Segundo levantamento, Boa Vista teve maior letalidade de grávidas por covid no país; risco de morte de mulheres negras foi quase duas vezes maior do que o de mulheres brancas
Por Emily Costa, na Pública
Vanessa Pereira, de 29 anos, chegou ao Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth, em Boa Vista, capital de Roraima, assustada. Aos oito meses de gestação, ela sentia cansaço e falta de ar – e havia acabado de testar positivo para covid-19.
“Eu cheguei de ambulância, mas na portaria mesmo me disseram que, como era covid-19, eu poderia contaminar outras grávidas, então tinha que ir para outro hospital”, conta. Era 27 de maio de 2020, pico da primeira onda da pandemia no estado. “Eu estava grávida, no início do oitavo mês, com quase 100 quilos e muita falta de ar”, relembra.
Moradora de Caracaraí, município a 140 quilômetros da capital, Vanessa recebeu o resultado positivo para covid-19 em um teste rápido no hospital público local. “Acordei 2 horas da manhã passando muito mal e fui ao hospital da minha cidade. Quando meu resultado deu positivo, eu me desesperei porque tenho dois filhos asmáticos como eu, e tive mais medo por eles do que por mim”, diz.
Na cidade não havia estrutura para internação e Vanessa foi levada para a capital. “A ambulância me levou [de Caracaraí] direto para a maternidade, mas lá não me receberam, não me deixaram entrar porque eu ia contaminar outras mães. O rapaz que era motorista ficou assim sem entender e perguntou ‘E agora, Vanessa?’, mas eu não sabia o que fazer, e fiquei lá, dentro da ambulância.”
Após a primeira recusa no Hospital Materno, ela foi levada na mesma ambulância para o Hospital Geral de Roraima, também na capital, único da rede estadual com Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para casos graves de covid-19. Lá foi recebida, mas ouviu que, por estar grávida, teria que retornar ao Hospital Materno, uma vez que a unidade é referência para o atendimento de gestantes no estado.
“Voltei lá e recusaram de novo o atendimento, mais uma vez afirmando que eu poderia contaminar outras pacientes, que casos de covid eram só no Hospital Geral, e que ali eu não poderia ficar”. Ela conta que, de volta ao Hospital Geral de Roraima pela segunda vez, teve um primeiro atendimento, mas mais uma vez foi orientada a regressar ao Hospital Materno.
De volta à unidade para gestantes, pela terceira vez ela foi barrada na portaria, mas a situação acabou chamando atenção de uma médica da maternidade, que se propôs a atendê-la, apesar da recusa do hospital. “Ela se paramentou toda, com luvas, avental, e me atendeu. Depois me explicou que eu teria mesmo que ir para o Hospital Geral porque só lá tinha UTI para casos de covid-19 em adultos”, diz. “Ela foi muito clara. Me disse: ‘Aqui nós só podemos salvar o bebê porque só tem UTI para bebê, não tem para adulto’, então mais uma vez voltei para o Hospital Geral. Eu sentia assim que o ser humano só vale o que tem. Só se você tiver uma condição financeira você é bem recebido, mas se você não tem, não é.”
Na unidade, Vanessa logo piorou. Primeiro ficou em um corredor, mas depois, por insistência do marido, que pedia ajuda no hospital, foi levada para uma maca em uma área interna da unidade. Lá, foi colocada em um cilindro de oxigênio fixo na parede, o que não permitia que ela fosse ao banheiro. “Tinham cilindros de oxigênio, mas não tinha para todo mundo, porque o hospital estava superlotado. Lembro que um senhor passou mal, a gente pediu ajuda, ele foi levado, e não voltou mais. Não sei se morreu ou se sobreviveu. Uma filha também saiu para beber água e, quando voltou, o pai já tinha morrido.”
Horas depois, no mesmo dia, Vanessa foi transferida para a UTI do Hospital Geral, onde foi atendida pelo médico Mauro Asato. Lá, ela deu à luz, de parto cesárea, ao filho Arthur, hoje com 1 ano. Na sequência, foi entubada porque seu estado era crítico. O bebê, também no mesmo dia, foi levado para a UTI do Hospital Materno. “Eu nem cheguei a ver meu bebê, só fui conhecê-lo 21 dias depois, quando tive alta e já tinha saído da UTI, onde fiquei duas semanas. Eu achava que não sobreviveria”, conta.
À reportagem, a assessoria do Hospital Materno respondeu que a Secretaria Estadual de Saúde (Sesau) informou que “todas as pacientes com queixas obstétricas foram atendidas na Maternidade e nenhuma paciente foi impedida de receber atendimento”, mesmo questionados sobre o caso de Vanessa. Já o Hospital Geral de Roraima informou que “nos casos em que foi necessário o atendimento de pacientes gestantes com covid-19, a direção do HGR [Hospital Geral de Roraima] e da Maternidade, por meio do NIR [o sistema de monitoramento de pacientes] realizavam a regulação para a internação no hospital e no HGR a paciente contava com acompanhamento da equipe multiprofissional, recebendo a visita do médico ginecologista/obstetra sempre que necessário”.
Boa Vista teve maior letalidade de grávidas por covid no país, aponta levantamento
O episódio dramático pelo qual Vanessa passou foi vivido por diversas outras grávidas que se infectaram com o coronavírus durante a pandemia no Brasil. E a cidade de Boa Vista foi um dos locais onde a situação foi mais grave: a capital teve a maior letalidade entre grávidas no levantamento do Observatório Obstétrico Brasil Covid-19. Segundo os dados, de 39 grávidas que tiveram a doença desde 2020 até setembro de 2021, mais da metade, 21, faleceu.
A gravidade da pandemia entre grávidas em Boa Vista tem diversas explicações: desde a falta de estrutura do sistema de saúde público no estado, com poucas UTIs concentradas na capital e falta de recursos no interior, à própria subnotificação decorrente da dificuldade de atendimento e testagem, que pode ter ocultado casos, amplificando ainda mais os números de letalidade.
Os dados do Observatório revelam também uma dimensão racial da pandemia entre grávidas: dos 1.204 óbitos em 2020 e 2021 com dados raciais, cerca de 56,2% ocorreram com mulheres negras (pardas e pretas). Isso levou o risco de morte a quase duas vezes maior do que o de mulheres brancas.
O levantamento registrou 544 óbitos em gestantes e puérperas por covid-19 em 2020, o que levou a uma média semanal de 12,1 mortes no ano. Já em 2021, até maio, o número chegou a 911 mortes, levando a média semanal para mais de 47,9 óbitos, aproximadamente quatro vezes mais.
Um desses casos foi o da esposa do enfermeiro Gracione da Silva Santos, que perdeu Almiza Prado Santos, de 37 anos, grávida, vítima da covid-19, em 6 de julho de 2020. A filha do casal, Valentina, nasceu prematura, com seis meses, e sobreviveu.
“Foi um pesadelo”, resumiu. Gracione conta que a esposa, que era técnica em enfermagem, estava na quinta gestação e achou que os sintomas como tosse e cansaço eram comuns da gravidez. Mas, no dia 28 de maio, buscou atendimento médico no Hospital Materno Infantil, onde ela trabalhava, e descobriu que teria de ser internada.
“Ela chegou com a saturação baixa, com dificuldade de respirar, e logo decidiram que ela tinha que ficar no hospital. Eu fiquei desesperado, mas até ali não se sabia que era covid-19”, conta.
Quatro dias depois, Almiza tinha piorado e teve de ser transferida para uma UTI. Foi levada para o Hospital Geral de Roraima, com suspeita de covid. Até então, segundo Gracione, ela tinha feito dois testes, que deram negativo para a doença. Só o terceiro, feito quando ela já havia sido intubada, confirmou o diagnóstico.
“Um dos médicos me disse que eles iam tentar de tudo para salvá-la, mas que era o caso de escolher entre a neném e ela, pois uma das duas não ia escapar”, disse. “Nossos filhos ficaram desesperados. Eles queriam a mãe, choravam para vê-la.”
No dia 5 de junho, os médicos fizeram o parto de Almiza, que permaneceu na UTI. A recém-nascida também foi para a UTI, onde ficou por 52 dias. A mãe, que não chegou a conhecer a filha, piorou e faleceu um mês depois de ter dado à luz. “Não pudemos nem ver o corpo por causa do risco de contaminação. Foi a coisa mais horrível sepultá-la sem ter tido a chance de dizer pelo menos um adeus”, diz Gracione.
No Norte do país, pandemia foi devastadora para grávidas, diz infectologista
“Devastador, traumatizante”, resume o infectologista Mauro Asato, que atuou na linha de frente no atendimento de pacientes em estado grave pela covid-19, incluindo grávidas, que chegavam ao Hospital Geral de Roraima. Com 40 anos de experiência, ele afirma que nunca tinha visto uma situação de saúde pública como a do auge da pandemia em Roraima, entre abril de 2020 e março de 2021, sendo os meses de abril a outubro de 2020 os mais críticos.
“Na região Norte como um todo, o sistema de saúde ficou um caos. A doença era nova, os profissionais não estavam treinados, não se sabia muito o que fazer, e nós fomos aprendendo a lidar conforme os casos aconteciam.”
Ele disse que, por conta do alto número de casos de mulheres grávidas com sintomas graves de covid-19 chegando ao Hospital Geral, uma UTI preferencial para gestantes foi aberta com dez leitos, entre fevereiro e junho de 2021. Até então, segundo ele, as grávidas em estado grave eram inicialmente internadas nas demais UTIs da unidade, bem como no Hospital Materno, que passou a ter leitos para gestantes com covid-19, e também no Hospital de Campanha, inaugurado em junho de 2020, com três meses de atraso.
“Primeiro, todo mundo estava preocupado com os idosos acima de 60 anos, obesos e hipertensos, mas depois se foi vendo que as gestantes também estavam nesse grupo de risco pela gestação em si”, diz. “Tiveram mães que sobreviveram, bebês também, mas também tiveram casos de morte de mãe e fetos, de mães e recém-nascidos.”
Segundo o médico, os principais problemas enfrentados no tratamento geral dos pacientes internados por complicações da covid-19 no Hospital Geral foi a falta de pessoal treinado e de medicamentos.
“Nós tivemos dificuldade de falta de pessoal, depois houve contratações, mas o maior problema foi que tivemos que dar treinamento e muita gente não tinha essas condições. Em relação ao material, infelizmente houve um momento em que ficamos desabastecidos de medicamentos para sedoanalgesia, bloqueador neuromuscular, usados na intubação, e antibióticos. Esse acabou sendo um problema no Brasil inteiro, porque a demanda por esses remédios cresceu muito, foi uma realidade catastrófica geral.”
Em março de 2021, ele próprio acabou contaminado pelo coronavírus, após um ano e meio atuando na linha de frente do hospital. O médico ficou em estado grave e esteve 28 dias internado. “Numa pandemia, todo mundo está exposto, principalmente quem está ali, trabalhando diretamente com as pessoas que precisam de atendimento.”
Grávidas vinham de longe em estado crítico
De tudo o que viu dentro do hospital durante os períodos mais críticos da pandemia de covid-19, o fisioterapeuta Josué da Costa destaca um: “O silêncio na UTI lotada de pacientes era ensurdecedor, e só era interrompido pelos choros e gritos de familiares que tinham recebido a notícia da morte de alguém”.
Ele conta que o medo era geral. “Você olhava e via os pacientes todos intubados, instáveis, críticos, e o medo dominava. A gente tinha medo de se contaminar, de contaminar os familiares. Por melhor profissional que se fosse, não tinha como não se afetar, como ficar inseguro e com medo. Era medo. O medo imperava. Passei noites sem dormir e cheguei a ter três óbitos num só plantão das 7 horas às 13 horas.”
Ele disse que, entre os casos de gestantes internadas por covid-19, o que mais viu foram mulheres que perderam seus bebês e também morreram. Entre os pacientes em geral, incluindo as grávidas, alguns chegavam em estado mais crítico porque vinham de longe, principalmente de outros municípios. Houve também, segundo ele, muitos pacientes venezuelanos.
“Vinha muita gente do interior e em estado crítico mesmo, muitas vezes por causa das condições de transporte. Atendi várias pessoas que tinham vindo das cidades de Rorainópolis, Mucajaí, Caracaraí, e elas chegavam bastante debilitadas por causa do tempo de espera para chegar ao hospital.”
Ele conta que, na unidade, viu faltar insumos como luvas, máscaras N-95, aventais e sondas de aspiração em meio a picos de superlotação.
“Colegas que entravam para 12 horas de plantão usavam fraldas para economizar equipamentos de proteção, porque assim não precisavam ir ao banheiro. Também vi muitos colegas se arriscando a atender pacientes sem os equipamentos de proteção adequados no auge da pandemia, porque queriam trabalhar.”
Sobre a falta de medicamentos, ele diz que, pela escassez de sedativos e bloqueadores neuromusculares, ocorreram casos de pacientes que acordaram quando ainda estavam intubados e acabaram morrendo.
“Eles acordavam muito agitados, sem saber o que estava acontecendo. Não sabiam que estavam intubados e, no desespero, arrancavam o tubo orotraqueal [usado na intubação], ficavam sem ar e morriam.”
À reportagem, a Secretaria de Saúde reconheceu que “o Estado de Roraima, assim como outros estados brasileiros, enfrentou dificuldades para manter o abastecimento de Unidades em virtude da falta de matéria-prima na indústria farmacêutica”, mas afirmou que “o Governo de Roraima, por meio da Sesau, manteve contato frequente com o Ministério da Saúde, a fim de ter o retorno sobre o envio de medicamentos para o Estado. Além disso, reforçou o contato com as empresas fornecedoras de insumos sempre com foco no abastecimento das Unidades. E ainda efetivou contratos para garantir a compra de medicamentos por meio de pregão eletrônico”.
Segundo o fisioterapeuta, atualmente a situação está mais controlada, também porque os profissionais foram aprendendo a lidar com a doença e as condições de atendimento estão mais propícias por conta do menor número de casos graves.
“Existem mais profissionais trabalhando, mais leitos disponíveis, mais expertise sobre o assunto, além de protocolos de atendimento que foram lançados, principalmente nessa parte ventilatória dos pacientes, melhorando assim os cuidados e a recuperação deles.”
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Imagem: Lo Cole / The Economist. Abril de 2020.