Rondon e seu hóspede americano: rindo da dúvida. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

O marechal Rondon ressuscitou com o corpo de Chico Díaz – um atorzaço – na minissérie “O Hospede Americano” dirigido por Bruno Barreto, que estreia neste domingo (26) no canal HBO Max. O hóspede é o ex-presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, que em 1914 explorou com o então coronel Rondon um rio encachoeirado localizado no território dos índios Cinta-Larga, na Chapada dos Parecis, que nem constava no mapa. Era o rio da Dúvida.

(Abro parêntese. Um amigo me pediu para comentar o discurso de Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU, mas o palavrório delirante e mentiroso dispensa comentários. Foi tão contagiante que infectou o próprio ministro da Saúde, autor de um cotoco, e indiretamente o ministro das Relações Exteriores que apontou arminha com o dedo. O discurso nos matou de vergonha e foi motivo de chacota internacional. Com todo respeito, senhores senadores, invoco o meu direito de ficar calado sobre o tema).

Retorno, portanto, ao lançamento do filme, que me fez lembrar antiga crônica – “Rio da Dúvida ou não rio? Rondon, Roosevelt e a selva” – escrita quando conheci Tweed Roosevelt, bisneto do ex-presidente, em 1992. Nós dois – um pelo lado americano e o outro pelo brasileiro – éramos os historiadores da expedição que seria então reconstituída.

Homem de negócios, Tweed reservou 500 mil dólares para percorrer mais de 1.500 quilômetros, com o objetivo de avaliar as alterações ocorridas entre 1914 e 1992 no bioma amazônico da floresta, nos padrões de colonização, na situação das populações indígenas, na distribuição e diversidades das espécies animais e vegetais, tentando se antecipar à pergunta que Roosevelt faz a Rondon-Chico Diaz:

– O senhor acha mesmo que as pessoas vão se contentar em derrubar só uma árvore ou caçar um único bicho por vez quando isto aqui estiver interligado ao resto do Brasil?”

O que mudou

Esta pergunta deveria ser respondida pelos dois cronistas da expedição de 1992:  Tweed e este vosso humilde servidor. Ele era o bisneto. E eu? Como é que entrei nessa canoa? Como Pilatos no Credo: de gaiato.  Foi assim. Os gringos queriam refazer a expedição, mas esqueceram de incluir nela cientistas brasileiros. Pode, Arnaldo? Não, a regra é clara! O Decreto 98.830/90 que regulamenta atividades de pesquisa de campo de estrangeiros no Brasil exige presença obrigatória de brasileiros nesse tipo de atividade. Por isso, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) brecou a expedição, exigindo o cumprimento da cláusula citada.

Foram escalados, então, dois cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). No entanto, o CNPq exigiu mais: a presença de um historiador brasileiro. Onde encontrá-lo? Corre daqui, corre dali, os gringos localizaram pesquisa cadastrada na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) sobre a Expedição Rondon-Roosevelt, coordenada por esse professorzinho filho da dona Elisa, que foi chamado às pressas para almoçar com Tweed e um casal de americanos no Rio Caesar Park Hotel, em Ipanema.

Posto que meu inglês é macarrônico, a nossa conversa foi feita em francês e aí ele macarronava mais do que eu. Só depois fiquei sabendo da notável coincidência: Rondon também não falava inglês, Roosevelt não entendia bulhufas de português, os dois se comunicavam num francês cachorri très jolie. No almoço, o gringo disse que o embaixador americano tinha audiência marcada com o então presidente Collor para cobrar apoio oficial à Expedição e financiar o lado brasileiro.

Sei lá se era verdade! O certo é que no dia 20 de fevereiro já estávamos em Manaus. Apresentamos o projeto no auditório do ICHL da Universidade Federal do Amazonas. Lá estava eu ao lado dos gringos e do historiador Luís Bitton, coordenador regional do IPHAN.

Fude truque

A expedição programada para sair no final de fevereiro de Vilhena (RO), onde o rio nasce, devia terminar, em abril, em Novo Aripuanã (AM). Para isso, a empresa New Century Conservation Trust Inc havia providenciado tudo: canoas infláveis, motores de popa, cadernetas de campo write-in-the-rain impermeáveis e outras parafernálias.

E a comida nesses dois meses? Nada de peixe, farinha, murupi ou quinhapira. Só rango de astronauta e festifude enlatado de fude-truque. Aquilo já me deixou meio cabreiro. Ainda por cima os gringos queriam que meus gastos de viagem fossem cobertos por uma instituição brasileira. Desisti. Fiz aquele gesto americano de OK – a tradução mais perfeita de “taquiprati” – e pulei fora da canoa. Fui cuidar da minha vida na universidade e navegar nos arquivos do Rio para a pesquisa do Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo. Eles foram pra Rondônia. Na despedida, fizemos promessas mútuas, jamais cumpridas, de que trocaríamos informações.

Das duas expedições, o relato da primeira, de 1914, é bastante detalhado. Além dos escritos de Rondon, tem um livro de Roosevelt, cujo título em português é “Nas Selvas do Brasil”. Lá, ele conta que a viagem durou dois meses, percorreu um rio perigoso e traiçoeiro que tragou cinco das sete canoas. A expedição passou 48 dias sem ver um único ser humano. Enfrentou piuns, carapanãs, abelhas, mutucas, formigas de fogo, cobras. Dois brasileiros morreram durante o trajeto.

Nessa aventura, a expedição de 1914 coletou farto material sobre mais de 2.500 aves, cerca de 500 mamíferos, inumeráveis répteis, batráquios e peixes, muitos dos quais desconhecidos da ciência ocidental. Seu principal feito, no entanto, foi colocar no mapa da Amazônia um rio – o rio da Dúvida – que não se sabia se era afluente do Tapajós ou do Madeira. Os índios sabiam, mas a sociedade brasileira ignorava as línguas indígenas.

Rio da Dúvida?

Aliás, continua ignorando. Um dos atores é Tauã Ferreira da Silva Terena – etnia que fala uma língua Aruak, mas que no filme interpreta um Xavante, de língua Macro-Jê, encarregado de fazer a ligação da expedição com os povos da Amazônia, como se existisse uma única língua indígena, quando muito depois, em 2010, o censo do IBGE registrava a existência de 274 línguas indígenas, algumas tão diferentes de outras como o português é do alemão. No entanto, a dúvida foi, enfim, desfeita. O rio, rebatizado como rio Roosevelt, é afluente da margem direita do Madeira. Esse foi o resultado da viagem original de 1914.

E a reconstituição da expedição em 1992? Bem, os gringos, que haviam prometido mundos e fundos, nos deixaram apenas os mundos e ficaram com os fundos. Não me interessei em saber se eles publicaram algum livro ou fizeram algum filme. O Tweed, que continua vivinho da silva, agora com 80 anos, declarou num documentário para a TV que na região percorrida “nothing had changed and everything had changed” no intervalo de oito décadas. Sabedoria enigmática. Sinceramente, precisava gastar 500 mil dólares para tal conclusão?

Ah, antes que me esqueça: os jornais de Manaus de 21 de fevereiro de 1992 publicaram a foto do Tweed e comentaram que ele, aos 26 anos, esteve no festival de Woodstock, em 1969. Não se sabe se lá fumou um baseadinho ou se, como o Bill Clinton, fumou, mas não tragou. Essa é a dúvida que até hoje não foi desfeita. Rio da dúvida? Ou não rio? De qualquer forma, não perco o filme com o Chico Diaz, cujo personagem morre se preciso for, mas nunca matará um índio, coisa corriqueira na história do país, especialmente no governo Bolsonaro.

P.S.1 Com 128 inscritos em Angra dos Reis e cerca de 100 em Duque de Caxias, o Curso “Povos Indígenas no Estado do Rio de Janeiro: Relações étnico-raciais para uma Educação Antirracista” se destina à Formação Continuada de Professores das redes de ensino dos dois municípios. Na terça, 21 de setembro, foi ministrada aula por Tapixi Guajajara, liderança da Marcha das Mulheres Indígenas e por este locutor que vos fala. A abertura foi feita com vídeo contundente de Sônia Guajajara.

P.S. 2 – O mais novo mestre na praça: o guarani Nhandewa Tiago de Oliveira defendeu na sexta (24/09) a dissertação “Perspectiva Guarani Nhandewa sobre Formação Intercultural de Professores Indígenas de São Paulo: Ancestralidade, Espiritualidade, Cosmologias e Línguas Indígenas” no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). A banca constituída por Marta Amoroso (orientadora), Valéria Macedo (UNIFESP), Wilmar D ´Angelis (UNICAMP) e José R. Bessa (UNIRIO-UERJ) destacou a relevância da pesquisa e recomendou a sua publicação.

A UNICAMP, a USP e a UNIFESP aguardam agora que Vanderson Lourenço, professor indígena da etnia Guarani Nhandewa, formado em História e diplomado no Magistério diferenciado Kwaa-mbo’e, escolha uma dessas instituições para fazer sua pesquisa. A palestra de Vanderson “O fluxo vital da língua Guarani-Nhandewa” no VIII ENCONTRO PAULISTA QUESTÕES INDÍGENAS E MUSEUS, em Tupã-SP é citada na dissertação de Tiago de Oliveira.

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