Muita gente fica horrorizada – com razão, evidentemente – ao ver o Talibã impondo seus costumes, fé e ideologia à população afegã em geral. Por outro lado, naturaliza a ideia de impor aos povos tradicionais os modos ocidentais. Essas pessoas muitas vezes são movidas pelas melhores intenções; acreditam piamente que não exista modo de vida melhor que o seu. Só que desde que foi promulgada a Constituição de 1988, os indígenas têm os mesmos direitos e deveres que qualquer cidadão brasileiro. Isso inclui liberdade de escolha. Se eles vivem como vivem, é porque assim desejam. E esta mesma Constituição prevê que o Estado brasileiro tem a obrigação de proteger seus cidadãos, estejam eles dentro ou fora das terras indígenas. No caso de povos isolados ou de recente contato, essa responsabilidade deveria ser redobrada – assim como são as ameaças.
O dicionário define genocídio como “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, ou religioso”. Jamais saberemos quando se deu o início do fim dos Piripkura, por exemplo. É uma história cheia de lacunas, que jamais serão preenchidas: oficialmente, só foram contatados nos anos 1980; mas já no fim do século XIX, começaram a ser caçados por seringueiros, e na década de 1940 o território deles, que fica no noroeste de Mato Grosso, foi invadido por grileiros e madeireiros. Rita Piripkura, a última mulher de seu povo, deixou há cerca de 40 anos seu território ancestral, a contragosto. Hoje, vive numa aldeia Karipuna, em Rondônia. Ela conta que o último grande massacre aconteceu entre os anos 1960 e 1970, quando restavam apenas 20 indivíduos. Atualmente, só se tem notícia de dois: seu irmão, Baita (ou Monde’i), e um sobrinho, Tamandua (sem acento mesmo, ou Tikum). E seus dias podem estar contados. Com eles, podem desaparecer sua língua, derivada do tupi primitivo, e saberes que têm garantido a sua sobrevivência.
Se não podemos afirmar quando começou o genocídio Piripkura, aquele que pode ser o seu último suspiro tem data conhecida: 18 de março de 2022. Até semana passada essa data era 18 de setembro, mas a pressão de órgãos indigenistas levou o governo brasileiro a adiar esse momento em seis meses – mas não a eliminar de vez a ameaça. Este marco só torna legal um crime em andamento. Segundo a Funai, atualmente há 237 processos de demarcação de terras indígenas que dependem apenas da homologação presidencial. Como os processos de demarcação se movem a passos de cágado, a entidade baixou uma norma em 2008, que restringe a entrada de estranhos nesses territórios.
Essa proteção deveria ser renovada por tempo suficiente para a conclusão desses trabalhos; a última vez que isso aconteceu foi em 2018. Conseguirá, agora, o governo brasileiro fazer, em apenas seis meses, o trabalho de identificação e demarcação que não conseguiu concluir em três anos – ou 41, se considerarmos o primeiro registro do povo, em 1980? Sem a proteção integral do território até a identificação e homologação da TI, Baita e Tamandua – e outros Piripkura que porventura estejam escondidos na mata – serão abandonados à própria sorte.
A Funai foi criada em dezembro de 1967, em plena ditadura, com o objetivo de “promover e proteger os direitos dos povos indígenas do Brasil”. O atual governo entregou as rédeas dela para ruralistas e religiosos fundamentalistas. E ela se tornou a maior inimiga de quem devia defender. Por exemplo, em fevereiro deste ano a fundação baixou a Instrução Normativa 9, que escancarou as portas para invasores em áreas em processo de demarcação. Mas nem precisava, pois a Terra Indígena (TI) Piripkura, que tem 243 mil hectares de área, já tinha sido a mais devastada em 2020, entre as que vivem isolados: 962 hectares foram abaixo, 95% deste total somente entre agosto e dezembro. Em junho e julho deste ano, ela perdeu mais 220. Porém, a maior ameaça para os indígenas está no subsolo.
Em dezembro de 2020, o governo federal lançou o primeiro de uma série de estudos, elaborado pelo Serviço Geológico do Brasil, que indica áreas onde há mais possibilidades de haver metais preciosos no norte do Mato Grosso. E deu a largada para mais uma corrida do ouro. Entre 1994 a 2020, havia 119 requerimentos de mineração na área; depois da divulgação dos estudos, houve mais 202, um aumento de 70% em oito meses. Um levantamento da Operação Amazônia Nativa (Opan) apontou que os pedidos de lavra de garimpo no entorno da TI passaram de 21 processos, que abrangiam 64 mil hectares, em 2017, para 34 em junho de 2021. Isso fez a área total pular para 143 mil hectares, um aumento de 123% em três anos e meio.
Oficialmente, existem 28 povos isolados no Brasil, mas este número pode chegar a 86. As TIs Pirititi (que fica em Roraima), Jacareúba/Katawixi (no Amazonas) e Ituna/Itatá (no Pará) também vão perder a proteção em breve: a da primeira, que tem quase metade de sua área (47%) ameaçada pela grilagem, expira em 5 de dezembro; a última, que foi a terra indígena mais desmatada em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, fica ao deus-dará em 9 de janeiro de 2021. Afora a perda do conhecimento único que esses povos guardam, nossa geração vai carregar esses genocídios em sua consciência?
* A imagem que ilustra este texto é do projeto The Crying Forest, do artista francês Philippe Echaroux.