A “desprofissionalização” se opõe ao trabalho decente, precariza vínculo com o SUS e transforma o trabalho em “bico”, realizado por amadores
por Paulo Capel Narvai*, em A Terra é Redonda
Não houve um dia sequer, desde sua criação em 1988, em que o Sistema Único de Saúde (SUS) não tenha sido atacado, de algum modo. Muitas vezes, com ignóbil ferocidade, como fez um Bolsonaro ao postar no Twitter, no auge do número de óbitos por covid-19, em 2020, que um hospital privado de São Paulo teria “estabilizado” a situação, estaria com “vagas de UTI”, pois “já deu alta para 400 pacientes” e teria criado um “protocolo que reduziu de 14 para 7 dias tempo de uso de respiradores”. Concluía a postagem reclamando: “SUS nunca a procurou para saber qual foi o protocolo usado”.
O “protocolo” era uma mixórdia que juntava hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, uma combinação que não é apenas inócua para covid-19, mas lesiva para alguns usuários cardiopatas. Os responsáveis pela criação do tal “protocolo” sabiam da inocuidade e dos riscos. Vinte pessoas ligadas à empresa, que alega ser “vítima do sistema político”, são acusadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara Municipal de São Paulo de fraudar atestados de óbito e praticar 52 crimes.
Subordinar o SUS a uma empresa do sanonegócio, equivalendo-os infantilmente, e insinuar que ele teria algo a aprender com ela sobre o que fazer para enfrentar a pandemia de covid-19, é uma inversão bem arrogante e demonstração de desconhecimento sobre o que é o SUS, compreensível considerando-se o perfil político do autor do referido tuíte, mas é, sobretudo, um modo de atacar, desqualificando-o, o sistema público de saúde do Estado brasileiro.
Registre-se que atacar, ao invés de defender, instituições públicas que deveriam ser protegidas por autoridades públicas por elas legalmente responsáveis, direta ou indiretamente (a postagem foi feita por um senador que é filho do presidente da República), é uma característica marcante de ambos, em suas vidas públicas.
Alguns ataques ao SUS são, porém, muito mais lesivos ainda ao sistema e aos brasileiros que, em todos os cantos do país, precisam, contam e são beneficiados por ações realizadas ou controladas pelo sistema.
O principal ataque, ininterrupto desde o primeiro dia, e muito grave ao SUS, é o feito aos recursos utilizados para financiá-lo. Já na “gestação” buscou-se produzir a “inanição do rebento”, deixando-o à míngua. Sob a liderança do então senador José Serra, os constituintes não aprovaram a instituição de fontes estáveis, que deveriam assegurar permanência, adequação, suficiência e fluxo aos recursos financeiros que deveriam bancar investimentos e custeio do SUS, em todos os municípios, base operacional do sistema que se estava criando.
Para protestar contra a criação de um sistema sem que a ele fossem vinculados recursos para viabilizá-lo, constituintes do PCdoB chegaram ao ponto de votar contra a criação do SUS, na sessão da Assembleia constituinte de 17 de maio de 1988. Mas, justiça se faça: uma vez criado o sistema, o PCdoB tem sido um dos partidos que mais firmemente vêm defendendo o SUS desses ataques a que me refiro neste artigo.
Nos últimos anos, os ataques aos recursos do SUS têm agravado muito esse quadro crônico, ampliando ainda mais o que já se considera um “desfinanciamento” do sistema. Conforme mencionei no artigo “Frente pela Vida e banalização da violência”, análises econômicas confiáveis indicam que mais de 48 bilhões de reais foram tirados do orçamento do SUS, entre 2018 e 2022.
Além de tirar dinheiro do SUS, recursos que deveriam ser utilizados para pagar os salários dos profissionais de saúde, vêm sendo desviados de suas finalidades e utilizados para financiar gastos das Forças Armadas, conforme denúncia do Conselho Nacional de Saúde (CNS), com base em análise da aplicação de recursos orçamentários, realizada pelos economistas Francisco Funcia e Rodrigo Benevides, da Comissão de Orçamento e Financiamento, que assessora tecnicamente o CNS. De acordo com o estudo, o ministério da Defesa abocanhou do SUS mais de R$ 150 milhões, para consertar aviões e comprar equipamentos de escritório.
Uma das competências do CNS, estabelecidas pela Lei nº 8142/1990, é avaliar o Relatório Anual de Gestão (RAG) do Ministério da Saúde. O conselho vem fazendo o seu trabalho de fiscalizar e monitorar a prestação de contas do Ministério da Saúde: desde 2016 esses relatórios têm sido reprovados. Mas os ataques ao SUS não cessam.
Se o desfinanciamento é um ataque grave, a desprofissionalização no SUS é quase um crime. “Desprofissionalização” é um neologismo que venho utilizando para me referir ao processo político de longa duração cujo objetivo é precarizar o trabalho no SUS que, transformado em “bico”, se expressa pelo amadorismo, a instabilidade do vínculo empregatício e pelo trabalho por empreitada, segundo ações e operações pré-determinadas, e inviabiliza, por ação ou omissão, a promoção do trabalho decente no sistema universal de saúde brasileiro.
Mesmo em estados em que a atenção básica à saúde é bem-organizada e a estratégia de saúde da família está consolidada, como Ceará e Paraíba, predomina o vínculo empregatício precário (51,3%), representado por contratos temporários de trabalho – ou nem isso, como demonstra estudo publicado em março de 2022. Esse quadro é ainda pior na maioria dos estados.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) propôs, em 1999, o conceito de “trabalho decente” como a atividade laboral “adequadamente remunerada, exercida em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna”.
Laís Abramo, diretora do escritório da OIT no Brasil, explica que o “trabalho decente” se apoia em quatro pilares: “os direitos e princípios fundamentais do trabalho, a promoção do emprego de qualidade, a extensão da proteção social e o diálogo social” e visa a “estimular a criação de mais e melhores empregos, reduzir a informalidade, combater o trabalho infantil, o trabalho escravo e todas as formas de discriminação no emprego, promover o emprego juvenil, ampliar e melhorar a cobertura da proteção social, impulsionar a educação e a capacitação para o trabalho, reforçar a produtividade e a competitividade das empresas, e fortalecer os direitos trabalhistas”.
Para Abramo, o trabalho decente é considerado um direito humano e um fator fundamental para “impulsionar a distribuição mais equitativa dos benefícios do crescimento econômico, favorecendo a inclusão social” e a “superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável”.
Não obstante, no SUS vem predominando o oposto do trabalho decente. O trabalho indecente é a forma que a desprofissionalização tem assumido no sistema, o que representa uma violação frontal da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, das Nações Unidas, cujo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 8 (ODS#8) impõe aos países signatários, como o Brasil, que busquem “promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos”. O ODS#8.8 afirma ainda que incumbe aos países “proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários”.
É comum que as análises sobre o trabalho no SUS se refiram a termos e expressões como “recursos humanos”, “ocupações”, “força de trabalho”, “trabalhadoras e trabalhadores”, “pessoal da saúde”, dentre outras. São modos de se referir que guardam coerência com diferentes alinhamentos e referenciais teóricos para lidar com o assunto. São abordagens técnicas, pretensamente objetivas, e que buscam legitimidade a partir desse modo de abordar. Eu mesmo o faço, em várias situações. Mas, neste artigo, gostaria de enfatizar a relevância de utilizar o termo “profissionais” para me referir ao tema, pois é exatamente disso que se trata, considerando-se que as palavras não são neutras, nem inocentes, mas, ao contrário, vêm carregadas de significados.
A afirmação da condição profissional de quem trabalha no SUS tem importância estratégica pois, 34 anos após a criação do sistema, os trabalhadores seguem sendo vistos e tratados como meros “recursos humanos”, que compõem o “pessoal do SUS”, que em diferentes “ocupações” se distribuem por “quadros de servidores”, cujo conjunto forma a “força de trabalho” do setor. Não raro, são reduzidos à forma eufemística, com origem ideológica no setor privado, que os vê como “colaboradores”.
Fala-se, aqui e ali, em planos de cargos, carreiras e salários, em integração ou articulação em nível nacional, em mesas de negociação, em gerência, produtividade, educação continuada e em “entregar”, mais e melhor. Durante a pandemia de covid-19 não faltaram qualificativos elogiosos como “heróis”, “nobres” e “altruístas” e menções ao “empenho e a abnegação” e ao “sacrifício da própria vida e de seus familiares”. São reconhecimentos justos.
Porém, não apenas heróis, muito menos suicidas. Nem filantropos, nem amadores, nem caridosos, nem nobres, nem improvisados, nem colaboradores, nem diletantes, nem altruístas, nem “fazedores de bicos”. Profissionais.
Repudiando o clientelismo político-partidário e o nepotismo, as trabalhadoras e os trabalhadores do SUS querem ser reconhecidos como os profissionais que efetivamente são. Seja qual for o nível da formação, seja qual for o grau do desempenho que conseguem atingir, seja qual for sua função no sistema, almejam o profissionalismo. Rejeitam o trabalho indecente, as relações trabalhistas precárias, o vínculo empregatício desprotegido e instável, os ambientes e processos de trabalho insalubres e patogênicos.
Isso é o que se depreende das propostas aprovadas em todas as conferências nacionais de saúde realizadas desde 1986, quando na histórica 8ª Conferência, os participantes aprovaram a necessidade de “remuneração condigna e isonomia salarial entre as mesmas categorias profissionais nos níveis federal, estadual e municipal, e estabelecimento urgente e imediato de plano de cargos e salários”. A aprovação de propostas pedindo a instituição de uma Carreira de Estado para os Profissionais do SUS ocorreu em todas as conferências que se seguiram.
Em 7 de abril de 2022, a ‘Frente Pela Vida’ lançou a Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde, organizada para recolher, em todo o país, propostas para o SUS e para assegurar o efetivo exercício do direito à saúde no Brasil. O objetivo da conferência, que se encerrará em 5 de agosto, o Dia Nacional da Saúde, é produzir uma agenda para dialogar com os candidatos à presidência da República e, também, funcionar como uma referência para os debates da 17ª Conferência Nacional de Saúde, convocada para 2023.
A Conferência de Saúde e as candidaturas à Presidência precisam combater a desprofissionalização no sistema público de saúde. Hoje, muitas iniciativas podem ser desencadeadas com essa finalidade. Mas, sejam quais forem, têm o dever de respeitar a vontade dos profissionais e assumir um claro compromisso com a instituição de uma carreira de Estado para os profissionais do SUS.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica).
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Imagem: Matheus Miguel