No TaquiPraTi
Um defunto na cadeia. Caso único de prisão perpétua além da vida. Mesmo depois de morto no sábado (11), Abimael Guzmán, 86 anos, continua preso. Sua esposa Elena, também encarcerada, pediu para sepultar o marido com base na lei que determina a entrega do cadáver aos familiares, mas na quinta (16), o Congresso do Peru modificou às pressas a legislação promulgada no dia seguinte pelo presidente Pedro Castillo em edição do Diário Oficial. Agora, cadáver de terrorista pode ser cremado e os restos mortais dispersados em lugar e data não revelados, evitando assim peregrinação e romaria ao túmulo. As cinzas serão lançadas ao mar. Quando? Uma incógnita.
A notícia me toca de perto porque fui colega de Abimael Guzmán no Programa de Mestrado da Universidad Nacional de Educación, em Lima, onde ambos éramos professores. Ao longo de três anos, mantivemos contatos formais e esporádicos, um deles em setembro de 1976, quando sai, como todas as sextas-feiras, para dar minha aula no prédio da av. Salaverry, em Lima. Lá chegando, fui avisado que no lugar da aula haveria ato em homenagem ao líder chinês, Mao Tse Tung, falecido no dia anterior. Esse sim, enterrado com todas as pompas, depois de governar a China por 27 anos.
No pequeno auditório, luzes apagadas, apenas duas velas acesas iluminavam a sombra de Abimael Guzmán, que presidia a cerimônia e, no breve discurso de abertura, recordou sua primeira visita à República Popular da China, em 1965, em plena Revolução Cultural. De volta ao Peru, fundou o Partido Comunista del Peru-Sendero Luminoso, que no início atuava abertamente, só cairia na clandestinidade em 1980 com o início da “guerra popular”, responsável em duas décadas de luta por 70.000 mortos, metade deles executados pelas forças da repressão e a outra pelos guerrilheiros. Dizem.
São Mao
Abimael deu a palavra a um aluno, que retratou para o público silencioso e reverente a vida exemplar de Mao, “um bebé prodígio, um gênio”. A narrativa, que o canonizava, parecia extraída do Flos Sanctorum – o livro sobre a biografia sem mácula de santos e mártires do cristianismo, sempre olhada com desconfiança. Confesso que, apesar de admirar Mao, eu assistia a tudo com distanciamento crítico, mas quando o orador interrompeu sua fala com um choro convulsivo, o grotesco se tornou sublime. Ele soluçava, não conseguia mais falar. Lágrimas aos borbotões. Seu choro era verdadeiro, de quem perdia um pai.
Para substituí-lo, Abimael chamou outro ex-aluno seu da Universidad Nacional San Cristóbal de Huamanga em Ayacucho, no centro dos Andes, que deu continuidade ao ritual com leitura de frases do Livro Vermelho de Mao sobre a dialética e como identificar nas lutas sociais a contradição principal e a secundária. Equiparou o “catecismo vermelho” a uma arma revolucionária, uma “bomba atômica espiritual” capaz de operar milagres, ajudando veterinários a castrar porcos e camponeses a proteger plantações das pragas. Lembrou que já idoso o “grande timoneiro” havia nadado 30 km no rio Yang Tsé num espetáculo demonstrador de sua forma física.
Abimael encerrou o ato com frase extraída do Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana, de autoria de José Carlos Mariátegui, que deu nome à facção: “El marxismo-leninismo es el sendero luminoso del futuro”. Os mestrandos, em sua maioria senderistas, defendiam a revolução camponesa no molde maoísta, numa salada de Mao com Mariátegui temperada com doses de fanatismo. Semanalmente, o dogmatismo emergia na disciplina Metodologia da Pesquisa que eu ministrava. Os acontecimentos da semana sempre invadiam a sala de aula, como ocorreu em 1975.
Testemunhas de Mariátegui
Foi assim: o governo do general Juan Velasco Alvarado restabeleceu o diálogo com Cuba, oficializou a língua quéchua, reformou o sistema educativo e fez uma reforma agrária com o lema libertário de Tupac Amaru “Campesino, el patrón ya no comerá más tu pobreza”. Apesar disso, era classificado pelos senderistas de “fascista”, termo usado como ofensa e não como categoria analítica. Um dia, dividi com um traço de giz o quadro negro. De um lado, coloquei: Fascismo. De outro: Governo Velasco. Pedi que apontassem as características de cada um. Não souberam estabelecer a correlação entre um e outro. Um aluno chegou a dizer como um ato de fé:
– El Gobierno es fascista porque Mariátegui lo dijo.
Mariátegui, pensador peruano marxista conhecido internacionalmente por sua originalidade e morto em 1930, não podia tipificar algo que ainda não havia acontecido. Argumentei que a fidelidade ao seu pensamento devia se centrar no método de análise, que ele soube usar para entender o Peru de seu tempo. Tomá-lo ao pé da letra era agir como algumas seitas com a bíblia. Aliás, os críticos ao fanatismo do Sendero apelidaram seus militantes de “Testigos de Mariátegui” numa referência às “Testemunhas de Jeová”.
Na aula seguinte, copiei três frases no quadro e pedi que comentassem. Uma do Opinión Libre, jornal de ultradireita, outra do general Velasco, ambas criticadas com veemência pelos alunos senderistas por serem “produtos do fascismo”. A terceira frase atribuída a Mariátegui foi elogiada por sua “genialidade”. Revelei então a troca proposital de autores: a frase elogiada era, na verdade, do general Velasco, em seu discurso no Congresso de Americanistas escrito com assessoria de Darcy Ribeiro. Já a atribuída ao jornal ultradireitista, que eles criticaram, era de Mariátegui.
– Haya de la Torre será portador de un fervoroso mensaje a la juventude – escreveu Mariategui sobre a rebelião estudantil na Universidade de Córdoba, Argentina, em 1918, quando Haya se preparava para presidir a Federação de Estudantes do Peru. Mas depois o velho político trocou de lado, o que tornava verossímil seu uso pela direita, em 1975, no contexto da propaganda de um comício por ele convocado.
A quarta espada
Minha relação com os alunos era tensa, mas relativamente amistosa. Diante da sala calada, comentei que aquele era um minuto de silêncio pela morte do dogmatismo, mas o representante da turma tirou outra lição:
– Camaradas, isso prova que não podemos confiar em citações feitas por professores revisionistas.
No entanto, no intervalo, um aluno que não me viu entrar na cantina, comentava para seu colega:
– Hoy el maestro nos ha cagado.
Foi o maior elogio que ouviu sobre o meu trabalho docente.
A última vez que encontrei Abimael Guzmán ocorreu no Seminário de Pesquisa em Educação, final de 1976. Com outro colega, Carlos Kawata, apresentamos uma ponencia sobre Ciência e Ideologia. Um aluno senderista fez uma intervenção nos espinafrando. Propus:
– Vamos dividir o debate em duas etapas. A primeira para as ofensas, com as quais estou habituado. A segunda para discutir o conteúdo do nosso trabalho.
Abimael, ali presente, se absteve de falar, com um ar enigmático que estimulava o culto à personalidade. Ele se autodenominou “a quarta espada do comunismo” atrás apenas de Marx, Lenin e Mao. Depois disso, acompanhei sua trajetória através dos jornais. Levado ao tribunal dentro de uma jaula e condenado à prisão perpétua, permaneceu encarcerado 29 anos. El Comercio comemorou a morte do “monstro” e o classificou como “o maior genocida da história do Peru”, ignorando massacres cometidos pelo poder político desde Francisco Pizarro, no séc. XVI, até as carnificinas de Barrios Altos e La Cantuta comandadas por Alberto Fujimori.
Chamar Abimael de “monstro” e cuspir sobre seu cadáver não ajuda a entender e mudar o Peru. Venerá-lo em romaria a um túmulo inexistente também não. O “Sendero luminoso” errou no uso condenável do método terrorista, mas não na necessidade, que não pode ser desqualificada, de lutar contra a desigualdade social, a miséria, a injustiça e a violência do Estado responsável por desaparecimentos, assassinatos e violações dos direitos humanos. Que o sendeiro nebuloso por ele trilhado seja efetivamente iluminado para a caminhada das novas gerações! Que o cadáver de Abimael possa, enfim, sair de sua prisão!
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