O agito na cama embaralha cabelos e ideias. Mocinha acorda descabelada e desorientada. Tem pressa. Banho, secador, escova, maquiagem, perfume, vestido e batom. Sobrou tempo só para o café, que toma enquanto espera o Uber. Checa a bolsa. Cadê o carregador? Tudo pronto. E aqueles papéis? Ok! Motorista chegou.
O olhar perdido na vida que passa do lado de fora do carro ajuda a organizar as ideias do lado de dentro da cabeça. Quase meditação, onde pensamentos tristes e felizes se revezam incontroláveis no teatro interno de emoções. O rosto de maquiagem discreta e ar plácido não demonstra o rebuliço emocional.
No elevador apertado de gente, os engravatados olham para sua bunda. Finge não perceber porque lá tudo é fingimento. Eles fingem que sabem o que fazem. Que são importantes e dignos da imponência que tentam impor aos outros. Ela finge que não percebe que eles a veem e tratam como alguém que deveria obedecê-los ou servi-los apenas por ser mulher. Responde com eficiência porque sabe que os olhares, além de desejo, são de julgamento.
O chefe chamou. Quer que resolva situação difícil. Importante porque tem muito dinheiro envolvido e lá nada é mais importante que dinheiro. Retoca a maquiagem como o palhaço que se prepara para o sorriso forçado no picadeiro.
Sala cheia de homens e só três mulheres. Duas que servem café e ela. Olhares tensos e cheios de arrogância que esconde mal as fragilidades de cada um. Reuniões, dizem, são para discutir ideias. Besteira, pensa Mocinha, são para exibir forças. Às vezes, da grana, outras, das relações, amizades e reputação. Raramente a força vem das ideias e argumentos, mas esta é a única força que ela tem ali. Precisa caprichar.
Observa quieta enquanto os machos se exibem. Por um momento se distrai lembrando das danças de acasalamento de bichos estranhos que viu num documentário. No palco das arrogâncias, batidas na mesa com caras feias, vozes grossas, caretas e falas malcriadas. Voltou à si quando a malcriação foi com ela. Ei, você aí, vai ficar sem fazer nada?
Contra fatos não há argumentos, mas contra uma mulher com argumentos não faltam fatos grosseiros para tentar recolocá-la no seu lugar de bibelô. Respirou fundo. Sem alterar a voz, começou do começo, fato a fato. O problema aqui é… Foi interrompida uma, duas, várias vezes. Mesmo assim, disse o que precisava. Sem irritação, mas com algum enfado porque é difícil aguentar tanta boçalidade sem ao menos enfastiar-se.
Alguns deles precisaram de tempo para decidir. Mocinha esperou sem esperança. Abaixou a cabeça para relaxar o pescoço e percebeu um botão da blusa aberto na altura dos seios. Droga! Vou ser julgada… Surpreendeu-se quando aceitaram o acordo. Conseguiu resolver o problema. Voltou para o escritório incrédula e feliz, para passar por outros constrangimentos até o fim do dia.
Chegou em casa com fome. Não tinha almoçado. Três homens a convidaram para jantar. Sobre trabalho, diziam com olhares que diziam outra coisa. Recusou, como sempre. Já tinha compromisso com os abraços, os beijos e o colo amoroso que embaralha seus cabelos. Sem pressa, maquiagem, fingimento, arrogância, interrupção ou julgamento, finalmente, Mocinha pode ser mulher.
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Julio Pompeu – Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.
Ilustração: Outras Palavras