Em entrevista exclusiva, a candidata a deputada federal falou sobre as eleições de 2022 e a esperança de eleger pessoas trans para o Congresso pela primeira vez
Por Giulia Afiune, Agência Pública
Professora de literatura e candidata a deputada federal pelo PDT em Minas Gerais, Duda Salabert luta diariamente para ocupar dois espaços historicamente negados às pessoas trans como ela: a escola e o Parlamento.
Em 2020, Duda foi eleita a primeira vereadora trans de Belo Horizonte com número recorde de votos para aquele cargo na cidade. Já na eleição de 2022, que ela considera “a mais importante da nossa geração”, está determinada a ajudar a eleger, pela primeira vez na história, pessoas travestis e transexuais para o Congresso Nacional. “Quando uma travesti é eleita, quando ela avança, a sociedade inteira avança, porque nós fazemos parte de um grupo que a expectativa de vida não supera 35 anos, que 90% tá na prostituição”, diz a vereadora, que nos últimos dias decidiu se candidatar a deputada federal em vez de senadora após seu partido ter cogitado uma aliança com o PSDB em Minas Gerais.
A luta para conquistar espaços em um país onde a LGBTfobia é estrutural requer coragem, pois é permeada por riscos e ameaças. Na semana passada, Salabert foi novamente ameaçada de morte, segundo ela, pelo mesmo grupo neonazista que a atacou no ano passado e na época motivou sua demissão do colégio onde trabalhava. Ela acredita que a eleição deste ano será a mais violenta da história e teme por sua segurança. “Não sei por quantas violências políticas eu vou passar, nem se vou sair viva desse processo”, desabafa.
Apesar disso, ela continua na disputa eleitoral e busca inspiração na literatura para seguir em frente. “A política também tem que ter poesia. A poesia é aquilo que toca, que emociona, aquilo que sensibiliza, é aquilo que faz você pedir voto.”
A vereadora Duda Salabert foi escolhida pelos leitores que doam à Agência Pública para esta Entrevista dos Aliados especial sobre temáticas LGBTQIA+. Além de sugerir nomes e votar para escolher quem será entrevistado, os Aliados da Pública também enviam as próprias perguntas, que foram respondidas nesta entrevista. Se você quiser participar das próximas Entrevistas dos Aliados e fortalecer nossa cobertura das eleições de 2022, vire Aliado da Pública.
O Brasil teve um recorde de candidaturas trans na eleição de 2020, e é possível que tenhamos um número alto também nas eleições deste ano. A que você atribui esse aumento?
Eu acho que são dois pontos. Essas candidaturas, primeiramente, são resultado de um processo histórico de luta e resistência do movimento de pessoas travestis e transexuais, não só no Brasil, mas na América Latina. A organização do movimento de pessoas travestis e transexuais nos últimos anos começa a gerar frutos agora nessas candidaturas, e em candidaturas com fôlego e musculatura para saírem vitoriosas.
Uma outra questão é que nós estamos vivendo a maior crise econômica da história do capitalismo e, nesse contexto de crise, as pessoas mais vitimadas são as que estão em extrema vulnerabilidade social, onde estão inseridas justamente as pessoas travestis e transexuais. Nós fazemos parte de um grupo em que 90% está na prostituição — isso antes da pandemia. Com a pandemia, possivelmente esse cenário se agudizou.
No contexto de crise, a política institucional é uma ferramenta fundamental e potente para a transformação. E essa crise econômica ainda carrega como recheio o governo fascista do Jair Bolsonaro [PL], o que obriga nós, pessoas LGBT, sobretudo travestis e transexuais, a ocupar esses espaços de poder na busca de tentar uma solução ou mitigar os danos em relação à necropolítica. Se nós fazemos parte de um grupo que 90% está na prostituição, nós nunca fomos pauta nem da esquerda, nem do centro, nem da direita. Sempre fomos nós por nós. Se nós não ocuparmos esses espaços [no Parlamento], nós não vamos ter uma transformação no país.
Me chamou atenção a forte articulação entre essas candidaturas, inclusive com a criação da Frente Nacional TransPolítica em 2021 e com uma articulação para formar uma bancada de depuTRAVAS no Congresso Nacional. Como essa articulação funciona na prática? Ela inclui pessoas de diferentes partidos?
A criação dessa frente nacional de parlamentares e lideranças trans — que o nosso mandato ajudou a construir e a pensar — tem o objetivo de colocar esses mandatos em diálogo a fim de dar mais força e mais visibilidade à nossa luta, e também ter um intercâmbio de políticas públicas que foram exitosas em algum mandato e podem ser replicadas em outro. Agora nós estamos fortalecendo essas candidaturas para que a gente tenha, pela primeira vez na história desse país, parlamentares trans e travestis no Congresso Nacional. E nós temos candidaturas que têm muita chance de estar no Congresso Nacional.
Essa rede que a gente está construindo é para nos fortalecer, mas também para a gente construir um programa em comum entre essas lideranças. Nós entendemos que há partidos diferentes e até espectros políticos diferentes, mas nós temos pontos em comum. Por exemplo, é unânime entre pessoas travestis e transexuais criar políticas de empregabilidade para as pessoas trans, já que 90% de nós estão na prostituição. Pode ter divergência em relação a qual vai ser a ferramenta: eu, que faço parte do campo progressista, entendo que isso é papel do Estado, mas pode ser que alguma pessoa da direita, mais liberal, entenda que é papel do setor privado. Não importa, o que nós queremos é empregabilidade. Então, há um ponto em comum que nós podemos construir.
Nós vivemos em um país em que há um desmonte do SUS e da política voltada para a saúde e que não contempla muitas das especificidades de pessoas transexuais — por exemplo no que se refere à redesignação de gênero, hormonização, acesso a hormônios. Então, isso a gente pode construir coletivamente e há um consenso, é pacificado. A ideia é a gente pegar pontos pacificados entre nós, dar visibilidade, e também assumir um compromisso de que, caso eleitos, vamos colocar isso em prática.
Uma das questões que une essas diferentes candidaturas é a segurança. Uma pesquisa da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) de 2020 mostrou que 80% das pessoas trans eleitas não se sentiam seguras para exercer seus mandatos. Ao mesmo tempo, nós já estamos vendo casos terríveis de violência política na eleição deste ano. Você sente isso também? Como garantir a segurança das pessoas trans antes, durante e depois das eleições?
Essa é uma das nossas maiores preocupações e que difere muito a nossa candidatura, de pessoas travestis e transexuais, de outras candidaturas. Nós temos como consenso o fato de que vamos enfrentar a eleição mais violenta da história do país. Isso significa que vamos ter muita violência política, que vai desde o ponto de vista simbólico e moral até o medo da violência física. Não sei por quantas violências políticas eu vou passar, nem se vou sair viva desse processo. Isso é uma preocupação minha e de outros parlamentares trans também.
Em 2018, quando me candidatei para o Senado e me tornei a primeira transexual da América Latina a disputar o cargo de senadora da República, eu sofri muita violência política. Eu lembro que, quando eu lancei minha candidatura, os dois filhos do Bolsonaro compartilharam minha candidatura como forma de deboche e meu Instagram recebeu milhares de mensagens de ódio. Foi tanta mensagem de ódio que o Instagram bloqueou a minha conta. E, não satisfeitos com isso, esses grupos começaram a mandar e-mails, telefonar e chegaram a mobilizar uma manifestação na porta da escola onde eu trabalhava, exigindo minha demissão. Eu só não fui demitida porque os alunos me defenderam de forma mais incisiva.
Em 2020, após eu ser eleita e me tornar a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte, recebi três ameaças de morte do maior grupo de ódio da internet brasileira dizendo que iriam me matar e transformar a escola em que eu dava aula num mar de sangue. Esse mesmo e-mail foi encaminhado para os donos da escola, para a direção da escola e para alguns professores. Eu acabei sendo demitida após essas ameaças de morte. Isso é uma violência política.
Nossas campanhas já são subfinanciadas comparado às outras candidaturas, e nós ainda temos que separar uma fatia desse valor, que já é pequeno, para poder alugar carro blindado, para poder alugar segurança. Isso diminui muito a chance de sermos eleitas, porque a gente vai tirar uma fatia que poderia estar investindo na campanha eleitoral para estrutura de segurança. Se eu colocar um carro blindado e dois seguranças, vou ter que separar do orçamento da campanha quase R$ 40 ou R$ 50 mil.
Eu acho que a Polícia Federal deveria garantir segurança para nós, pessoas transexuais, como garante aos candidatos à Presidência. O Ciro Gomes, o Lula e o Bolsonaro vão ter a Polícia Federal garantido segurança deles, por que não a nossa? A democracia pressupõe uma diversidade também de corpos no Parlamento e na disputa eleitoral. Então, não tem como ter equidade na disputa se não tiver preocupação do Estado e dos partidos em relação à segurança.
Nos últimos dias, você recebeu mais ameaças graves. Vocês já sabem quem está por trás disso? É um grupo neonazista organizado? Que medidas estão tomando para se proteger?
Após a denúncia, a investigação está sob responsabilidade da Polícia Civil de Minas Gerais. Vamos entrar em contato novamente com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para sermos instruídas sobre medidas de segurança. Temos a suspeita de que possa ser uma ação de grupos de ódio que se organizam pela internet, mas temos que aguardar a investigação para afirmar. O prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman [PSD], ofereceu o apoio da Guarda Municipal para minha segurança, e estamos ainda discutindo alternativas para reforçar a segurança já de imediato.
Como a possível aliança do PDT com o PSDB para o governo de Minas influenciou sua decisão de não concorrer ao Senado? Será candidata a deputada por Minas mesmo que a aliança seja feita?
Contamos agora com o atual vereador Bruno Miranda para concorrer ao Senado, que é um quadro muito capacitado e capaz de representar Minas Gerais no Senado. Realmente, não gostaria de me associar à chapa majoritária junto ao PSDB por considerar que o grupo político do Aécio Neves é parte significativa do problema fiscal e da situação da educação e política em Minas Gerais. Por não se tratar de uma disputa majoritária, a candidatura para a Câmara Federal está mantida.
Após disputar uma vaga no Senado pelo Psol em 2018, você saiu do partido afirmando que o partido não deu o apoio à sua candidatura ao Senado e acusando-o de transfobia. O que aconteceu ali? Você acha que existe uma resistência em defender pautas LGBT+ mesmo dentro dos partidos e movimentos de esquerda?
A transfobia no Brasil é estrutural e institucional. O partido é uma instituição, então lógico que vai ter transfobia lá também, como há racismo, misoginia, machismo. Todos os partidos têm esses preconceitos porque os partidos são espelhos da sociedade. Eu reconheço a importância do Psol no processo eleitoral, no processo democrático, no campo de esquerda, e, para o partido melhorar, entendi que a minha saída tinha uma função pedagógica de mostrar o problema que havia ali e que devia ser resolvido ou corrigido.
Em 2018, fazendo um levantamento entre as candidaturas, as que mais tinham estrutura eram as de homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais da zona sul do Rio de Janeiro. E é um partido revolucionário? O discurso é revolucionário, o estatuto é revolucionário, mas, se você não consegue revolucionar internamente o partido, vai conseguir revolucionar um país? Logo depois o Psol mudou para melhor, fico muito feliz. Hoje, no Psol, quem tem preferência e maior estrutura nas campanhas são pessoas que representam grupos de vulnerabilidades sociais, como mulheres, negras, indígenas, travestis, transexuais, pessoas LGBT.
Faço parte, hoje, de um partido que tem duas travestis na Executiva Nacional, então nós estamos em um espaço decisório. Não é mil maravilhas o partido que eu faço parte, mas a gente tem que lutar internamente para que ocorram mudanças na sociedade.
Uma das nossas Aliadas perguntou: em algum momento a experiência como vereadora em Belo Horizonte fez você duvidar da política institucional/partidária como possibilidade de luta contra o preconceito, o racismo e a LGBTfobia?
Eu acho que nós temos que atuar politicamente com um pé no Parlamento e um pé na sociedade. A política partidária institucional, sozinha, é incapaz de mudar qualquer tipo de preconceito, porque o Parlamento é movido pelas mobilizações que existem na sociedade. As mobilizações acontecem nas ruas, nos movimentos sociais, nas cobranças da sociedade, e, a partir disso, o Parlamento consegue ser a ferramenta de mudança. Eu não tenho utopia nenhuma de que o Parlamento vai ser o protagonista de combate aos preconceitos e de combate à injustiça social. O que eu tenho convicção é de que o Parlamento é a ferramenta que vai ser conduzida pelo povo para a transformação social e combate aos preconceitos.
Você é professora de literatura, trabalhou por 13 anos em um grupo escolar privado em Belo Horizonte. Como foi passar por sua transição de gênero enquanto trabalhava lá?
Eu já tinha iniciado a minha transição comigo mesma, com a família e com a sociedade, mas na escola ainda não porque eu sabia que possivelmente seria demitida. Isso porque nós fazemos parte de um país em que 90% [das pessoas trans] estão na prostituição, então a prostituição para nós, travestis e transexuais, é quase compulsória, obrigatória.
Quando a escola viu as minhas postagens sobre o assunto, ela teve uma reunião comigo e disse: “A gente viu que você tá fazendo essa transição. Então, a partir de amanhã você pode vir como você bem entender”. Eu falei: “Olha, vai ter muita reclamação de pais, né? Estamos em um contexto muito conservador”. E a escola: “A gente compra essa briga com os pais”. A escola deu todo o apoio inicialmente para a transição — nos limites dela, é uma escola particular. Mas isso também foi resultado dos alunos que cobravam essa postura da escola. E foi muito bom.
O colégio em que eu dava aula tinha um processo de avaliação de professores pelos alunos. Eu sempre fui muito bem avaliada e, após a transição, minha avaliação melhorou, o que mostra que didaticamente a minha transição não comprometeu em nada, pelo contrário, melhorou. Então os pais que reclamavam, o colégio respondia com os números de aprovação.
Em 2021, depois de ter recebido ameaças de morte direcionadas a você e aos alunos, você acabou sendo demitida dessa escola. Você já disse que a escola é um espaço de violência, ódio e intolerância às pessoas trans. O que aconteceu com você nesse segundo momento reforçou essa percepção?
Acho que são duas questões. É preciso lembrar que moramos num país em que a maioria das pessoas travestis e transexuais não concluiu o ensino médio, e em Belo Horizonte esse índice chega a 91%, segundo a UFMG. Isso mostra que a escola muitas vezes é um espaço de intolerância contra a diversidade e, pior, a escola muitas vezes não contempla a diversidade. Então a questão do bullying, das violências simbólicas, até a violência física, acaba gerando a expulsão de pessoas travestis e transexuais dos espaços escolares.
Isso diz muito sobre o projeto educacional no país, que tem que ser alterado não só por nós, pessoas travestis e transexuais. Tem que ter uma grande reforma educacional porque cerca de 50% da população brasileira tem algum grau de analfabetismo. Quer dizer: a educação no Brasil é um problema sério e estrutural que tem que ser encarado, e, dentro desse problema sério, há ainda a questão da diversidade, de pessoas travestis e transexuais que não são contempladas. E a escola tem que ser o espaço da pluralidade.
Para além disso, o que aconteceu comigo, as violências que sofri, o que há por trás disso é que esses grupos odiosos querem nos retirar dos espaços escolares. Porque eles sabem que eu, enquanto uma pessoa trans — e eu reconheço isso —, que meu papel como professora em sala de aula é muito mais importante do que no espaço legislativo. No espaço legislativo, eu crio e fiscalizo novas leis, mas em sala de aula eu crio novas consciências. E o que muda o mundo não são novas leis, mas novas formas de pensar o mundo. Nós temos uma lei que criminaliza o racismo no Brasil. Quantas pessoas já foram presas por racismo no Brasil? LGBTfobia é um crime inafiançável, mas nós temos um presidente abertamente LGBTfóbico.
Esses grupos odiosos têm consciência [de que o mais importante são novas consciências] e por isso fizeram essa violência política contra mim, porque não queriam que eu exercesse meu papel de professora ajudando na construção de uma educação transformadora no país. Esses grupos odiosos são sustentados por setores de uma elite de origem escravocrata que querem a educação como uma ferramenta para privilegiar os privilegiados e excluir os excluídos.
E essa dinâmica inclusive fez parte da política educacional do presidente Bolsonaro, quando ele defende, por exemplo, o sucateamento das instituições públicas e a privatização das universidades. Tudo isso é você elitizar mais ainda o acesso à informação, à educação, que já são historicamente elitizadas. Então, isso é um problema sério, atávico, histórico no país, que nós temos que enfrentar, e que tem como vítima esses grupos em maior vulnerabilidade, do qual também fazem parte nós, pessoas travestis e transexuais.
Imagino que essa situação toda tenha te afetado muito. Uma Aliada perguntou como você recarrega as forças para seguir na luta cotidiana quando o cansaço, o desânimo e até o medo a dominam. A literatura te dá forças para isso?
Literatura e política têm inúmeros denominadores comuns. Acho que um deles é trabalhar com a dimensão da palavra, com a dimensão do discurso, e trabalhar com a dimensão do sensível, ou seja, daquilo que nos toca. Se eu lhe explicar que a Fonte do Marcel Duchamp — que é aquele urinol que a gente aprende na escola, uma arte dadaísta — é a coisa mais genial que foi construída nos últimos 200 anos, se aquilo não lhe toca, não faz sentido algum explicar.
Isso vale para a política também. Infelizmente, o Bolsonaro tocou o Brasil na dimensão do sensível, tocou as pessoas na dimensão do ódio e venceu as eleições. O ódio é também uma ferramenta que se pode usar na política. O Bakunin, que é um grande teórico do anarquismo, defendia no livro Deus e o Estado que o sentimento de ódio tem que ser o combustível da revolução e que os setores revolucionários deveriam aprender a trabalhar com a dimensão do ódio como ferramenta de transformação.
Em 2018, nós tentamos com o Vira Voto, com a família, com os amigos, nós explicamos racionalmente que o Bolsonaro era a pior escolha para o Brasil, mas não importa se aquilo não tocar. A política extrapola o racional e vai para a dimensão do sensível. Por isso, é importante a gente trabalhar com a dimensão da estética, que, na sua etimologia, vem de estesia, significa “sensação”. E eu penso que o campo progressista perdeu as eleições [de 2018] não pelas propostas, mas nós perdemos no ponto de vista estético, de não tocar as pessoas. Lógico que nós deixamos de formar a base, isso é fato, mas nós também perdemos na dimensão do estético, de tocar, de sensibilizar, de provocar sensações, sentimentos, paixões.
Não tô dizendo que a política é só paixão. Mas ela também tem que ter paixão, a política também tem que ter poesia. A poesia é aquilo que toca, que emociona, aquilo que sensibiliza, é aquilo que faz você pedir voto. Você pode escolher uma pessoa e votar na pessoa, mas quando você acredita muito naquela pessoa, quando você está apaixonada politicamente por aquela proposta, você vai para as ruas, você pede voto no grupo da família, no grupo do WhatsApp. E isso faltou. Faltou a chama nas eleições de 2018.
Política e poesia têm muita coisa em comum, e a principal, para te responder, é que ambas trabalham com a dimensão dos sonhos. O político tem que ajudar na construção dos sonhos e mostrar ferramentas para a realização desses sonhos. Eu valorizo muito a figura de político — não desses políticos corruptos, óbvio —, mas do político enquanto esse agente que faz as pessoas acreditarem que é possível mudar o mundo. E isso você não faz com números. Eu vejo alguns candidatos à Presidência com discurso economiquês. Acho ridículo, pedante. A economia não tem que ter um fim em si mesma, ela tem que emocionar as pessoas. Não adianta nada eu falar da alíquota x multiplicado por delta vezes 4, isso não cria sonhos. Isso tem que estar no programa. Mas o discurso tem que tocar. O Bolsonaro sabe fazer isso, infelizmente, da pior forma.
Toda estética é política e toda política precisa da estética. Um exemplo concreto foi o movimento Black Power, o movimento negro dos anos 70, quando saíam na rua com a camisa escrito “todo negro é lindo”. Isso é estético, mas é político, entendeu? Então, a revolução é política, mas ela precisa de uma estética. Isso é fundamental.
E isso é a literatura. Qual a diferença de um poema para a linguagem do dia a dia? É que o poema pega a linguagem comum e dá uma estética a ela, dá uma roupagem lírica a ela que toca e emociona as pessoas. Eu posso dizer “eu te amo” de várias formas. Tem o “eu te amo” do dia a dia, ok, mas você pode dizer “eu te amo” de outras formas que tocam, emocionam e fazem a pessoa chorar. E é esse o papel da política, é trazer mais poesia.
Em uma entrevista, você disse que projetos de educação para a população trans nunca existiram em nível federal, nem em governos do PT. O que um projeto educacional para a população trans precisa ter para dar certo?
Eu entendo as especificidades para a comunidade trans, mas, enquanto a educação não tiver o protagonismo que deveria ter, também não vai mudar nada para as pessoas trans. A gente tem que pensar numa grande reforma no ensino brasileiro, numa reforma também no acesso às universidades. A gente tem que voltar a discutir o fim dos vestibulares, questões estruturantes. Isso mudaria consideravelmente a realidade de pessoas trans. É necessário maior investimento público na universidade pública. Tirar a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos o investimento em educação. Não tem como a gente fazer uma reforma educacional se não mudar a política econômica que vem dos últimos 20 anos no Brasil. É lógico que os governos do PT, com Lula e Dilma, conseguiram alguns avanços que são inegáveis, mas o elemento fundamental, que é transformar a política econômica do país e enfrentar o neoliberalismo, isso não foi feito e nem é proposto agora.
Mesmo com o fracasso dos projetos de lei do Escola sem Partido, um movimento político ligado à extrema direita, que defende uma agenda conservadora na educação, nós vimos que eles influenciaram uma mudança de comportamentos dentro das escolas. Muitos professores que abordam questões de gênero, racismo, LGBTfobia são acusados de doutrinação. Nós revelamos aqui na Pública vários casos de ataques a professores e de patrulhamento em sala de aula. Você acha que esse comportamento veio para ficar ou ele pode ser revertido?
Pode e será revertido com a vitória de uma figura política progressista para a Presidência da República. O projeto Escola sem Partido ganha força com o avanço dessa ultradireita fascista no Brasil. E a gente tendo uma vitória nas urnas, uma vitória política, eu acredito que não sepulta por agora, mas coloca as primeiras pás de areia nesse pensamento. Vamos lembrar: na época do governo Lula, a gente conseguia fazer um debate mais político em sala de aula no que se refere a questões de emancipação do povo.
E o projeto Escola sem Partido queria justamente criminalizar a profissão de professor, tirar o senso crítico da sala de aula e transformar a sala de aula em mais um espaço de alienação e de manifestação de uma ideologia dominante antipovo. E aí, quando o Bolsonaro é eleito, ele chancela esse movimento. Inclusive ele incentiva, logo na primeira semana após assumir o mandato, as pessoas a gravarem os professores, né? Então, havia um apoio institucional. Isso é um crime. Então, acredito que a vitória de um presidente progressista vai mudar bem isso aí. Não tenho a menor dúvida.
Outra Aliada comentou que mudar crenças culturais é muito difícil, e políticas públicas são um passo necessário para isso. Ela perguntou que ações devemos tomar para diminuir os preconceitos contra pessoas trans?
Pergunta difícil. Eu acho que a gente pode trabalhar na esfera estrutural e na esfera pontual. Seriam dois elementos: uma mudança econômica e, ao mesmo tempo, uma mudança educacional. As duas são importantes.
Na esfera estrutural, nós temos que entender que o sistema capitalista tem duas facetas que andam juntas: opressão e exploração. A exploração é de uma classe sobre outra. A opressão é você se valer das diferenças que há para explorar mais ainda. Então, nós temos a exploração da classe dominante sobre a classe trabalhadora, e tem uma opressão em relação às mulheres, em relação aos LGBTs, em relação aos indígenas e negros, para que a exploração seja maior ainda e a riqueza maior ainda de alguns grupos que dominam o sistema capitalista. Se a gente quer garantir de fato o fim dos preconceitos, a gente tem que lutar pelo fim desse sistema que opera na dinâmica de que tem que ter opressão para que haja mais exploração. Temos que lutar pelo fim do sistema capitalista, que não garante por si só o fim do preconceito, porque há aí a dimensão cultural.
E aí vem um segundo elemento que é importante, que nós temos dentro do sistema, que é a gente entender a escola como elemento fundamental para a transformação dos preconceitos. Nesse modelo educacional que está em curso no Brasil, a escola acaba sendo mais uma ferramenta para endossar essas desigualdades e a escola deveria ser um espaço para questionar essas desigualdades. Tem que ter mais debate sobre questões LGBT em sala de aula, mais debate sobre racismo, mais debate sobre machismo. A gente já vê diferenças. A geração de hoje, essa juventude que está vindo agora, sabe muito bem sobre machismo, LGBTfobia, sobre racismo, coisa que na nossa geração não tinha. Na minha geração, era tão apagado o debate que nem era imaginado ter uma pessoa lésbica em sala de aula no colégio. Hoje você já vê casais homossexuais nas escolas. Nós temos que aprofundar mais esse debate.
Falta muito respeito em relação a pessoas LGBTQIA+ e você com certeza sente isso na pele. Uma Aliada perguntou se seria efetivo fazer treinamentos sobre direitos humanos com profissionais da saúde, policiais, guardas municipais e quem presta serviços públicos, para que eles entendam as questões específicas e lidem melhor com as diferentes interseccionalidades como raça, gênero, classe, idade, religiosidade etc.
Sem dúvida. É importante demais essa formação do servidor público, do médico, das pessoas que trabalham nos equipamentos sociais no que se refere ao combate aos preconceitos que existem. Isso ajuda, mas é enxugar gelo.
A gente quer que pessoas LGBTs, negros, indígenas, mulheres tenham melhor atendimento e respeito na saúde, mas a gente tem um SUS subfinanciado. Países que têm um sistema único de saúde como o Brasil investem cerca de 8% do PIB em saúde, e o Brasil, se eu não me engano, investe cerca de 4% do orçamento em saúde. Então, se você tem um maior investimento nos equipamentos de saúde como o SUS, em educação, aí você consegue ter formas mais profundas de transformar e promover o respeito.
Outra coisa que sempre perguntam nas Entrevistas dos Aliados é: como pessoas cis e/ou heterossexuais podem ajudar na luta das pessoas LGBTQIA+?
Sendo aliado. Aquela frase que criaram após a vitória do Bolsonaro em 2018: ninguém solta a mão de ninguém. Foi até muito criticada essa frase, mas eu gosto dela. É a gente entender que nós temos um inimigo comum, temos as nossas especificidades — eu enquanto uma mulher trans, você enquanto uma mulher cis, outra pessoa enquanto negra, enquanto indígena — mas nós sabemos de onde vem essa violência. Então, interseccionalizar a luta e saber que juntos nós somos mais fortes. O inimigo é um só, que é esse modelo econômico que tá aí no Brasil e que nos coloca nessa situação de neocolônia, aviltados socialmente. Então, nós temos que lutar por uma mudança profunda no modelo econômico brasileiro. A melhor forma de responder é: comprar nossa briga mesmo, tem que andar junto. Se mexeu com uma, mexeu com todas.
Além disso, a gente tem no Brasil, hoje, a chance de eleger, pela primeira vez na história, uma ou mais pessoas travestis e trans para o Congresso Nacional. Isso é muito importante porque a democracia pressupõe uma diversidade não só de ideias, mas também de corpos e identidades. A gente tem que entender a importância do voto. Essa é a eleição mais importante da nossa geração, e a gente quer, no dia 1º de janeiro, que o Brasil volte a ter esperança e a sonhar grande.
Se o Bolsonaro tocou as pessoas pelo ódio, que nós toquemos as pessoas pela esperança. Quando uma travesti é eleita, quando ela avança, a sociedade inteira avança, porque nós fazemos parte um grupo que a expectativa de vida não supera 35 anos, que 90% tá na prostituição.
Tenho certeza que, no dia 1º de janeiro, nós vamos ter uma grande festa em Brasília e nessa festa tem que convidar nós, pessoas travestis e transexuais, para estarmos lá. Como o Cazuza falou: “Não me convidaram para essa festa pobre”, né? As eleições de 2018 não nos convidaram para essa festa podre que é o Congresso Nacional hoje. Que em 2022 nos convidem, através das urnas, a ocupar aquele espaço.
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Imagem: Duda Salabert é professora de literatura, ambientalista e a primeira vereadora trans de Belo Horizonte – Assessoria Duda Salabert