Mészáros e a obra de sua vida. Por Ivana Jinkings

Conforme desejo expresso por István Mészáros, a primeira edição mundial do mais ambicioso projeto de sua vida já está em pré-venda pela Boitempo: Para além do Leviatã: crítica do Estado. Pensado inicialmente para uma publicação em três volumes, apenas o primeiro foi parcialmente concluído em razão do falecimento do autor em outubro de 2017. A seguir, publicamos a apresentação do livro feita por Ivana Jinkings, editora e fundadora da Boitempo, além de amiga de longa data do filósofo húngaro.

No blog da Boitempo

Para além do Leviatã é o décimo sexto livro de István Mészáros que a Boitempo publica. Um livro póstumo, editado a partir de seus originais e de anotações que fez ao longo das pesquisas sobre o Estado. As obras desse marxista húngaro radicado na Inglaterra, um dos maiores filósofos que a tradição materialista histórica produziu, marcam profundamente a trajetória da editora. Não tenho como escrever uma apresentação a frio.

Conheci Mészáros em junho de 2002, quando veio ao Brasil para o lançamento de Para além do capital1, originalmente publicado em inglês em 1995. Antes, havíamos trocado algumas cartas, a partir de contato feito por Ricardo Antunes, coordenador da coleção Mundo do Trabalho, amigo e principal incentivador daquela publicação. Não era a primeira visita de Mészáros ao país – ele estivera aqui em 1983 – nem o primeiro livro publicado em português. A teoria da alienação em Marx teve edição pela Zahar em 1981. A obra de Sartre: busca da liberdadeFilosofia, ideologia e ciência social e O poder da ideologia foram publicados pela editora Ensaio em 1991, 1993 e 1996, respectivamente. A Ensaio – então dirigida por José Chasin – cumpriu importante papel na divulgação das ideias de Mészáros nos anos 1990.

A tradução de sua obra magna (1.104 páginas, em capa dura, esgotada seis meses após a publicação) foi um marco na história da Boitempo. E também o início de uma bela e profunda amizade. Desse ano em diante, István passou a se hospedar em minha casa todas as vezes que veio ao Brasil – até 2007, sempre acompanhado de Donatella2. Uma relação que se estendeu às nossas famílias: o casal Mészáros esteve com minha mãe e irmãos em Belém, sua filha e neta hospedaram-se em minha casa em diferentes ocasiões.

Foi numa vinda ao Brasil, em junho de 2011, que Mészáros mencionou pela primeira vez a ideia de publicar um livro sobre o Estado. Disse que o escrevia há tempos – convencido por Donatella de que o Estado moderno seria o grande entrave à igualdade substantiva –, e pretendia dedicar os últimos anos de vida a esse tema “vitalmente importante para o nosso futuro”.

Desde Para além do capital havia uma lacuna teórica a ser preenchida em relação a essa matéria, entendida por ele como força determinante dos conflitos de classe. Partindo de Thomas Hobbes e seu Leviatã3, postulando a atual necessidade de uma teoria marxista do Estado, dialogando crítica e afetivamente com Norberto Bobbio, contrapondo-se às ideias de Max Weber – cujo propósito não declarado seria “a legitimação e a justificação apologética do Estado capitalista e de sua ilegalidade enquanto violência” –, debatendo prioritariamente com Hegel, mas também com pensadores como Ernest Barker, John Austin e Jeremy Bentham, Mészáros traça um panorama das grandes teorias sobre a matéria para “compreender a verdadeira natureza do Estado”.

Os primeiros arquivos chegaram em 2013. Uma versão ampliada de textos preparados para serem apresentados em conferências no Brasil – que, no ano seguinte, como gostava de fazer, ele decidiu antecipar como publicação avulsa4. O plano geral da obra, em três volumes [p. 385]5, estava pronto em 2015 e previa publicações em 2017, 2018 e 2019. Em carta dessa época, ele destacou:

Como você verá no índice, este livro é constituído de três partes, correspondendo a três volumes, com aproximadamente 250-300 páginas cada. O primeiro dá uma ideia da natureza da obra como um todo, apresentando uma abordagem radicalmente diferente dos graves problemas do Estado. Para que, caso eu morra antes de completar o todo, vocês possam usá-lo, se quiserem, e continuar com essa tarefa absolutamente necessária. Acredito que você poderá publicar o primeiro volume na primavera de 2017. Posso enviar-lhe o texto completo do primeiro volume no final de agosto. O segundo poderia ser publicado em 2018 e o terceiro em 2019. Se eu ainda estiver vivo, irei ao lançamento do terceiro volume. Antes, não viajo para lugar nenhum.6

Mészáros retomava assim, em tempo integral, o plano interrompido após a publicação de sua obra fundante. O Estado seria para ele muito mais que uma construção histórica para sustentar (e manter) as bases da dominação política; o problema fundamental para o futuro e para a sobrevivência da humanidade consistiria em suplantar o Estado em sua totalidade. Não é a tarefa política imediata que move nosso filósofo, embora em nenhum momento ele a subestime. Extinguir o Estado equivale a transformá-lo, a modificar seu caráter de classe até atingir o que Marx chamou de “fenecimento do Estado”7. Mas fenecer, para Mészáros, é vencer um processo de conquista de um espaço e de um metabolismo que deve ser transformado em outro.

Em agosto de 2015, ele revelou, entusiasmado, qual seria o título da trilogia (até então tratada apenas como “A crítica do Estado”): Para além do Leviatã. Durante meses, foi mantido como um segredo nosso, desconhecido até mesmo da equipe da editora. O primeiro volume seria anunciado em novembro daquele ano, com lançamento mundial em português, pela Boitempo. Chegamos a aprovar juntos a arte da capa que agora envolve esta edição, que ele, infelizmente, não viveu para ver publicada.

Em março de 2016, István escreveu-me dizendo que precisava ter uma conversa e não poderia ser por telefone nem carta. Pediu-me para ir até a cidade onde estava morando, na costa inglesa. Algumas semanas depois, tomei um avião para Londres e, de lá, um trem para Ramsgate. Mészáros me aguardava na estação. Foram dez dias inesquecíveis, uma verdadeira imersão no universo meszariano. Rodamos a cidade e seu entorno, comemos ostras, tomamos vinho, conversamos muito. Em casa, era ele quem servia todas as refeições e insistia para que eu nem sequer lavasse a louça (no que foi solenemente desobedecido).

Pude acompanhar sua rotina, o processo de trabalho, a forma como organizava suas anotações – primeiro, rabiscando em pequenos papéis nos quais inseria algumas frases apenas, referências bibliográficas, excertos, lembretes de temas a pesquisar. Esses bilhetes eram substituídos por rascunhos um pouco maiores, que ele classificava em pastas [p. 359]. Depois dessa etapa, eram escritos os esboços mais completos, ainda à mão, que iriam tomar a forma final de texto no computador.

Uma tarde fomos a Rochester, cidade onde os Mészáros viveram, para a visita periódica ao posto de saúde em que ele tratava dos resquícios de um câncer, supostamente sob controle. Estivemos ainda na casa onde ele e Donatella moraram, que àquela altura estava à venda. O cenário era familiar: os mesmos móveis de quando eu os havia visitado, anos antes. Mas sem as flores, as vozes altas, a boa comida e a alegria daqueles tempos.

Os dias passaram voando. Horas antes de meu retorno, Mészáros desenhou, à mão, um mapa indicando como ir às livrarias próximas ao hotel onde me hospedaria por um dia em Londres [p. 361], enquanto eu tentava convencê-lo a me deixar presenteá-lo com um relógio “inteligente” (desses que vêm com botão de emergência ligado a uma pessoa próxima ou a uma central 24 horas). “Não precisa”, garantiu ele. Fiz então com que prometesse convocar a faxineira, que limpava a casa mensalmente, a ir pelo menos uma vez por semana. Tudo arranjado, fomos de carro à estação. Tomei o trem para Londres sem imaginar que aquele seria o último encontro com meu querido amigo.

Cerca de um mês antes de sua morte, em 1º de outubro de 2017, Mészáros escreveu:

Estou trabalhando muito bem. Terminei uma seção importante e estou começando a escrever a penúltima. Se tudo correr bem, espero terminar a última no início de novembro. Certamente você poderá contar com o texto completo em meados de novembro. Assim, o volume inicial poderá ser publicado nos primeiros meses de 2018.8

Essas partes, no entanto, não foram localizadas. Durante meses, Giorgio, seu filho caçula, fez buscas nos computadores, pen drives, rascunhos. Em vão. Fomos aos poucos montando o arquivo ao juntar partes enviadas à Boitempo com capítulos remetidos à Monthly Review, editora que o publica nos Estados Unidos. Coube a John Bellamy Foster, seu amigo de longa data e importante interlocutor, a composição final deste volume, tal como Engels fez com os Livros II e III de O capital, de Marx. Devemos a Foster a publicação desta obra da forma mais fiel possível ao plano original.

Agradeço igualmente os esforços de Giorgio Mészáros e o empenho decisivo de Ricardo Antunes para que a tradução brasileira fosse publicada no mesmo ano da chegada do acervo de Mészáros doado à Unicamp. Todas as providências para a vinda desse acervo, que contou com apoio da Fapesp, tiveram a inestimável colaboração de Murillo van der Laan, autor da maioria das fotos do caderno iconográfico. E como este é um empreendimento intelectual e editorial coletivo, manifesto gratidão também ao tradutor Nélio Schneider, à editora Isabella Marcatti, que se ocupou dos originais até o início da preparação dos textos, à equipe da Boitempo (em especial, Carolina Mercês e Livia Campos) e, por último – mas não menos importante –, um reconhecimento aos editores Tiago Ferro e Mika Matsuzake pela paciência e dedicação para que este livro, que eles receberam como “o mais importante lançamento de 2021”, saísse a contento.

Antes de encerrar esta apresentação, preciso esclarecer o motivo pelo qual viajei a Ramsgate, em 2016. Mészáros decidiu incumbir-me de criar e dirigir um prêmio internacional com o nome de Donatella. Honrada (e em parte assustada), aceitei a convocação, e, nos meses que se seguiram, discutimos bastante os termos e a abrangência dessa iniciativa. Agora, que finalmente podemos entregar aos leitores este volume, assumo com a Boitempo o compromisso de tornar realidade o desejo de meu velho amigo, anunciando publicamente, assim que possível, as bases do Prêmio Internacional Donatella e István Mészáros. Espero que faça jus a seu pensamento e incomparável compromisso com a humanidade.

O livro de István Mészáros tem organização, prefácio e notas de John Bellamy Foster, tradução de Nélio Schneider, apresentação de Ivana Jinkings, texto de orelha de Ricardo Antunes e capa de Ronaldo Alves.

***

Notas

1 István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa, São Paulo, Boitempo, 2011).
2 Donatella (Morisi) Mészáros, sua companheira. Nascida na Itália, em 1936, viveu com István de 1955 a 2007, data em que faleceu na Inglaterra, vítima de câncer.
3 Thomas Hobbes, Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil (trad. João Paulo Monteiro, São Paulo, Martins Fontes, 2014).
István Mészáros, A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado (trad. Maria Izabel Lagoa, São Paulo, Boitempo, 2015).
5 Todas as referências a páginas entre colchetes nesta apresentação se referem ao presente volume.
6 Mensagem de István Mészáros a Ivana Jinkings, em 9 out. 2015.
7 Ver Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2012).
8 Mensagem de István Mészáros a Ivana Jinkings, em 15 ago. 2017.

*

Ivana Jinkings fundou a Boitempo em 1995 e, atuando desde então como editora, foi responsável pela publicação das obras dos mais influentes pensadores nacionais e internacionais, que se tornaram referência em vários centros de ensino e pesquisa, abrangendo diversas áreas das ciências humanas, como economia, política, história e cultura.

Foto: István Mészáros na sede da editora Boitempo, em junho de 2011.

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