Rosa Luxemburgo acordou ao lado de Kim Kataguiri (ou tenham paciência que chego na Nicarágua). Por Tarso Genro

A ação política da esquerda, que é dignificante dos seres humanos, sempre contém traços de uma utopia

No Sul21

A ficção científica e a ficção social e política têm os mesmos impulsos de sentido, pois ambas buscam moldar o futuro e são obrigatoriamente centradas em desejos humanos que não estão conformados com o presente. Ambas as ficções têm reflexos diretos e indiretos na arte e no trabalho, neste como apropriação pelos humanos dos bens naturais para multiplicar a vida. As pessoas vivem no presente, mas neste presente estão sempre projetando o futuro e refazendo o seu passado, O passado nunca é o mesmo: é sempre modificado na nossa memória, pelo que pretendemos do futuro e pelo ajustes de contas com os nossos próprios erros e acertos. Mas são perfeitamente cínicos e voluntariamente cínicos aqueles que querem modificar o seu passado, tentando esconder seus erros e imoralidades, assumidos por oportunismo político ou por desprezo pela democracia. Rosa de Luxemburgo disse que uma verdadeira democracia revolucionária é aquela que dota os adversários do poder instalado a partir do reconhecimento dos direitos que são devidos a todos.

São cínicos os políticos, jornalistas, “formadores de opinião”, que dentro do panorama politico atual usam – por exemplo – uma formulação feita por Lula sobre a Nicarágua, errada ou imperfeita – segundo a visão que cada um pode ter dos limites e grandezas da democracia política – para tentar limpar da memória social, que foram ou são apoiadores de um genocida, que aceitaram ou promoveram um “golpe” contra uma Presidenta honesta, que se deram ou se dão bem com um politico fascista, defensor da tortura: os mesmos que colaboraram com a tese da “escolha difícil”. Não estou aqui me referindo a qualquer crítico que não aceite Lula como Presidente do país e que tenha uma visão crítica a respeito da democracia na Nicarágua, mas sim dos que falam do assunto Nicarágua e Venezuela – mesmo sabendo que Lula é completamente diferente de Ortega e Maduro – tentando justificar o seu golpismo e o seu apoio a um genocida, com a deformação da figura de um Presidente que sempre demonstrou apreço à democracia, respeito às instituições da República e deu dignidade e prestígio ao Brasil em todo o planeta.

A ação política da esquerda, que é dignificante dos seres humanos, sempre contém traços de uma utopia. É uma ficção histórica, pensada na luta para buscar um outro mundo, modificado ou inteiramente outro, no qual o sujeito quer construir a vida em condições de igualdade e cordialidade social. A ação política da extrema direita, todavia, suas ficções ou “utopias de direita (como as designou Hobsbawn), ao contrário da ficção-utopia projetada pelas esquerdas”, defendem resignação, a hierarquia classista e a supremacia dos fortes sobre os fracos. As utopias da esquerda têm como fundamento a igualdade; as utopias de direita são contrárias à igualdade e estão limitadas ao reconhecimento do direito formal de aceder ao mercado. No terreno dos objetivos históricos, mesmo limitadas pelas relações de força dentro da democracia política, é assim que se dividem as ideologias: as que são emancipacionistas e as que são de dominação.

Um ensaio brilhante em “Mutações” (SANTOS, 2008)  [1] sustenta que pode se considerar a “ficção científica” – que não é um gênero menor – uma expressão da “realidade em potencial”, o que lhe dá uma afinidade estrutural com a utopia social. Segue o autor (apoiado em John Moore, “um nerd sem arrependimentos”) afirmando que “a projeção do futuro, outrora o território do escritor de ficção científica, se transformou na modalidade dominante de pensamento”, modo cultural assimilado como “influência decisiva” na vida moderna. A ficção científica e a utopia social seriam, neste diapasão, distintas, mas integradas nas procuras do futuro, ambas já dominantes neste período da modernidade. Tanto a ciência como a política teriam fortes reflexos na própria arte, como autoconsciência da humanidade, nos hábitos sociais, em novos “modos de vida” e na formação de novas subjetividades, particularmente na formação de novas formas de “ser jovem” e de novos tipos de relacionamentos grupais na sociedade global.

O ensaio interpreta e discorre sobre a canção “All Is Full love”, da cantora islandesa Bjork, cujo sentido é anotar que as máquinas e os humanos podem se fundir em relações amorosas, com “sentimentos, sensações, afetos, fluidos”, que são concebidos no próprio momento em que as máquinas e os corpos são “fabricados”, como se ambos – máquinas e humanos – fossem andróides recrutados pela política . A metáfora desta situação distópica estaria no clássico “Blade Runner”, no qual o casal produzido pela engenharia genética, já teria o seu amor previamente datado para morrer, pela morte programada dos seus corpos, decidida pelas provetas dos seus pais-cientistas, ali fundindo a ficção da utopia social. com a utopia científica de uma nova socialidade humana

O autor, a seguir, discorre sobre a balada “Utopia” da cantora inglesa Alison Goldfrapp, que narra os sentimentos de uma “namorada” que, ao acordar pela manhã, percebe que está conectada a um “supercérebro”, cujos vínculos com o mundo real se dão através uma forma de inteligência “que conhece tudo”: “mas nao sente nada”, que representa no caso a ficção-utopia do seu namorado fascista , o seu “fascist baby”, cujo símbolo histórico e concreto seriam os centros de inteligência do capital financeiro global. A alegoria mais poderosa desta manhã poderia ser retratada numa cena de teatro de Ionesco, em que Rosa de Luxemburgo acordasse apavorada ao lado de Kim Kataguiri.

Assim interpretadas as duas canções, teríamos na primeira uma maquinaria (utópica) programada para ser apolítica”, mas profundamente politizada, através da qual os seres humanos e as máquinas “festejam” a vida de forma programada e, na segunda canção, a ficção-utopia do “humano transformado em inteligência artificial”, seria resultado de uma maquinação fascista”, na qual se conectam, sem afetividade, duas pessoas com um certo tipo de amor que resulta em pura dominação mecânica. Ambas as “ficções-utopias” lidam com a construção da realidade de forma manipulatória, porque ambas sacrificam o sujeito, suas perdas, seus amores, suas sensações de posse e dominação e apenas cumprem finalidades já programadas. Estas, nos humanos conscientes podem ser superadas, por expressões sinceras, de ajustes e desajustes, que podem transformar suas imperfeições em conquistas afetivas e morais, sem aceitar as funções de andróides “recrutados pela política”, ou de máquinas submetidas ao presumido susto de Rosa de Luxemburgo.

O que estes andróides ou estas máquinas da manipulação da opinião pública estão tentando construir conscientemente, com o “caso da Nicarágua”, é um novo elemento emblemático para tentar apagar da memória das massas e mesmo da memória dos políticos tradicionais não-bolsonaristas, que na época de Lula as pessoas se alimentavam e viviam muito melhor. E que o Presidente respeitava as instituições da República e da Democracia, dotando o Estado de um sentido estrutural de Justiça, num mundo cada vez mais injusto, no qual as teses políticas são resultados de jogos logarítmicos e a densidade das relações humanas foi submetida completamente às contas do mercado e à acumulação infinita sem trabalho. Não vencerão.

Nota

[1] NOVAES, Adauto (org); SANTOS, Laymert Garcia -Mutações, ensaios sobre as novas configurações do mundo- Ed: Agir, 2008, SP, pg. 45

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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