Aumento da fome: “A insegurança alimentar é resultado de ações políticas”, diz vice do Consea

No Dia Mundial da Segurança Alimentar, a vice-presidenta do Consea- RS fala sobre a situação atual no país e no estado

Fabiana Reinholz, Brasil de Fato

Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, 116 milhões de pessoas, mais da metade dos lares brasileiros, estavam em situação de insegurança alimentar e 19 milhões passavam fome no final de 2020. Essa semana a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) irá divulgar os novos números da fome, e a prerrogativa é de fato de um aumento de pessoas nesta condição. É o que observa a vice-presidenta do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea/RS), Ana Carolina Mattos. 

Nutricionista Social, especialista em Saúde Mental, mestra em Ciências Sociais, doutoranda em Políticas Públicas, Ana é autora do Livro “Mas, se a gente é o que come, quem não come nada – SOME”. Nesta 7 de junho, Dia Mundial da Segurança Alimentar, Ana conversou com o Brasil de Fato RS sobre a falta de alimentação adequada e de qualidade, realidade que voltou a assolar o Brasil.

“É preciso reconhecer que a insegurança alimentar no Brasil e no estado não decorre de uma falta de disponibilidade alimentar ou produção insuficiente de alimentos, mas sim pela falta de acesso à terra para produção e/ou renda para comprar alimentos. A insegurança alimentar é resultado de ações políticas, e de uma estrutura social que é guiada pela lógica do mercado e pelo monopólio das grandes corporações transnacionais”, destaca. 

Outra ameaça à segurança alimentar diz respeito aos agrotóxicos e o pacote do veneno. Conforme destaca a nutricionista, a aprovação do pacote do veneno é mais um resultado do processo de intensificação de desmonte no campo da segurança alimentar, que vem promovendo declínios em relação a garantia de direitos, em particular do direito à alimentação. O governo Bolsonaro, desde o início do seu mandato, aprovou 1.629 novos agrotóxicos.

Abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS –  O que queremos dizer quando falamos em alimentação saudável e soberania alimentar? 

Ana Carolina Mattos –  O Brasil, enquanto área da Segurança Alimentar, vem no decorrer dos anos enfrentando grandes oscilações democráticas e, em virtude disso, grandes retrocessos no processo de consolidação dos avanços políticos neste campo. Cabe relembrar que desde o ano de 2006 temos uma lei orgânica de segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN 11.346 de 15 de setembro de 2006) e também temos a alimentação garantida enquanto um Direito Humano, legitimado pela nossa Constituição desde o ano de 2010. 

A LOSAN institui a criação do Sistema Nacional de Alimentação e Nutrição (SISAN), que é um sistema público, de gestão intersetorial e participativa. Isso possibilita a articulação entre os três níveis de governo para a implementação e execução das políticas públicas de segurança alimentar. Então no cenário nacional, em específico a partir da LOSAN em 2006, ocorre um amadurecimento notável da compreensão do que seja uma alimentação saudável e adequada. Quando falamos em alimentação adequada estamos nos baseando no conceito expresso através da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN):

A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. (BRASIL, art. 3º, 2006).

Temos outras derivações fundamentais para serem esclarecidas. Por exemplo, quando usamos o conceito de alimento seguro entendemos como aquele que não causa danos à saúde, relacionado as condições físicas e sanitárias do alimento; já para segurança alimentar entende-se que abrange o acesso à alimentação, em quantidade e qualidade, respeitando hábitos, costumes e cultura, além de educação alimentar. Contudo os fatores determinantes da nossa alimentação e hábitos alimentares partem de um olhar para as diferentes lentes: econômica, social, política, cultural, psicossocial, construção histórica, e, também, pela vertente ética. O comportamento alimentar é de fato complexo, que inclui determinantes internos e externos aos indivíduos.

Escolhas alimentares estão permeadas de referências, como exemplo, os gostos alimentares; a cultura local na qual os sujeitos coabitam; o acesso a alimentos de qualidade; interferências do mercado alimentar globalizado; o preço dos alimentos; a forma como se realizam as refeições – em grupo, sozinhos, em família, com amigos; o tempo social disponível para comensalidade; convicções éticas, religiosas, o investimento em políticas públicas; cada qual desempenha interferências na forma como nos alimentamos, podendo alcançar a segurança alimentar e nutricional ou serem barreiras de alcance.

Por alimentação adequada e saudável cabe, ainda, referenciar a elaboração de guias alimentares, que se insere no conjunto de diversas ações intersetoriais e que têm como objetivo melhorar os padrões de alimentação e nutrição da população e contribuir para a promoção da saúde. Segundo o Guia Alimentar para a população Brasileira, versão lançada em 2014, a alimentação adequada e saudável é um direito humano básico que envolve a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais do indivíduo e que deve estar em acordo com as necessidades alimentares especiais; ser referenciada pela cultura alimentar e pelas dimensões de gênero, raça e etnia; acessível do ponto de vista físico e financeiro; harmônica em quantidade e qualidade, atendendo aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e baseada em práticas produtivas adequadas e sustentáveis. A alimentação adequada e saudável deriva de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável. Recomendações sobre alimentação devem levar em conta o impacto das formas de produção e distribuição dos alimentos.

Outra forma de identificar a alimentação adequada e saudável diz respeito às possibilidades de escolha alimentar dos indivíduos. Aqui entra o conceito de Soberania Alimentar, que surgiu por volta da década de 1990 e destaca a importância da autonomia alimentar das comunidades, respeitando a cultura e hábitos de cada país, assim como está associado à geração de emprego e a menor dependência das importações e flutuações de preços do mercado exterior. Nesse sentido, soberania alimentar significa dizer que cada país, cada território possui autonomia para decidir as suas próprias estratégias que garantam uma alimentação saudável para sua população. Essas estratégias acontecem a partir também da consolidação das nossas políticas públicas de alimentação e nutrição que visam garantir uma qualidade alimentar e acesso a população brasileira.

Como tu analisa a situação atual do RS quando pensamos em alimentação saudável e soberania alimentar, levando em conta a situação da fome pela qual atravessa o país e o estado? 

Bem, a partir de 2010, a LOSAN passa pela sua regulamentação e ocorre a criação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN). A ocorrência de um declínio rápido e progressivo mostrou que os problemas relacionados a alimentação da população brasileira demandam permanente atenção. É possível relacionar à crise econômica nacional com os cortes contínuos no orçamento em 2018, que corroboraram de forma intensa para estagnar o que se tinha avançado em temos de enfrentamento da fome. Essa situação promoveu declínios consideráveis nos índices de redução da pobreza e no seguimento das políticas de SAN.  

O acesso aos alimentos, na sociedade moderna, predominantemente urbana, é determinado pela estrutura socioeconômica, a qual envolve principalmente as políticas econômica, social, agrícola e agrária. A retomada de desempenho negativo frente aos índices de SAN guarda relação com acontecimentos que alteraram o contexto ao gerar maior instabilidade socioeconômica. É preciso reconhecer, que a insegurança alimentar no Brasil e no estado não decorre de uma falta de disponibilidade alimentar ou produção insuficiente de alimentos, mas sim pela falta de acesso a terra para produção e/ou renda para comprar alimentos. A insegurança alimentar é resultado de ações políticas, e de uma estrutura social que é guiada pela lógica do mercado e pelo monopólio das grandes corporações transnacionais.

Em 2019, por exemplo, ocorreu a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) sem nenhuma proposta substitutiva, ocasionando uma barreira para o exercício do controle social na SAN. Esse fato anulou a contribuição popular nos processos de definição das políticas públicas, reduziu a possibilidade de o governo federal ter acesso direto ao conjunto de necessidades, prioridades e propostas dos mais amplos setores da sociedade brasileira. Esse fato foi prejudicial principalmente àqueles em situação de maior vulnerabilidade.

No período entre 2014 a 2019 ocorre uma intensa permissão do uso de agrotóxicos, aumentando em grande escala o uso de contaminantes químicos na alimentação brasileira, o que faz do Brasil, na atualidade, um dos países com maior uso de químicos prejudiciais a saúde nos alimentos. Tais usos colocam a prova a qualidade da alimentação disponibilizada para a população.

Outra relação com os níveis de Insegurança Alimentar deve-se às práticas alimentares contemporâneas que são constantemente influenciadas pela industrialização dos alimentos, acrescida dos avanços tecnológicos na agricultura, e somada a uma economia com vistas no lucro em cima dos alimentos. As consequências de uma alimentação global são apresentadas como problemas de saúde pública, uma vez que a comida e a comensalidade são princípios de saúde e a alimentação é uma ferramenta de enfrentamento das doenças crônicas não-transmissíveis.

Estas são estruturas contextuais que foram vivenciadas anteriormente a pandemia da covid-19, o que vem a confirmar que a pandemia não gerou um estado de insegurança alimentar, algo que já vinha se agravando os últimos anos. A pandemia, entretanto, se instaura neste quadro regressivo no campo da SAN e provoca uma intensificação dos problemas relacionados com a alimentação. A pandemia da covid-19 tem o potencial de afetar negativamente uma situação de SAN, que já não era a ideal mesmo antes da crise sanitária. 

Em 2021, dados bastante recentes do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), apontou que, ao final de 2020, já se somava 19,1 milhões de brasileiros sofrendo com o mal da fome, ou seja, 9% da população brasileira sem acesso regular e permanente à alimentos. Essa semana a Rede Penssan irá divulgar os novos números da fome, e a prerrogativa é de fato de um aumento de pessoas nesta condição.

Com relação ao nosso estado, a fome representada pelos índices de InSAN grave persiste, especialmente entre grupos populacionais específicos, tais como: povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, povos de matriz africana e indivíduos em situação de rua. Também são pessoas fragilizadas e em maiores situações de risco de fome aquelas sem remuneração permanente, subempregados e pequenos agricultores. também outras populações como quilombolas, migrantes, povos ciganos, mães solo, comunidade LGBTQIA+ e outras específicas e periféricas. 

Frente à situação de fome no estado, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (Consea/RS) recomendou ao poder público diversas iniciativas: as articulações do Consea/RS junto às organizações agroecológicas do estado, sobretudo, às feiras orgânicas e agroecológicas para garantir permanência; denunciou o desmonte de programas federais e de políticas públicas estratégicas, em especial o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Atuando na luta nacional em defesa do Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), O Consea/RS recomendou o Fundo Nacional da Alimentação Escolar (FNDE) para alteração na Lei do PNAE, permitindo que durante a pandemia os alimentos fossem oferecidos por meio de kits para as famílias dos estudantes, dado que as escolas estavam fechadas, o que somado às manifestações de diversas outras entidades, foi atendido. 

Diversas outras recomendações foram apresentadas pelo Consea/RS desde a última Conferência Estadual de SAN ocorrida em 2019, muitas destas, ocorreram a partir do início da pandemia da covid-19, que agravou ainda mais as situações de insegurança alimentar e nutricional. Dentre as principais recomendações estão a criação de programa de renda básica estadual, o que já foi aprovado no parlamento e não sancionado pelo governador, além de ampliação de equipamentos públicos como restaurantes populares, cozinhas comunitárias e solidárias, promoção da agroecologia e das feiras agroecológicas, compras institucionais da agricultura familiar e outras. 

Então é neste contexto de adversidades que o Consea/RS ousou em convocar a VIII Conferência Estadual de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (VIII CESSANS-RS), com o tema “A Fome voltou! Medidas já”! A etapa estadual será realizada nos dia 27 e 28 de julho, na Assembleia Legislativa, e as informações sobre as conferencias municipais, regionais, livres estão disponíveis no site da conferencia. Ainda outras informações podem ser acessadas pelas redes sociais do conseaRS (Instagram: @consea_rs | Facebook: Consea RS).

O desafio da VIII CESSANS-RS é constituir um diagnóstico participativo na perspectiva das organizações da sociedade civil e apresentar as diretrizes para as políticas públicas necessárias para a garantia do DHAA. As diretrizes da VIII CESSANS serão entregues também aos candidatos e candidatas que disputarão aas eleições de 2022, com o intuito de subsidiar os(as) próximos(as) gestores(as) acerca do que deve ser feito pelo poder público. Ao mesmo tempo, dada a urgência do atual momento, será uma forma de prevenir propostas oportunistas para enfrentar a fome.

A fumigação aérea foi proibida em regiões como a União Europeia por seus efeitos negativos para a saúde e o meio ambiente / Flickr

Que impactos o pacote do veneno pode trazer para a questão da alimentação saudável?

A aprovação do pacote do veneno é mais um resultado do processo de intensificação de desmonte no campo da segurança alimentar, que vem promovendo declínios em relação à garantia de direitos, em particular do direito à alimentação. Os níveis atuais de insegurança alimentar grave – fome, são gerados por grandes instabilidades socioeconômicas, desigualdades sociais e acréscimo no preço dos alimentos que vem promovendo um enorme descontrole na aquisição de alimentos. 

Ainda se não bastasse os alimentos que hoje estão disponíveis para o consumo tendem a ser influenciados pelo marketing de grandes indústrias e corporações que visam lucro. Já outras categorias de alimentos, como aqueles in natura que entendemos ser saudáveis e adequados, vamos observar que estes sofrem influencias do sistema agro, com a utilização de agrotóxicos em grande escala. Nesse sentido, a aprovação da PL do pacote do veneno autoriza a utilização de contaminantes químicos na nossa alimentação e fortalece esse declínio em termos de segurança alimentar, além de ser um retrocesso histórico configurado, promovendo graves riscos a saúde. Neste sentido, estaríamos então seguros com a nossa alimentação?

Ainda dentro do contexto da soberania alimentar, tu és autora do livro “Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some!”. Gostaria que tu nos falasse um pouco do livro, como ele surgiu e também, como garantir a soberania alimentar para as pessoas que passam fome?

O tema da fome atravessa a história das comunidades brasileiras e nestes inícios do século XXI é uma questão em alta que desafia o cenário brasileiro a travar medidas urgentes para enfrentar situações indignas de vida. A fome que em vários períodos históricos – tão esquecida de si mesma, talvez por uma complexidade de propor soluções – se manteve silenciada. 

A literatura cientifica aborda a temática da fome, e diversos estudos estão discriminados no livro, comprovando as investidas academiadas ao tema da fome. Mas, o estudo da fome atravessa diferentes projeções, pois a fome afeta de forma distinta à aqueles e aquelas ao qual se depara. Tratar a fome no âmbito mais extremo que se pode imaginar nos faz perder de vista os limites possíveis para se conviver com a fome. Logo, para as populações em situação de rua conviver com a fome é uma condição do cotidiano, uma experiência constante de suportar a fome de alimento, mas também de moradia, de saúde, de educação e de políticas públicas.

A fome é mais que uma questão exclusiva da população de rua, que escreve em busca de superar os limites de sua forma de viver. Limites que a humanidade pretendeu superar e permanentemente serviu à elaboração de críticas aos sistemas que não conseguiram responder uma condição de vida digna para todos. Críticas muitas vezes limitadas a simples constatação dos problemas, mas, outras tantas vezes, propositivas. Como aquelas do século XVIII quando o pensamento liberal – ainda em sua dimensão revolucionária – anunciava um novo modelo de organização sociopolítica no qual os seres humanos poderiam sonhar em ser livres iguais e fraternos. 

O ineditismo está em mostrar as imensas desigualdades sociais travados no século XXI, a problemática da fome abordada em plena contemporaneidade pelo o crescimento gigantesco da pobreza e da miséria que exigem novas respostas aos dramas contemporâneos. Tempos como o que vivemos exigem das ciências humanas uma dedicação rigorosa em busca do conhecimento, a ousadia de traçar caminhos de aproximação e a ir além dos limites estabelecidos pelos pioneiros do século XVIII e XIX, e mesmo dos significativos avanços das análises do século XX. Tratar a fome a partir da presença de pessoas em condição de rua é inédito.

Edição: Marcelo Ferreira

Imagem: Foto: Manuela Hernández

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