Decisão do STF de equiparar injúria e racismo ainda vai demorar a fazer efeito, avaliam juristas

Corte definiu que crimes de injúria racial não irão mais prescrever. Especialistas ouvidos pela Ponte lembram que viés da polícia e juízes brancos são empecilhos para lei valer: “não podemos ser ingênuos”, diz colunista

Por Gil Luiz Mendes, na Ponte

Crimes de injúria racial não serão mais prescritos. O Supremo Tribunal Federal decidiu que delitos deste tipo passarão a se enquadrar como racismo, que de acordo com a Constituição Federal não tem prazo para deixar de valer. Dos nove ministros que julgaram a questão, apenas Nunes Marques votou contrário à mudança no crime racial.

Essa decisão se deu por conta de um caso ocorrido em 2013, envolvendo Luzia Maria da Silva e uma frentista de um posto de gasolina. Ao informar a cliente que o posto não estava aceitando pagamentos feitos em cheque, a funcionária foi xingada de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida”. Pelas ofensas, Luzia foi enquadrada no artigo 140, parágrafo 3º, do código penal, que tipifica a conduta como crime de injúria qualificada pelo preconceito.

A defesa da agressora recorreu ao Superior Tribunal de Justiça pedindo a extinção da pena e a prescrição do caso, já que a cliente tinha mais de 70 anos quando recebeu a sentença. O mesmo pedido foi feito ao STF, que definiu, na quinta-feira (28/10) que crimes de injúrias não prescrevam. “Isso foi ou não uma manifestação ilícita, criminosa e preconceituosa em virtude da condição de negra de vítima? Logicamente, sim. Se foi, isso é a prática de um ato de racismo”, afirmou o ministro Alexandre de Morais em seu voto sobre a questão.

A ação da Suprema Corte foi vista como positiva por alguns juristas, mas outros ativistas da causa racial veem novos problemas existentes, mesmo com a nova definição. Os argumentos vão desde a individualização de casos onde o preconceito foi cometido por instituições, até sobre quem são as pessoas que aplicam as punições em casos de crimes raciais e como elas interpretam essa nova norma.

“É um reconhecimento sobre a gravidade que existe nos crimes raciais, mas não podemos ser ingênuos em acreditar que essa decisão por si só tenha sido um grande avanço na luta antirrascista. Ela é reflexo de um tensionamento que existe no país, diante de tantos caos que ocorrem, que de certa forma constrange o judiciário”, analisa Erin Fernandes, da Frente Distrital pelo Desencarceramento e um dos membros da Coluna Abolição da Ponte.

Para Antônio Celestino, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares e da Articulação Negra de Pernambuco, a decisão do STF é um dos avanços mais importantes dentro das leis que combatem o racismo nos últimos tempos. “Acho que a gente começou a dar um passo para um outro grau de discussão. Acho que conseguimos tirar dessa decisão coisas muito positivas para a luta antirrascista no Brasil.”

Dúvida sobre futuras decisões

Se o texto da lei foi melhorado, ainda não é possível avaliar como serão os julgamentos dos crimes envolvendo questões raciais. O advogado criminalista Flávio Campos lembra que a  maior parte da magistratura no país é formada por pessoas brancas e que ao longo do tempo vem atenuando questões graves de preconceitos como crimes de injúria, que prevê penas mais brandas.

“É muito complicado juízes considerarem o ponto de vista de uma vítima que procura à Justiça após sofrer um ato racista. Eles não sabem o sentimento de humilhação que aquela pessoa passou por ser negra. Acho que a gente precisa avançar muito neste debate sobre as pessoas que julgam esses casos paralelamente a estes ajustes na legislação feito pelo STF.”

Para além de quem determina o cumprimento da lei, Antônio Celestino reforça que todo o sistema de justiça precisa ampliar o seu entendimento sobre crimes raciais. De acordo com o advogado, existe precipitação na interpretação de delitos por conta da raça desde o começo dos inquéritos. “O pé de tudo isso está na Polícia Civil, da forma que ela imputa esse crime quando recebe uma queixa. A gente sabe bem como nossa polícia é formada e o viés racista que elas têm.”

O Instituto de Segurança Pública do Governo do Rio de Janeiro fez um estudo que mostrou que no ano de 2019 duas pessoas por dia foram vítimas de racismo no estado. A maioria dos crimes foram contra mulheres com idade entre 40 e 59 anos. Em 42,9% dos casos, as vítimas não possuíam nenhuma relação com os autores.

Individualização de casos

Um ponto que é sensível e gera debate é quando deve ser aplicado o crime de racismo ou o de injúria racial. No entendimento de alguns juristas, o racismo é aplicado quando a ofensa atinge a coletividade ou um grupo de pessoas, enquanto a injúria ocorre quando alguém é ferido na sua honra por ataques por conta da cor da sua pele. 

Flávio Campos defende que essa é uma forma simplista e equivocada do entendimento da lei. “Eu já atendi um caso de uma pessoa que foi expulsa de um restaurante apenas por conta da sua cor. Como um fato como esse não pode ser classificado como racismo? Mesmo antes da decisão do STF que prever que estes crimes não podem ser prescritos, há a necessidade aplicação do crime de racismo em casos claros de descriminação.”

A decisão de não deixar que crime de injúria caia no esquecimento dos tribunais, é um fator que pode fortalecer a lei dos crimes raciais, segundo Celestino. “A tendência é que a aplicação de penas como crime de racismo aumente e casos a questão de apenas por injúria caia em desuso com o passar do tempo”.

“Muitas vezes a defesa de pessoas que cometeram crimes raciais utilizavam da estratégia de sempre recorrer e fazer de tudo para que os julgamentos fossem adiados e decisões não fossem definitivas”, relembra Erin Fernandes.

Ajude a Ponte!

Um dos espaços com maior proeminência de casos de racismo na atualidade são as redes sociais. Este ambiente tende a mudar também diante do novo entendimento dado à lei pelo Supremo. “A pessoa vai ter que pensar muito antes de proferir ofensas da internet. Aquilo que foi escrito ou dito hoje, pode ser usado contra a pessoa por anos. Vai ser interessante de como as empresas que gerem essas redes se portarão frente a essa decisão”, aponta Antônio Celestino.

Desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, à esquerda, e presos após uma rebelião em Lucélia (SP), à direita | Crédito: Divulgação e Ponte

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