Telegram abriga pornografia e venda de armas e é potencial ‘vilão’ das eleições

Aplicativo cresce de forma acelerada no país e vira terra sem lei para crimes variados

Por Guilherme Caetano/O Globo, na Fundação Astrogildo Pereira

“Alguém tem vídeo de incesto aí?”, pergunta uma pessoa. “Tenho, me manda PV (mensagem privada)”, responde a outra. No meio da troca de mensagens, pipocam vídeos pornográficos de mulheres e até de meninas, menores de idade. Elas não sabem que suas fotos estão circulando e sendo comercializadas para dezenas de milhares de homens.

Diálogos como este acima podem ser encontrados facilmente em grupos do Telegram, serviço de mensagens concorrente do WhatsApp e que passa por um boom de popularidade no Brasil. Atualmente, já está instalado em 53% dos smartphones no país, taxa que era de apenas 15% em 2018, segundo levantamento site MobileTime em parceria com a empresa de pesquisas online Opinion Box. 

Sem representação legal no país nem moderação de conteúdo e indiferente às tentativas de contato da Justiça a 12 meses da próxima eleição, a plataforma tem se tornado uma dor de cabeça para o poder público brasileiro, e algumas características preocupam especialmente pelo potencial de uso descontrolado nas eleições. Com grupos para até 200 mil pessoas e canais com capacidade ilimitada de inscritos (no WhatsApp, grupos têm limites de 256 membros), o Telegram é um terreno fértil para propaganda em massa.

0Até aqui, o presidente Jair Bolsonaro está muito à frente de seus possíveis concorrentes no aplicativo. Seu canal bateu na última sexta-feira a marca de um milhão de inscritos. Dentre potenciais presidenciáveis, Lula ocupa o segundo lugar, mas muito distante, com apenas 35 mil inscritos. O modelo que permite uso mais massivo e viral do aplicativo preocupa as autoridades não apenas pela difusão de propaganda sem controle nos canais de candidatos e partidos, mas principalmente pelo terreno sem lei que pode ser fértil para fake news e outras irregularidades praticadas por apoiadores.

Ilegalidades em série

A preocupação, porém, vai bem além da questão eleitoral. O GLOBO mergulhou durante três dias no submundo de links secretos do aplicativo, mas precisou de poucas horas para conseguir acessar conteúdos como pornografia infantil, vídeos de tortura e execuções, apologia ao nazismo, comércio ilegal e uma rede de desinformação sobre vacinas.

Parte desses assuntos circula em grupos secretos, acessíveis apenas a quem encontra ou recebe os links de entrada. Como algumas publicações envolvem crimes, a linguagem é cifrada. Para não serem rastreados, o termo “CP” (child pornography) aparece geralmente simbolizado por emojis, a palavra “vacina” é escrita de ponta-cabeça, e “nazi” aparece com tipografias góticas, por exemplo. 

Diferentemente do WhatsApp, em que os usuários não conseguem se conectar a grupos aos quais não são convidados, no Telegram esses espaços podem ser públicos desde que configurados para aparecer na ferramenta de busca do aplicativo — inexistente no concorrente.

Essa possibilidade criou uma infraestrutura digital em que ambientes secretos podem ser acessados por qualquer usuário. Com capacidade para até 200 mil pessoas, esses locais funcionam como “tocas na superfície” com ligação a túneis mais profundos, onde criminosos agem.

Em grupos de vazamentos de nudes e vídeos pornográficos, por exemplo, é comum que administradores vendam acesso a salas VIP, alimentadas com conteúdo exclusivo.

A comunidade de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) e simpatizantes de armas são outro público assíduo de grupos secretos do Telegram. Em espaços que chegam a dezenas de milhares de pessoas, revólveres, fuzis, munição e acessórios bélicos são comercializados sem qualquer regulamentação.

Tortura e deboche

Conteúdos violentos fazem parte dessas comunidades. Vídeos de pessoas sendo torturadas e assassinadas são compartilhados em meio a comentários de deboche dos membros, que as identificam como “bandidos”.

Há grupos secretos em que os administradores comercializam cédulas falsas de dinheiro e dados pessoais por meio de programas automatizados. Neste caso, o membro digita o CPF da pessoa cujas informações ele quer obter, e um robô, associado a uma base de dados externa, as publica no grupo. O GLOBO acessou um grupo em que o administrador vende planos semanais, quinzenais e mensais para acesso a buscas mais robustas. O preço varia de R$ 30 a R$ 200. 

O culto a Adolf Hitler, líder do Partido Nazista e ditador da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, também está a um clique de qualquer usuário do Telegram. Menores e mais pulverizados, grupos voltados a compartilhamento de material nazista, racista e antissemita são diversos. Existe, inclusive, um canal que cataloga os links de acesso a esses nichos secretos para disponibilizá-los aos simpatizantes. São listados às centenas. 

O advogado criminalista Wellington Arruda diz que são crimes o comércio de armas e de material pornográfico sem autorização e a apologia ao nazismo, mas que é incipiente o número de pessoas responsabilizadas por crimes cometidos por meios digitais:

— Os crimes que atingem o senso comum, como a pornografia infantil e outros ligados à violência, acabam tomando maior proporção porque se comunicam facilmente com o homem médio, enquanto casos grandes passam ao arrepio da lei e dos holofotes.

Fundado em 2013 na Rússia pelos irmãos Nikolai e Pavel Durov, o Telegram funciona na nuvem e tem sede em Dubai. Nos últimos anos, mudou de jurisdição várias vezes para fugir de problemas regulatórios e garantir sua política de mínima moderação de conteúdo.

Leonardo Nascimento, professor da UFBA que pesquisa o ecossistema de desinformação do Telegram ao lado de Letícia Cesarino (UFSC) e Paulo Fonseca (UFBA), define o aplicativo como uma “deep web pronta-entrega”. Ele se refere à “camada” da internet que não pode ser encontrada por buscadores como o Google, o que garante o anonimato do responsável pelo ambiente e dos visitantes.

— Na década de 1990, as pessoas precisavam de uma parafernália de softwares e grande conhecimento técnico para entrar na deep web. Já o Telegram propicia absoluto anonimato para formar sua comunidade à margem da lei.

A autodestruição de mensagens, os grupos secretos com até 200 mil pessoas, o anonimato e a ferramenta de busca interna são características, segundo Nascimento, que tornam o Telegram uma ferramenta poderosa para a atuação de criminosos.

— O Telegram é um iceberg. O que está na superfície é 10%, 15% do que realmente existe de forma protegida. Após a Segunda Guerra a humanidade criou a ONU para legislar sobre guerras e direitos humanos. Vamos precisar também de uma ONU para as plataformas digitais. 

Grupos negacionistas da vacina no Telegram
***


Ilustração de Guidacci

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

15 + 16 =