Para juiz, negar o holocausto é como duvidar se o homem foi à Lua

Por Lenio Luiz Streck e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, no Conjur

A sentença que aceita que holocausto não existiu

Nos tempos de pós-verdades, tudo é permito, especialmente proteger a mentira com decisões judiciais que absolvem acusados da prática de crime de racismo. Foi o caso recente do juiz federal substituto da 32ª vara federal no Ceará, Danilo Dias Vasconcelos de Almeida, nos autos da ação penal nº 0809172-03.2020.4.05.8100.

Antes de qualquer coisa, por se tratar de um magistrado, é ele sabedor de que sua sentença ingressará no registro da história. Em 50 anos, quando haverá de ser produzidos pelas ciências – do Direito, da História, da Sociologia, de cuja cientificidade o juiz duvida -, pesquisa e trabalhos sobre o poder judiciário registrarão sua análise sobre o tema das falas de ódio e racismo. E é exatamente em respeito ao Poder Judiciário que escrevemos este texto.

A quase totalidade dos juízes alemães também não viu nada demais diante do avanço do nazismo. E considerou que não havia provas de que suas falas contra não arianos, judeus, ciganos causavam danos à população.

A objetividade dos fatos

Mais tarde, os mesmos juízes, confrontados com a objetividade dos fatos, imploraram pelo direito ao esquecimento ou recorreram ao “não sabíamos” para se desincumbirem de sua responsabilidade na barbárie da humanidade, que começou também com o verbo. Ernst Fraenkel, advogado e intelectual judeu, vítima deste discurso de “tolerância”, entendeu muito bem do que se tratava na sua clássica reflexão sobre judiciário e nazismo: Der Doppelstaat (“O Estado Dual”, 1941). Como o judiciário permitiu a convivência paralela da normalidade com terror?

O juiz Danilo de Almeida encontrou uma alternativa de manter esta convivência. Ao fazer suas as palavras do réu — o que é inusitado —, e assim fundamentar seu entendimento pela improcedência da acusação do Ministério Público Federal, o magistrado singelamente referendou o fato de que, “por razões histórica até óbvias” (sic), a negativa do holocausto é criminalizada na Alemanha e na Áustria.

Ou seja, para ele o terror do holocausto só atinge às sociedades alemã e austríaca por terem sido estes dois países seus protagonistas. Fora disso, não haveria maiores problemas, porque a negativa do holocausto suportaria debate sobre sua existência ou não. Uma bizarrice epistemológica.

Nunca será demais lembrar que a decisão do Tribunal Federal Constitucional alemão, que tem sido reiterada ao longo do tempo, tem por base a comprovação de que houve o holocausto e que mais de seis milhões de pessoas foram suas vítimas. Sim, esse fato existiu!

Até os perpetradores confessam o holocausto: mas o juiz duvida!

Esta comprovação não foi feita pela Tribunal. Ainda hoje há sobreviventes que relataram ao mundo o que enfrentaram, tão logo escaparam com vida. Até seus perpetradores comprovam que o holocausto existiu. Dos líderes nazistas que foram julgados nos processos de Nürnberg, passando por Adolf Eichmann até Irmgard Fuchner, todos procuram escapar de sua responsabilidade sob o argumento de que “apenas cumpriam ordens do Direito da época” ou de que “não sabiam do que ocorria”. Do outro lado, a negação do holocausto não possui nenhuma base, a não ser uma retórica intenção política de quem acredita na superioridade de uma raça sobre as outras. Todos os que negam o holocausto, covardes, dizem que não estão a ofender judeus ou outras raças, mas querem apenas reproduzir o que já ouviram, ou que preservam a liberdade de manifestação de pensamento, quando sua verdadeira intenção é liquidar esta liberdade e incentivar uma visão destrutiva do pluralismo.

Os mentirosos e propagadores do racismo

Portanto, quem nega o holocausto, como o réu da ação penal mencionada, mente e faz propaganda racista. Agora com beneplácito de uma sentença judicial. De nossa parte, desconhecemos alguma decisão onde se tenha passado “da proibição de ‘negação de fatos históricos'” à “proibição de expressar ideias que contrariem o ‘consenso científico'”, como escreveu o juiz.

A ciência é quem identifica e corrige seus erros. E não se baseia em opinião, mas em observação e comprovação. Submete suas premissas a rigoroso método para depois se manifestar. A ciência não diz o que acha: veicula o que resulta de sua longa e penosa observação; exercício a que nosso apressado juiz não parece se dedicar.

Quando o Tribunal Federal Constitucional alemão proibiu a negativa do holocausto não foi porque tudo se deu sob as ordens de um governo alemão: foi precisamente porque a liberdade de manifestação de pensamento não se presta a proteger a mentira. Já que o juiz recorreu ao holocausto e ao racismo

A bizarra comparação que o juiz fez sobre ‘o homem não ter ido à Lua’

E não é tão difícil separar a mentira da verdade. Só o é para os que querem dar longos alcance e pernas à mentira, como o juiz Danilo de Almeida. Valendo-se das palavras do réu, o juiz ainda afirma que “há quem negue que o homem foi à Lua”, na tentativa de comparar o alcance de uma afirmação ridícula, rapidamente denunciadora da idiotia de quem a profere e a repete, com as falas de ódio do discurso racista. Uma recomendação ao juiz. A filósofa Susan Neiman publicou, em 2019, Learning from the Germans — Race and Memory of Evil. Esperamos que o juiz veja a estultice que foi capaz de escrever após a leitura, pelo menos desta obra que tão bem retrata o poder das falas de ódio. Falas que o magistrado candidamente espera serem superadas pelas boas ideias, como se tal superação caísse dos céus, e não derivasse de como as coisas são, e não como deveriam ser, como advertiu Macquiavel desde 1532.

A esperança é que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região não somente reveja a sentença: mas recomende ao juiz um curso elementar de história, e faça constar história do pensamento como disciplina de seus próximos concursos públicos para qualquer dos cargos que organiza; não somente para juízes.

Não estamos maduros ainda para acreditar em fatos?

Há que se dizer a juízes como Danilo que fatos existem. Narrativas não substituem fatos evidenciados pela história. O Supremo Tribunal Federal, no caso Ellwanger, já mostrou o sentido do que representa negar o holocausto. Lembremos que Ellwanger, condenado por racismo, escrevia livros com títulos bizarros como “Acabou o Gás…O Fim de um Mito, Holocausto: Judeu ou Alemão? Nos Bastidores da Mentira do Século, S.O.S para Alemanha, O Catolicismo Traído: A Verdade sobre o Diálogo Católico-Judaico no Brasil; Inocentes em Nuremberg.  Isso de nada serve em termos de história e jurisprudência?

De mais a mais, não importa à sociedade o que o juiz Danilo pensa sobre o holocausto ou sobre o aborto ou sobre o desmatamento ou sobre Coca Cola. Deve importar ao juiz e ao Poder Judiciário o que diz o direito e o que diz a história.

Diz o juiz: “A meu ver…” ou “Vejo com preocupação a censura que querem…”. Não, não, Excelência, criminalizar discurso de ódio não é censura. E, de novo: a ação movida pelo Ministério Público não buscou a sua opinião pessoal sobre o holocausto ou quejandos. Não. Imagine-se se dependêssemos da opinião pessoal de cada um sobre as coisas do mundo. Se o juiz, por exemplo, acha que o holocausto não existiu ou se há controvérsias sobre sua existência, isso não deve ter nenhuma importância em uma decisão. Pela simples razão de que, no caso, a opinião do juiz é absolutamente equivocada.

Ademais, sempre é bom deixar que o direito decida as coisas. Ele pode nos salvar de nós mesmos.

O direito pode impedir de dizermos absurdos. Por isso, levemos o direito a sério. E deixemos que ele fale. E fale sobre fatos. Que existem!

Simples assim. E gravíssimo assim.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza.

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