Olá, Bolsonaro acha que salvou o mundo da terceira guerra mundial, mas ninguém sabe se ele é capaz de salvar a própria pele, a moral dos militares e a economia. Para ler, ouvindo Luiz Gonzaga.
Por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile
.O giro da terra plana. Aparentemente, os tempos da diplomacia de Ernesto Araújo ficaram para trás. A decisão de Bolsonaro de visitar a Rússia em meio a uma grave crise veio como desforra pela rejeição de Joe Biden, que nunca respondeu aos pedidos do capitão para recebê-lo nos Estados Unidos. Apesar de claramente contrariar os interesses da Casa Branca, com a manifestação de apoio à Rússia, a visita está longe de representar a retomada de uma diplomacia independente.
Por um golpe de sorte, a chegada de Bolsonaro a Moscou coincidiu com um momento de distensão no conflito entre Rússia e Otan. Durou pouco, mas foi suficiente para levar o cercadinho ao delírio, espalhando fake news onde o capitão aparecia como emissário da paz. Sinal de que os fanáticos podem ser flexíveis, engolindo inclusive uma homenagem aos soldados soviéticos. De sua parte, Bolsonaro parecia outro, seguindo protocolos sanitários, evitando falar sobre a Ucrânia e fazendo discurso de miss onde pediu a paz mundial. O tour pelo leste Europeu foi motivado por diferentes fatores. Em primeiro lugar, sair do isolamento e tentar lembrar ao mundo que Lula ainda não é o presidente do Brasil. Expressa também um espírito de concorrência com a vizinha Argentina, que fechou acordo de cooperação com a China. Em terceiro, o agronegócio está interessado em retomar o comércio com a Rússia, especialmente de alimentos. Porém, ao contrário das expectativas, a visita não se refletiu em acordos concretos, reduzindo-se à assinatura de um protocolo comum sobre sigilo de documentos. Os resultados mais importantes foram simbólicos e políticos: um aceno do Brasil em direção ao oriente e o apoio da Rússia à entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU. E nos bastidores, Bolsonaro talvez espere contar com a máquina digital russa para influenciar as eleições por aqui, o que já vem causando preocupações ao TSE.
.2018 acabou. Bolsonaro ter ganho o Prêmio Nobel da Paz das mãos do próprio Jesus Cristo por impedir a guerra da Ucrânia não foi a única peça de ficção que circulou nas redes bolsonaristas esta semana. A milícia digital agitou suas bases com um suposto novo depoimento de Adélio Bispo que incriminaria o PT pelo atentado de 2018. A ficção foi desmentida pela Polícia Federal e pelo advogado de Adélio e demonstra o beco sem saída em que a campanha de Bolsonaro se meteu. O problema é que o governo coleciona más notícias. Exemplo disso é a questão dos combustíveis, que aumentou cinco vezes mais do que a inflação nos últimos três anos e conta apenas com soluções paliativas vindas do Congresso. Sem nada para apresentar, o bolsonarismo sonha em repetir o discurso anti-sistema de 2018, agora reduzido a brigas com o STF, sem perceber que o número de pessoas dispostas a acreditar nele diminuiu. Em compensação, aumentou a fila de envergonhados com seu ex-mito, e que pode engrossar com os policiais que não receberão o prometido reajuste salarial este ano. Mesmo a estratégia trumpista de apostar num capitólio para permanecer à frente da oposição ao próximo governo pode fracassar, alerta Emir Sader. Bolsonaro não tem a capacidade de permanecer na mídia, adaptar o discurso ou sequer ter um partido como Donald Trump. Até Valdemar da Costa Neto está cansado de avisar que se Bolsonaro continuar seguindo as orientações de Carluxo, o filho favorito pode acabar preso. E considerando que o relatório da PF sobre as milícias digitais e o gabinete do ódio está em cima da mesa de Alexandre de Moraes, não é uma hipótese descartável.
.Plano B de Braga Netto. Diante de um temor de uma acachapante derrota ainda no primeiro turno, o plano bolsonarista seria insistir no tema da vulnerabilidade das urnas eletrônicas, se possível arriscar um capitólio e manter sua base mobilizada por quatro anos com o discurso de que as eleições foram roubadas. Uma versão mal dublada do filme original dirigido por Trump. Até agora, a estratégia ganhou um único aliado, o general Braga Netto, que disputa com o general Augusto Heleno a vaga de vice na chapa de Bolsonaro, numa disputa acirrada dos generais contra o sanfoneiro das lives. Além de presença constante em agendas não-oficiais, Braga Netto deu corda para a teoria golpista sobre as urnas eletrônicas, causando desconforto entre os oficiais, especialmente os mais jovens. A tese de que o plano golpista já está em curso ganhou peso depois da desistência do general Fernando Azevedo em assumir a Diretoria-Geral do TSE. Já o presidente do TSE Luís Roberto Barroso tem se esforçado para desmentir as acusações de Bolsonaro e Braga Netto. Segundo ele, o representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições fez questionamentos sobre o funcionamento do sistema por ofício, sem qualquer menção à vulnerabilidade das urnas. Para Barroso, além das “limitações cognitivas” de Bolsonaro, independente dos fatos, o que interessa ao governo é uma mentira para ser difundida. A militância de Braga Netto tem outras consequências mais imediatas: a possibilidade de deixar o Ministério da Defesa para concorrer abriu uma disputa interna entre as forças para indicar seu sucessor. A disputa é entre os falcões do bolsonarismo: os generais Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e o Almirante Garnier. Já o general Mourão, sem lugar no governo desde sempre, também vai fazendo planos para as eleições: deve concorrer ao senado pelo Republicanos do Rio Grande do Sul.
.Companheiro Campos Neto. Se a chapa Lula-Alckmin já parece certa e definida, a federação partidária que reuniria PT, PSB, PCdoB e PV retrocedeu de novo, empacada no impasse sobre a disputa do governo de São Paulo entre Fernando Haddad e Márcio França e alimentando outros descontentes do PSB, como o prefeito de Recife, João Campos, e o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande. E se o PSB titubeia, Lula insiste em trazer o PSD de Kassab ainda no primeiro turno, com o trunfo da filiação de Alckmin e podendo inclusive sacrificar o fiel Jaques Wagner num acordo que incluiria a reeleição de Rodrigo Pacheco no Senado. Mas Kassab sabe valorizar o seu passe e abriu a possibilidade de ceder o palanque para Eduardo Leite, aumentando a crise no PSDB, um partido que fica a cada dia menor. Por fora das alianças formais, Randolfe Rodrigues articula o apoio de não-petistas de vários partidos já no primeiro turno. Porém, o grande apoio que Lula recebeu nesta semana veio do Partido da Faria Lima, com a entrevista do presidente do Banco Central Campos Neto afirmando que o mercado não tem medo de um governo Lula, graças às movimentações da candidatura ao centro. A fala também pode ser uma espécie de retribuição às sinalizações de Lula de que não irá revogar a autonomia do BC. Segundo economistas petistas, a declaração de Campos Neto “mudou a relação com o mercado”, cumprindo o mesmo papel de Henrique Meirelles em 2003. E mesmo entre os partidários de Sérgio Moro, já há quem reconheça que a candidatura do ex-ministro naufragou por falta de apoio e de… dinheiro.
.Tchau, querido. Se o mercado já faz as contas de um hipotético governo Lula, imaginem o centrão. Assim como Rodrigo Pacheco já costura a própria permanência no cargo no flerte entre PSD e PT, Arthur Lira também já traça suas estratégias de sobrevivência. A seu favor, Lira calcula que a bancada lulista não teria número suficiente para eleger um outro presidente da Câmara. E o seu primeiro movimento é justamente entregar Bolsonaro à própria sorte. Em entrevista ao Valor, Lira mandou Bolsonaro se vacinar, diminuiu a importância de Paulo Guedes e ameaçou botar as reformas administrativas e tributárias em votação entre a eleição e a posse, deixando nas entrelinhas que se o PT não quiser começar o governo com uma bomba fiscal, que venha negociar com ele. Enquanto isso, o governo apresentou suas prioridades legislativas, “passando a boiada” na desregulamentação ambiental – avançando a mineração, a grilagem e a privatização de florestas – e maior liberdade para compra de armas, mas quase nada para o mercado financeiro, além da privatização dos correios. Se a agenda de Lira cabe na do governo, o contrário não é verdadeiro: o futuro dissidente pode colocar em pauta projetos da oposição como a PL das Fake News e o Projeto Paulo Gustavo, mas principalmente aprovou a PEC que prevê o aumento da idade mínima de 70 anos para ministros de tribunais superiores, contrariando diretamente o projeto de Bia Kicis que permitiria que Bolsonaro indicasse mais dois ministros do STF. E no Senado, onde as coisas nunca foram fáceis para Bolsonaro, estão piores. O governo não tem líder na casa, 11 propostas prioritárias estão travadas pelos senadores e a pandemia continua dando pano para os senadores convocarem ministros e ameaçarem um impeachment de Augusto Aras por engavetamento do relatório da CPI.
.Ponto Final: nossas recomendações.
.“Invasão” da Ucrânia: a fabricação de um mito. No Outras Palavras, Alan MacLeod mostra como e porque a máquina de guerra estadunidense propagandeia há anos a iminência de uma invasão russa.
.A hora e razões para um novo sistema financeiro. Ellen Brown apresenta as medidas alternativas contra o aumento da inflação e dos juros através dos bancos públicos. No Outras Palavras.
.A classe trabalhadora é um gigante social. Majoritariamente Jovem, feminina, negra e superexplorada. Valério Arcary questiona o que pode reengajar a classe trabalhadora brasileira. No Brasil de Fato.
.Como a recompensa da idiotice afeta o jornalismo. No Núcleo, Sérgio Spagnuolo discute o caso Monark e mostra porque a economia da atenção das Big Techs alimenta a ignorância, as polêmicas e o extremismo.
.1922. Os cem anos da Semana de Arte Moderna. Confira o acervo disponibilizado pelo Jornal da USP sobre o centenário da Semana de Arte Moderna.
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Hieronymus Bosch: detalhe de “O jardim das delícias”
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