Apesar de esforços para vender programa de pagamento por serviços ambientais e atrair investidores para mercado de carbono, baixa credibilidade desestimula negócios internacionais
Por Anna Beatriz Anjos, Agência Pública
Durante a COP-26, na Escócia, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) apresentou o programa Floresta+, de pagamento por serviços ambientais, como foco de sua estratégia de combate ao desmatamento, sobretudo na Amazônia. “Uma forma de manter a floresta em pé é dando incentivos econômicos, incentivos para quem cuida”, disse o ministro e chefe da delegação brasileira Joaquim Leite ontem (11) no estande do governo brasileiro, em evento de lançamento da plataforma digital do programa.
Um dia antes, ao discursar no segmento de alto nível da conferência do clima, o ministro já havia citado o Floresta+ como alternativa para “promover o desenvolvimento sustentável da região”. E justificou: “onde existe muita floresta também existe muita pobreza”.
A fala gerou uma onda de críticas da sociedade civil presente na COP e rendeu ao Brasil, no dia 10, o segundo lugar no prêmio Fossil of the Day, atribuído pela organização Climate Action Network (CAN) aos países que mais prejudicam as negociações pelo enfrentamento à crise climática.
Especialistas ouvidos pela Agência Pública durante a conferência questionam o peso dado pelo governo ao programa que, na verdade, não é invenção do governo Bolsonaro. O Floresta+ é derivado do Floresta+ Amazônia, pelo qual o Brasil já recebeu cerca de US$ 96,4 milhões do Fundo Verde do Clima (GCF, na sigla em inglês) em fevereiro de 2019. O pagamento se deve à redução de desmatamento na Amazônia em 2014 e 2015, ainda durante a gestão de Dilma Rousseff, e as negociações para recebê-lo começaram em 2018, quando o presidente era Michel Temer.
Em julho de 2020, o atual governo aumentou a abrangência no projeto, que agora inclui todos os biomas do país. Além disso, criou novas modalidades, como o Floresta+ Bioeconomia, lançado em setembro deste ano e focado em atividades de manejo sustentável, e o Floresta+ Agro, anunciado em 27 de outubro, poucos dias antes do início da COP-26, cujo objetivo é, segundo o próprio MMA, recompensar os produtores rurais que protegem áreas de preservação permanente (APPs) e reservas legais.
O engenheiro florestal Tasso Azevedo, coordenador do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) e do MapBiomas, do Observatório do Clima, explicou à reportagem que há outras estratégias de preservação mais importantes e reconhecidas pela ciência. Ele lembra que o Brasil já foi considerado exemplo de sucesso após ter reduzido o desmatamento na Amazônia em 80% no período de 2004 a 2012.
Já nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, a média anual de desmatamento na Amazônia Legal cresceu 49,7% em relação aos dos dois anos anteriores. Dados do sistema Deter, do Inpe, divulgados hoje (12), revelam que a área de alertas de desmatamento em outubro foi a maior para o mês em cinco anos. Só na Amazônia, os números indicam um aumento de 5% de desmatamento em relação a outubro de 2020 – o recorde para outubro na série histórica iniciada em 2016, de acordo com análise do Observatório do Clima.
“Para estancar o desmatamento hoje, é muito objetivo, não tem ciência de foguete”, argumenta Azevedo. Como pilares dessa estratégia a ser adotada, ele cita a aplicação da lei, fiscalização e punição de infratores – na esfera federal, responsabilidades do Ibama e ICMBio (que perderam orçamento e independência no governo Bolsonaro) –; e o ordenamento territorial, cujas principais medidas são a criação e manutenção de Unidades de Conservação e o reconhecimento pelo Estado de terras indígenas e quilombolas – medida que, como prometeu na campanha, Bolsonaro ignorou. “Não tem como fazer um plano de combate ao desmatamento se a ciência do combate ao desmatamento – inclusive já praticada no Brasil, que já deu resultado e sobre a qual tem paper publicado no mundo inteiro – você simplesmente ignora”, pontua o engenheiro florestal.
Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade, afirmou à Pública que o Floresta+ “tem coisas boas”, mas que, como o governo federal não implementa as medidas de fato essenciais para acabar com a supressão vegetal, o foco excessivo no programa não acaba com a desconfiança da comunidade climática internacional. “Você não vem aqui fazer marketing, marketing é uma parte, mas tem que ter substância, e não tem”, ressalta. “Os dados do desmatamento estão no teto. Credibilidade é algo muito difícil de construir e muito fácil de perder. O governo Bolsonaro destruiu a imagem brasileira aqui fora, não é vindo numa COP e fazendo um estande bonito que vai mudar a percepção que derreteu nos últimos anos.”
Zerar desmatamento derrubaria as emissões brasileiras
Diferente de países cujas matrizes energéticas são baseadas em combustíveis fósseis, é do desmatamento que vem a maior parte das emissões de GEE brasileiras, segundo o SEEG. Por isso, especialistas avaliam que acabar com a supressão de florestas nativas é crucial para que o Brasil cumpra sua parte no Acordo de Paris, a partir do qual se comprometeu voluntariamente a reduzir suas emissões em 50% até 2030. “A grande emissão brasileira é por floresta, então o Brasil tem que fazer isso. Se quer ter alguma legitimidade no debate climático, precisa fazer o dever de casa. Acontece que o governo não está fazendo, ao contrário. Durante muito tempo ele incentivou diretamente a destruição florestal”, destaca Maureen Santos, professora de Relações Internacionais da PUC-Rio e coordenadora da Plataforma Socioambiental do BRICS Policy Center.
Uma boa medida para avaliar a importância do desmatamento nas emissões brasileiras é uma análise feita por Tasso Azevedo sobre o impacto que teria o real cumprimento do acordo firmado pelo Brasil, no início da COP-26, junto com cem países, de zerar o desmatamento até 2030. Seus cálculos indicam que, se a meta for de fato alcançada, as emissões brasileiras terão uma redução de 78% nesse período, o que superaria o compromisso feito no âmbito do Acordo de Paris. “Seria de longe a maior contribuição já dada para reduzir emissões de gases de efeito estufa, o que colocaria sob pressão todos os participantes dessa arena global aqui, e colocaria o Brasil em um patamar sem precedentes de contribuição e exemplo para essa nova economia”, aponta.
De acordo com Azevedo, sem zerar o desmatamento, reduzir emissões oriundas de outros setores da economia – como energia, agropecuária ou resíduos – seria insuficiente. “Cada hectare perdido hoje não volta. Você pode multar, mas ele não volta, e por isso não dá para esperar. Temos que fazer com que essas medidas que já sabemos ser efetivas voltem a acontecer.”
O governo parece saber do problema, pois, conforme revelou o site ((o))eco, não trouxe para Glasgow a taxa de desmatamento de 2021, medida todos os anos pelo Inpe e divulgada normalmente antes ou durante as conferências do clima da ONU. Em duas décadas, essa é a segunda vez que isso acontece – a primeira foi em 2016. Em coletiva de imprensa ontem (11), Joaquim Leite disse não ter visto se saíram ou não os dados por estar
“concentrado nas negociações”.
Sem bala de prata
O uso do Floresta+ pelo Ministério do Meio Ambiente como chamariz de investimentos internacionais para o mercado de carbono do Brasil também desperta a desconfiança de observadores e investidores. Hoje, o mercado de créditos de carbono no Brasil é voluntário e não regulamentado – um projeto de lei para formalizá-lo, de autoria do vice-presidente da Câmara Marcelo Ramos (PL-AM), tramita na Casa em regime de urgência. Um dos pontos mais críticos das negociações da COP-26 é justamente sobre esse tema, compreendido pelo artigo 6 do Acordo de Paris, que dispõe tanto sobre transações entre países como entre atores privados.
Embora não tenha vindo a Glasgow, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse em participação remota no estande do Brasil, no dia 5, que o mercado de carbono será “a chave para o pagamento dos serviços ambientais e da preservação do estoque de recursos naturais” e que é dele “que vamos receber o estímulo necessário para a preservação das nossas riquezas.”
Ana Toni alerta para o perigo de se eleger o mercado de carbono como “bala de prata” para as crises climática e ambiental que o Brasil enfrenta. “Ele pode talvez contribuir para acabar com o desmatamento e mudanças do clima se tiver integridade. Mais do que o tamanho desse potencial mercado, o esforço é olhar a integridade ambiental desses supostos projetos que entrarão no mercado de carbono”, aponta.
Justamente por isso persiste a desconfiança dos investidores internacionais em relação ao Brasil, diz Toni, apesar do governo se esforçar, durante a conferência, para vender uma imagem de preservação das florestas e de compromisso com a redução de emissões de gases de efeito estufa. “Eles não sabem se o governo é sério, não sabem se o Brasil vai separar o joio do trigo entre o que é um bom projeto e o que é um mau projeto. E pior: a pessoa compra uma quantidade de créditos de uma floresta supostamente em pé. No outro dia pega fogo. O que acontece com o crédito? A gente vê o governo incentivar, ou pelo menos não combater [os incêndios e desmatamento]”, destaca. “Por todas as razões, esse nível de descontrole do desmatamento super prejudica a nossa capacidade de ser levado a sério, de ser um bom partner comercial.”
*Colaboraram: Laura Scofield e Raphaela Ribeiro
—
Imagem: Discurso do ministro Joaquim Leite na plenária da COP-26 destaca ações do governo Bolsonaro e é criticado por ambientalistas – Foto: Adriano Machado/Reuters