Sem olhos azuis: o drama dos refugiados africanos esquecidos no sul da Espanha

Quando falamos de países em conflito no continente africano, a realidade é ainda mais chocante e deprimente

Tadeu A. Matheus*, Brasil de Fato

Neste exato momento está acontecendo uma barbárie contra refugiados africanos no sul da Espanha, e a mídia hegemônica não deu uma nota. É o pacto narcísico que Cida Bento nos traz como marco conceitual. A empatia e comoção com brancos europeus de olhos azuis jamais será a mesma quando vemos os refugiados do Afeganistão, da Líbia ou do Marrocos. Mas temos que informar que essa barbárie que ocorre nas fronteiras sul da Espanha não é algo novo. 

Esse é um processo recorrente e que tem o racismo e a xenofobia como base estruturante das políticas de imigração que criminaliza os refugiados africanos e os impedem de entrar nas fronteiras espanholas que fazem divisa com o Marrocos, país que, ao lado de Líbia, Argélia, Tunísia e Egito, está localizado na região norte subsaariana do continente africano.

Nos últimos dias a imprensa internacional vem fazendo uma cobertura sobre a guerra na Ucrânia com destaque aos refugiados ucranianos que estão em diáspora para alguns países europeus como Polônia, Romênia e Hungria. 

O projeto expansionista da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sentido leste europeu, vem se intensificando nas últimas décadas.  A guerra da Rússia contra a Ucrânia tem despertado a atenção da imprensa global como pauta central nos noticiários ocidentais e já escolheu um lado para ser absolvido e outro lado para ser condenado. 

O jogo de xadrez geopolítico acirrou, nos últimos anos, uma disputa entre as super potências bélicas e econômicas e tem gerado tensões no norte global com impactos estruturais nos países que compõem a região do sul global.

Essa é mais uma guerra de poder e de controle hegemônico que coloca mais tensões sobre o debate acerca dos direitos humanos no processo migratório de milhares de civis vítimas das guerras entre as nações que detém o poder bélico, político e econômico.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em 31 de outubro de 2020, havia 282.571 refugiados no Iraque, incluindo 241.738 sírios (85,6% do total), 20.610 turcos (7,3%), 10.813 iranianos (3,8%), 7.964 palestinos (2,8%), 766 sudaneses (0,3%) e 680 outros (0,2%). 

Dos 665.000 afegãos que foram deslocados dentro do país em 2021, 80% são mulheres e crianças. As famílias relatam que foram forçadas a fugir de repente, mesmo correndo o risco de sofrerem ataques de grupos armados durante a fuga. As crianças do Afeganistão estão crescendo em meio a essa crise.

Quando falamos de países em conflito no continente africano, a realidade é ainda mais chocante e deprimente. Segundo a deputada do Parlamento Espanhol Maria Dantas, brasileira que luta pelas questões de imigrantes no Parlamento: “a Espanha externaliza as suas fronteiras, o controle das suas fronteiras pagam alguns países, Marrocos é um desses países”. 

E de forma categórica, a deputada relata que há um processo de compra de segregação por parte do governo espanhol que limita o acesso dos refugiados africanos nas fronteiras das colônias espanholas na região da África subsaariana.  “A última quantia que a Espanha pagou ao Marrocos foi de 320 milhões de euros para que Marrocos não deixe passar nenhum imigrante. A Espanha, nesse caso a Ceuta e a Melilla que são as cidades espanholas no continente africano, dentro do Marrocos.”

Diferente do processo de acolhimento organizado para receber os refugiados ucranianos em dezenas de países, a União Europeia não abriu suas fronteiras para acolher plenamente as milhares de famílias refugiadas ao longo das últimas décadas de conflitos intensos nos territórios afegãos e palestinos.

“O estatuto do refugiado de 1951 de Genebra diz: está proibida a devolução do refugiado, é proibido no direito de asilo, é proibido no direito internacional. Quando o estrangeiro pisa nesse país que assinou esse estatuto, e são basicamente todos os países que compõem as nações unidas, esse país não pode devolver esse refugiado”, explica a combativa deputada.

O racismo sistêmico e a xenofobia estão intrinsecamente amalgamados nas políticas truculentas de extradição dos refugiados africanos que buscam proteção e melhores condições de vida em alguns dos países que formam o bloco econômico da União Europeia. 

Outras formas de apartação de africanos são utilizadas para impedir o processo diaspórico de centenas de homens e mulheres que se encontram em territórios de conflitos sociais e até por conta de governos ditatoriais que perseguem e torturam civis que se opõem aos governos locais.

Segundo Maria, a crueldade não tem limite, e revela: a Espanha faz, ilegalmente, a devolução desses refugiados na fronteira. Só que na Espanha em 2015 foi legalizado, estava a direita no poder e eles aprovaram a lei mordaça, lei orgânica da seguridade cidadã. E tem uma exposição única que diz que os estrangeiros que entrarem de forma irregular, serão devolvidos na fronteira.

A deputada, que no seu mandato defende os direitos humanos e a proteção de refugiados, é advogada e vive há quase três décadas na Espanha. A sergipana de Aracaju, que tem dupla cidadania, foi eleita em 2019 pela Esquerda Republicana da Catalunha. Para ela, lutar pelas causas de pessoas em situação de vulnerabilidade é uma questão de empatia, de entender que todos têm os mesmos direitos. 

São pessoas, na sua grande maioria homens jovens, que fogem dos conflitos nas suas terras, muitos desses conflitos são patrocinados por países europeus que visam lucrar, por exemplo, com a venda de armas que abastecem esses conflitos políticos.  

Isso provoca um aumento expressivo na violência física e psicológica fazendo com que parte da população fique numa condição paupérrima e totalmente vulnerável em meio às condições mais devastadoras e degradantes daqueles territórios em conflito, buscando uma vida nova se arriscando ao  tentarem passar pelas fronteiras espanholas.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia escancarou o debate sobre o racismo sistêmico com dimensões globais. A cobertura do conflito na Europa está recebendo uma cobertura ampla e condicionando a opinião pública a enxergar essa crise gerada pela disputa de uma hegemonia bélica com lupas direcionadas aos refugiados ucranianos. 

Além disso, a imprensa hegemônica criou um sensacionalismo em torno desse conflito no leste europeu, indignando o mundo com a narrativa de ser inaceitável uma nação de pessoas brancas, de olhos azuis e europeias estarem na condição de refugiados, porém o mesmo não ocorre enquanto milhares de vidas humanas dos refugiados africanos são ceifadas todos os dias nas fronteiras dos países que fazem parte da União Europeia.

*Tadeu A. Matheus é sociólogo, mestre e doutorando em mudança social e participação política pela Universidade de São Paulo (USP).

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo

Imagem: A empatia e comoção com brancos europeus de olhos azuis jamais será a mesma quando vemos os refugiados do Afeganistão, da Líbia ou do Marrocos – @javibernardop

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