Lideranças dos povos originários tiveram destaque na cúpula climática em Glasgow, onde países ricos prometeram um fundo direcionado a eles. De volta ao Brasil, já longe dos holofotes internacionais, realidade se impõe com violência
Por Felipe Betim, no El País
Os indígenas brasileiros estão, hoje, espremidos entre duas realidades paralelas. Durante a cúpula climática da ONU, celebrada entre 31 de outubro e 12 de novembro deste ano, em Glasgow, levaram a mensagem de que são parte essencial na luta pela preservação da Amazônia e denunciaram o desmonte da política ambiental promovido pelo Governo Jair Bolsonaro. Ganharam destaque e ouviram promessas de cooperação. De volta ao Brasil, longe dos holofotes da COP26 e dos países desenvolvidos que prometem proteger as terras indígenas demarcadas, a realidade se impõe com tiros, incêndios, invasões e ameaças.
“A realidade internacional não está conseguindo incidir internamente no Brasil. Nós denunciamos essas violações, há uma sensibilização, mas o risco é muito grande quando a gente retorna”, explica Dinamam Tuxá, advogado e coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O reflexo disso pôde ser visto na noite desta quinta-feira, quando foram divulgados os novos dados de desmatamento da Amazônia. São os maiores dos últimos 15 anos.
O militante indígena se refere à mais recente onda de ataques e invasões contra povos indígenas registrada nos últimos dias. As principais entidades envolvidas na causa indígena, como a Apib ou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), denunciaram pelo menos seis ameaças ou ataques a comunidades indígenas ou lideranças desde o dia 11 de novembro. Não é possível afirmar com certeza se foram deliberadamente coordenados, já que alguns parecem estar relacionados a conflitos e disputas locais. Mas, para Dinamam, tampouco pode-se dizer que são mera coincidência. “Após a COP26, onde a participação dos povos indígenas foi muito positiva, muitas coisas aconteceram, coincidentemente ou não. Nós levamos a maior delegação indígena da história das cúpulas. Então, eu vejo uma retaliação, sim, sem sombra de dúvidas”, afirma.136.5K
Uma dessas ameaças ocorreu com Alessandra Munduruku, que teve sua casa invadida e furtada entre a noite de 12 e 13 de novembro, em Santarém (Pará), três dias depois de retornar da conferência climática. “No dia 10 de manhã, um funcionário da empresa de energia avisou que iria desligar toda a área para fazer manutenção. Ao meio-dia, eu precisava trabalhar e pedi para o meu marido ligar pra empresa e perguntar quando iriam religar a luz, mas eles disseram que não tinham mandado ninguém desligar”, relata ao EL PAÍS por telefone.
No fim da tarde, depois de retornar de uma reunião, a luz só funcionava em algumas partes da casa. Questionado, um vizinho contou que na casa dele não havia tido corte de energia. “E aí eu comecei a sentir… O meu corpo ele estranha, né? Quando tem algo que vai acontecer, ele começa a avisar e eu senti isso”, conta Alessandra, que buscou outro local para dormir. No dia seguinte foi para a casa uma amiga. “No dia 13, quando meu marido voltou para casa para pegar algumas roupas, ele viu o portão aberto. Entrou e viu os documentos todos no chão. Ficou tremendo e me ligou”, complementa. De sua casa levaram uma pasta com documentos, cartões de memória com imagens e 4.000 reais que haviam sido arrecadados para a realização de uma assembleia.
Alessandra, que estuda Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), nasceu na aldeia Praia do Índio, em Itaituba, também no Pará. Sua luta é pela demarcação da Terra Indígena Sawre Muybu, no rio Tapajós, no sudoeste do Estado. O território Munduruku é assediado por garimpeiros há anos. E seus líderes, ameaçados. Em março deste ano, a sede da Associação de Mulheres Indígenas Munduruku – Wakomborum, no município de Jacareacanga, foi depredada, saqueada e queimada, segundo o portal de notícias Amazônia Real. Ameaçada de morte, a presidente da associação, Maria Leusa Munduruku, precisou fugir. “Minha mãe chora muito. Eu falo ‘mãe, desculpa por fazer a senhora chorar. Eu peço perdão para os meus filhos por eles não conseguirem ter uma infância normal por causa de minha luta”, lamenta Alessandra. “Eu digo ‘meu filho, eu prefiro lutar, defender esse território, esse rio, do que ver meus parentes expulsos. Um dia você casar, vai ter seus filhos e vai poder morar na aldeia. Não adianta a gente entregar o território’”.
Além de Alessandra, a Apib denunciou dois ataques contra Glicélia Tupinambá, da região da Serra do Padeiro na Bahia. O último ocorreu em 12 de novembro, logo depois da líder indígena retornar da COP26. Ela estava viajando num carro com sua família quando o ocupante de outro veículo deliberadamente fez uma manobra que poderia ter causado um grave acidade, segundo relata.
Há também casos envolvendo a participação de policiais militares e jagunços. Na tarde desta quinta-feira, 18 de novembro, policias militares estiveram na aldeia Cajueiro, na Terra Indígena Taquaritiua, habitada pelos Akroá Gamella, no Maranhão, e levaram lideranças para a delegacia. Um dia antes, os moradores da aldeia Cajueiro foram surpreendidos com a chegada hostil de funcionários de uma empresa de energia elétrica, acompanhados de seguranças que se identificaram como policiais. De acordo com o Cimi, tentam instalar no território, que ainda está em processo de demarcação, torres de energia elétrica. Já a Secretaria de Segurança Pública afirmou que a PM foi acionada após os funcionários da empresa de energia terem sido feitos reféns, com dois de seus veículos queimados enquanto realizavam trabalhos.
Na terça-feira, 16 de novembro, ao menos seis indígenas da aldeia Tabatinga, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, ficaram feridos durante uma ação truculenta da Polícia Militar e do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE). Os agentes queriam destruir postos de monitoramento e vigilância montados pelos indígenas para impedir a entrada de garimpeiros no local, além de outras pessoas não autorizadas. A Justiça estadual havia determinado o fim dos postos de vigilância a pedido da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima, mas somente a PM agiu sem mandado, segundo os indígenas. Além disso, somente a Polícia Federal pode agir dentro de terras demarcadas. “A gente está muito indignado com como aconteceu. Nós vamos continuar nosso trabalho de vigilância e monitoramento. Se for para morrer, nós vamos morrer, mas vamos morrer com dignidade”, desafiou uma das lideranças indígenas durante coletiva de imprensa convocada pelo Conselho Indígena de Roraima.
Além desses casos que ganharam mais visibilidade, os indígenas Guarani Kaiowá das retomadas Avae’te, área contígua à Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul, denunciaram a ação de fazendeiros e sitiantes locais entre os dias 10 e 12 de novembro. Bombas de efeito moral, incêndio e pulverização de agrotóxico fazem parte dos novos ataques, que envolveram seguranças privados e a polícia militar, segundo a denúncia. Uma casa de reza dos Guarani Kaiowá foi totalmente incendiada. Na madrugada do dia 14, outro ataque, dessa vez na aldeia Pindó Mirim, na Terra Indígena Itapuã, em Viamão (Rio Grande do Sul). De acordo com a denúncia, os invasores atearam fogo na casa de reza, em dois veículos e em uma casa onde os indígenas guardam os alimentos e mantimentos. Devido ao vento, as labaredas se alastraram rapidamente, destruindo por completo a casa de reza e os veículos.
Dinamam, da Apib, afirma que esses episódios de violência são resultado não só de uma omissão governamental como também de um projeto político comandado pelo Governo Bolsonaro, que ao longo de seu mandato promoveu o desmonte das políticas ambientais e indigenistas. “A solução é demarcar mais terras e proteger as que já estão demarcadas. Caso contrário, seguiremos vulneráveis e à mercê do Governo”, explica. Na COP26, onde a jovem liderança Txai Suruí, de 24 anos, discursou em inglês diante das principais nações, lideranças indígenas conseguiram a promessa dos países desenvolvidos e de doadores internacionais de um fundo de 1,7 bilhão de dólares (cerca de 10 bilhões de reais) destinados aos povos originários. “Conseguimos avanços, mas ainda é pouco. Esperamos que a pressão de acordos comerciais do Brasil e medidas econômicas da Europa tenham resultado efetivo internamente”.
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Liderança da aldeia de Tabatinga, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, é ferida durante ação de policiais militares na terça-feira, 16 de novembro, em Roraima. Foto: COMUNIDADE TABATINGA / CIMI