Intelectualidade negra: relembrando Milton Santos. Por Gislene Aparecida dos Santos

No Jornal da USP

No ano de 1989, ocorreu o 1º Encontro de Docentes, Pesquisadores e Pós-Graduandos Negros das Universidades Paulistas, realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Unesp. Esse evento contou com a palestra O intelectual negro no Brasil, proferida pelo professor Milton Santos.

Nas primeiras décadas do século 21, temos a ilusão de que as portas, finalmente, estão se abrindo para que pessoas negras sejam “aceitas” no mundo acadêmico. Na era das redes e mídias sociais na qual o supostamente coletivo impera tolhendo a independência do pensamento pelo medo do isolamento e dos cancelamentos públicos, recuperar as sábias palavras do professor e intelectual Milton Santos é como reencontrar a bússola perdida no lamaçal de ideias desconexas. É a redefinição de um rumo dentro das universidades, como pessoas que querem pensar o Brasil e contribuir para que versões fáceis e banais não proliferem em busca de “15 minutos de fama”, sem compromisso com a história e com a verdade.

Abro espaço para retomar as sábias palavras de Milton Santos, trazendo trechos da palestra que pode ser lida, na íntegra, no volume 1 da revista Ethnos Brasil.

Com a palavra, Milton Santos.

“Esta reunião tem um grande significado e uma novidade, é o primeiro encontro de professores, pesquisadores, pós-graduandos negros, isto é, intelectuais negros assumindo-se nessa condição, e, por isso, queria vivamente felicitar os que a organizaram.

(…) E os intelectuais têm uma especificidade, que é não temer ficar só. Quem se subordina ao apreço de seus vizinhos e contemporâneos pelo temor de ficar só está fadado a não ser um verdadeiro intelectual. A firmeza de sua posição é avançar com sua ideia pensando que ela é a verdade, porque o intelectual não tem a verdade e sabe que não a alcança, mas a busca permanentemente.

Insistimos nessa questão porque as nossas universidades estão ameaçadas de ficar apenas com os professores, que não são obrigatoriamente intelectuais. Cada vez mais se afunda o fosso entre professores e intelectuais porque, da forma como a universidade se organiza criam-se obstáculos para a formação desses intelectuais.

Para os intelectuais, a sua prática é a prática teórica. As outras serão ocasionais, resultado da prática teórica e não o cotidiano fundamental, para evitar o perigo da subordinação às crises, ainda que estas apareçam com o nome de grupos ou de partidos, ou que se arroguem o nome de sociedade, como se a sociedade fosse uma coisa de definição comum e não de definição múltipla.

O intelectual é aquele que se recusa a toda forma de serialização e que admite estar junto para poder estar só, isto é, livre para pensar, mantendo a independência que é prova da individualidade forte, sem a qual não há pensamento frutífero, há apenas pensamento associado.

(…) Está faltando o papel do verdadeiro intelectual. Sabemos que nem o Brasil nem a universidade estão preparados para esse tipo de intelectual, mas devemos criá-lo independente, malgrado essa falta de condições porque ser intelectual é ser contra a corrente. Ser a favor da corrente é fácil, ser contra a corrente é que não é fácil. Um intelectual que deseja o fácil deve ausentar-se dos lugares onde se pratica a inteligência e se produz a cultura.

(…) Creio que a questão do negro e dos estudos negros na universidade deve ser vista nesse contexto. Desprovidos das alavancas de que os setores hegemônicos dispõem para controlar a pesquisa, devemos construir nossas teses com total liberdade, sem subordinação a qualquer que seja o mandamento externo, para evitar a ameaça de praticar o erro, em vez da verdade.

Por conseguinte, não há uma questão negra fora da formação social brasileira. Estudando o Brasil nas suas relações externas, nas relações internas, ontem e hoje, vamos localizar a questão do negro no Brasil. Não há uma questão do negro isolada da questão nacional. Não há uma análise do negro que se possa fazer de forma válida e com possível eficácia política que não aquela que veja o negro dentro da sociedade brasileira.

(…) Quais são os desafios que nos espreitam nesse fim de século? Pensamos que o maior desafio é a clareza de objetivos. Esta não se dá sem o conhecimento da história do mundo como ele é hoje, na modernidade contemporânea, sem o conhecimento do País como ele é hoje, na sua totalidade e na sua singularidade.”

Gislene Aparecida dos Santos é professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

Milton Santos. Foto UFSB

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