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Ceará terá museu arqueológico no Cumbe, em Aracati; moradores divergem sobre gestão do equipamento

Acervo indígena de pelo menos 5 mil anos atrás está armazenado no local, que será aberto ao público ainda em fevereiro

por Roberta Souza, em Diário do Nordeste

Mais de 40 mil peças indígenas encontradas nos sítios arqueológicos do Cumbe, na zona rural de Aracati (a 137 km de Fortaleza), estão agora em um museu comunitário construído na região. O novo equipamento abriga um acervo datado de pelo menos 5 mil anos atrás e é fruto da reivindicação dos moradores diante da instalação de um parque eólico que alterou a dinâmica das dunas e provocou algumas perdas no patrimônio cultural existente ali.

Como medida compensatória, para mitigar os impactos deste processo, a empresa CPFL Renováveis, atual responsável pelos aerogeradores, entregou o museu para a Associação de Moradores e Moradoras do Cumbe Canavieiro, no dia 28 de janeiro de 2022. A ação se deu após quase uma década entre planejamento e construção, em parceria com o Iphan-CE, e  a ideia é que, ainda em fevereiro, o prédio seja aberto à visitação pública.

Mas, por trás desse acordo, há divergências entre os residentes da localidade, alguns dos quais questionam como será feita a gestão e a manutenção do Museu Arqueológico do Cumbe Canavieira daqui para frente.

Esse debate, aliás, começou em 2013, quando os habitantes da região identificados como quilombolas não foram incluídos como parceiros no Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC) que estabelecia a medida compensatória, apesar do histórico apontar para a participação deles desde o início do processo.

MOVIMENTAÇÕES INICIAIS

Quem contextualiza a situação é o historiador João do Cumbe, 48 anos, filho da comunidade e um dos primeiros a mapear a presença do acervo indígena na região. 

“Em 1995, comecei a trabalhar na escola do Cumbe e, naquele período, eu já tirava os alunos da sala e levava para as dunas para conversas sobre sítio, mangue. Era uma sala de aula na comunidade, os espaços começaram a fazer parte do processo educativo, e aí comecei a questionar os sítios arqueológicos”, lembra.

Nas visitas às dunas, João e os estudantes se deparavam constantemente com montes brancos de ostras, pedaços de cerâmica, utensílios feitos de barro, panelas, fragmentos para produção de pontas de flechas, machadinhas de lascar pedras etc. 

Então, a partir de um contato da comunidade com o Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), o mapeamento e a catalogação deste material começou a ser feito no início dos anos 2000.

Nos arquivos do Iphan, segundo aponta o atual Superintendente do Instituto no Ceará, o geógrafo Cândido Henrique de Aguiar Bezerra, os primeiros registros da presença dos sítios arqueológicos naquela região datam de 2008, quando do início do processo de licenciamento da usina eólica. 

“Nesses estudos foram identificados mais de 50 sítios arqueológicos no Cumbe. Antes desse ano, a existência do material não tinha chegado ao conhecimento do Iphan”, informa Cândido, ao que João atribui ao fato de não ter sido recebido em nenhuma das vezes que fez visitas ao órgão.  

Em paralelo a isso, parte da comunidade que o historiador representa também iniciava o processo de reconhecimento como quilombola, pauta que dividiu os moradores da região entre os que se identificavam com esse passado e os que não. É bem aqui que o futuro da gestão do museu comunitário começa a se desenhar.

QUEM VAI CUIDAR DO MUSEU?

Hoje, a comunidade encontra-se politicamente dividida entre a Associação Quilombola do Cumbe e a Associação dos Moradores e Moradoras do Cumbe Canavieira. A primeira reivindica a participação na gestão do equipamento, negociada apenas com a segunda após sucessivos embates jurídicos.

Segundo a presidente da Associação dos Moradores e Moradoras do Cumbe Canavieira, Manuela Gonzaga da Silva, essa gestão conjunta é inviável por uma questão de divergência de opinião relacionada à identificação da outra parte da comunidade como quilombola.

Por outro lado, a presidente da Associação Quilombola do Cumbe, Cleomar Ribeiro, não vê com otimismo a situação. “Esse Museu foi um filho planejado por nós quilombolas, pensado desde o nascimento até a finalização, e, nesse período, aqueles que não se reconhecem como quilombolas e em apoio à empresa, criaram outra associação. A empresa passou a compra do terreno para eles, que nunca quiseram esse museu, pelo contrário, eles ignoravam, dizendo que ia servir para colocar a mãe do João e os cascos de ostras, mas hoje foram contemplados e nós ficamos de fora”, lamenta.

Ao Diário do Nordeste, a CPFL Renováveis disse que investiu aproximadamente R$ 3,5 milhões em todo o processo de implantação do equipamento, incluindo compra e transferência do terreno para a Associação de Moradores do Cumbe e Canavieira, construção do Museu Arqueológico Comunitário do Cumbe e Canavieiras (MACCC) e treinamentos e capacitação da comunidade nas técnicas construtivas empregadas na sua construção. 

Sobre o relacionamento com as duas associações registradas na Comunidade, o empreendimento afirmou se pautar pela transparência das ações e pelo diálogo contínuo.

PATRIMÔNIO EM JOGO

Os quilombolas do Cumbe entendem que vivem hoje com o museu uma disputa pelas narrativas históricas, orais e pela memória do lugar.

“Qual história o museu deve contar? Dos povos originários, quilombolas ou da empresa eólica, colonizadora, que chegou, descobriu, é boazinha e está deixando um legado importante pra comunidade? As pessoas não sabem o que tem por trás, a luta para ter acesso à praia, às lagoas, ao território. A CPFL Renováveis  está aqui destruindo um modo de vida, praticando racismo ambiental e institucional, quando favorece o outro grupo”, afirma João.

Questionada sobre como via esta reivindicação da Associação Quilombola sobre a gestão do equipamento, a CPFL Renováveis disse apenas que “o Iphan incluiu a Associação de Moradores do Cumbe e Canavieira como um todo no TAC”, sem fazer referência direta à divisão política da comunidade.

O Superintendente do Iphan-CE, por sua vez, defende que o envolvimento seja de todos.

Em meio ao embate, resta ainda a indefinição sobre como o museu e o patrimônio arqueológico serão mantidos e preservados daqui para frente.

“Neste momento, estamos traçando o plano de funcionamento e buscando as parcerias, tendo em vista que a associação é comunitária e não dispõe de recursos financeiros”, explica Manuela Gonzaga da Silva, presidente da associação com representação jurídica sobre o museu.

Segundo ela, já foram feitas algumas sinalizações com a Prefeitura de Aracati sobre o assunto. Mas, por enquanto, é voluntariamente que alguns moradores estão realizando atividades básicas para manter o acervo seguro, como, por exemplo, a vigilância diurna e noturna.

Juridicamente, a CPFL Renováveis não tem mais responsabilidade por este tipo de manutenção, o que foi questionado pela Associação Quilombola do Cumbe durante um longo período. Agora, caberá à comunidade, em meio a este conflito político e de gestão, encontrar saídas sustentáveis para a situação.

Foto: João Zinclar

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