco um arranjo que desviou R$ 110 milhões destinados à vacinação dos brasileiros para as Forças Armadas. Um termo de cooperação garantiu que a maior parte do dinheiro fosse usado para comprar combustível e peças de aeronaves, de acordo com a Piauí.  

AINDA LÁ

Já são os seis militares que ocuparam cargos-chave do Ministério da Saúde citados na CPI. Além do ex-ministro Eduardo Pazuello e de seu escudeiro Elcio Franco, há os tenentes-coronéis Marcelo Batista Costa e Alex Lial Marinho, o coronel da reserva Marcelo Bento Pires e o coronel reformado Marcelo Blanco da Costa.

Todo o desgaste aindanão foi suficiente para desmilitarizar a pasta. Segundo levantamento do El País Brasilpelo menos 19 militares da reserva ou da ativa ainda ocupam postos estratégicos da Saúde. Não só: apesar de na época de Pazuello esse contingente ter chegado a 30 fardados nos altos cargos, nos últimos meses militares exonerados são substituídos por outros. “Em algumas situações, postos deixados por aqueles que tiveram seus nomes envolvidos em denúncias são ocupados por outro militar”, diz o site. 

“Gravemente ineficiente e dolosamente desleal (imoral e antiética)”. Assim a Procuradoria da República do Distrito Federal define a gestão Eduardo Pazuello na mais recente ação de improbidade contra o ex-ministro da Saúde, que aponta um dano ao erário de quase R$122 milhões. 

MORDE, ASSOPRA

Ontem, os generais Braga Netto (Ministério da Defesa) e Paulo Sérgio (Exército) tentaram distensionar a crise com o Senado causada pela nota fora de tom que subscreveram na véspera, na qual afirmam que “não aceitarão qualquer ataque leviano” da CPI num momento em que abundam suspeitas de corrupção contra militares. Ambos ligaram para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para dizer que o ataque não foi direcionado ao Senado, mas ao senador Omar Aziz (PSD-AM). Ah tá. 

CARTA AO PRESIDENTE

A cúpula da CPI enviou ontem uma carta a Jair Bolsonaro. Omar Aziz (PSD-AM), Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Renan Calheiros (MDB-AL) pedem que o presidente “desminta ou confirme o teor das declarações do deputado Luis Miranda”. Já se passaram duas semanas desde o depoimento do parlamentar à comissão, quando descreveu o alerta de corrupção no caso Covaxin feito a Bolsonaro, e a falta de surpresa gerada pelo caso pois prontamente o presidente teria atribuído os ilícitos aos “rolos” do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR).

A resposta de Bolsonaro veio à noite, no estilo bem-educado de sempre: “Caguei. Caguei para a CPI. Não vou responder nada”, disse na transmissão ao vivo das quintas. “Não tenho paciência para ficar ouvindo patifes acusando o governo”. 

REJEIÇÃO RECORDE

Mas a explosão de escândalos no governo federal merece toda a atenção do presidente. Segundo pesquisa Datafolha divulgada ontem, a rejeição a Jair Bolsonaro bateu 51%, o maior índice nos 13 levantamentos feitos pelo instituto desde que ele colocou a faixa presidencial. Na pesquisa anterior, de maio, esse percentual estava em 45%. 

Bolsonaro também mostra resiliência: 24% dos entrevistados seguem fiéis a ele, patamar estacionado aí desde março.

Mesmo assim, Bolsonaro ostenta a segunda pior avaliação entre os presidentes em primeiro mandato eleitos diretamente desde a redemocratização. “Só perde para Fernando Collor, que em meados de 1992 já enfrentava a tempestade do impeachment que o levou à renúncia no fim daquele ano”, lembra a Folha.

Além da avaliação geral, a pesquisa captou um quadro mais detalhado. Para a maioria dos ouvidos, Bolsonaro é “desonesto, falso, incompetente, despreparado, indeciso, autoritário, favorece os ricos e mostra pouca inteligência”. Há quem já esteja encomendando camisetas com essa coleção de adjetivos para o próximo protesto.

AINDA FUNCIONAM

Um trabalho liderado pelo Instituto Pasteur e publicado ontem na Nature reforça evidências prévias de que as vacinas da Pfizer e da AstraZeneca funcionam contra a variante Delta – mas que são necessárias as duas doses. 

Como foi um estudo de laboratório (não envolvendo a observação de seres humanos), seus resultados não indicam a eficácia nem a efetividade dos imunizantes, mas apenas a resposta de anticorpos ao SARS-CoV-2. Os cientistas avaliaram o desempenho de vírus de quatro cepas (Alfa, Beta, Delta e a original) no soro produzido por pessoas que já tinham sido infectadas ou vacinadas. No total, eles avaliaram o soro de 103 pessoas com infecção prévia e de 59 vacinadas, e viram que a Delta escapou de alguns dos anticorpos.

O soro de quem já tinha sido infectado, mas não vacinado, não proporcionou praticamente resposta nenhuma. No entanto, quando pacientes recuperados receberam apenas uma dose da vacina, seus anticorpos já conseguiram neutralizar todas as variantes, incluindo a Delta. 

Já para quem nunca tinha sido infectado, uma dose da vacina não funcionou contra a Delta: uma boa ação dos anticorpos só foi vista no soro de cerca de 10% das pessoas. Mas o cenário mudou drasticamente após a segunda dose, quando esse percentual saltou para 88% (no caso da AstraZeneca) e 100% (com a Pfizer). Ainda assim, os autores indicam que os anticorpos produzidos foram menos potentes contra a Delta em comparação com outras cepas.

pesquisa não significa necessariamente que infecções prévias e apenas primeira dose dessas vacinas não protejam nada contra a Delta. “A evasão de anticorpos neutralizantes in vitro não explica o que acontece no mundo real e também não explica a amplitude e complexidade da resposta imunológica, que não se restringe aos anticorpos neutralizantes”, explica a virologista Angela Rasmussen ao STAT.

Por aqui, reforçamos mais uma vez que os estudos de vida real têm em geral demonstrado a proteção de vacinas contra a Delta e todas as outras variantes, especialmente em se tratando de hospitalizações e mortes. 

REFORÇO, JÁ?

À noite, a Pfizer divulgou um comunicado informando que pediu à FDA (a Anvisa dos Estados Unidos) aprovação para uma dose de reforço de seu imunizante, após seus estudos indicarem que isso gera um aumento de 5 a 10 vezes na potência dos anticorpos. A empresa também pretende iniciar pesquisas para formular uma vacina voltada para a Delta. No texto, diz acreditar que “uma terceira dose possa ser necessária dentro de 6 a 12 meses após a vacinação completa”, citando o “surgimento contínuo de novas variantes”.

Mas é preciso ter calma quanto a isso, porque a preocupação da farmacêutica (que, vale lembrar, tem interesse em vender mais doses) contradiz as evidências disponíveis até agora.

A FDA se manifestou prontamente, em uma nota conjunta com o Centro de Controle e Doenças do país: “Estamos preparados para adotar a dose de reforço quando e se a ciência demonstrar que isso é necessário”, afirmam.

Por enquanto, o entendimento é o de que nem mesmo um reforço anual, como o que acontece com a gripe, será necessário, porque o SARS-CoV-2 sofre mutações muito mais lentamente.

BOA NOTÍCIA

A Roche suspendeu seus direitos de patente sobre o tocilizumabe em países de baixa e média renda durante a pandemia. Como dissemos esta semana, a OMS recomendou que a droga seja usada em pacientes com covid-19 grave, mas ela é caríssima, e a Roche é o único produtor mundial.

Uma jovem grávida, em uma imagem de arquivo.CORBIS

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