Força Nacional exonerou agente que pediu mais segurança para servidores da Funai no Javari

Agente havia sugerido escolta a servidores da Funai um mês após mortes de Bruno e Dom no Vale do Javari

Murilo Pajolla, Brasil de Fato

Quando chegou ao Amazonas, Marcelo (nome fictício) queria lutar no lado certo de uma guerra cuja batalha mais recente acontecera há cerca de um mês: as mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips, em Atalaia do Norte (AM). Como agente da Força Nacional, ele recebeu ordens de impedir que servidores da Funai se tornassem novas vítimas da escalada de violência na região. O principal obstáculo ao cumprimento da missão, porém, não seria a quadrilha especializada em saquear recursos naturais dos indígenas, mas sim a própria cúpula da Força Nacional, que demitiu Marcelo após o agente ter solicitado melhores condições de trabalho.

Em julho deste ano, Marcelo e os outros sete agentes da Força Nacional em Atalaia do Norte (AM) estavam em alerta total. As câmeras de segurança da Funai haviam registrado um homem de capuz conduzindo uma motocicleta sem placa. O suspeito seguia um funcionário do órgão indigenista em seu caminho para o trabalho. A cidade passava por uma onda de assaltos. Para piorar, poucos meses atrás um tiroteio envolvendo narcotraficantes do outro lado do rio Javari, em território peruano, havia levado terror aos moradores.

Na avaliação dos agentes, o cenário exigia que os servidores da Funai fossem colocados imediatamente sob escolta. Os alertas já haviam sido repassados a Brasília, mas até então nenhum incremento no efetivo havia sido determinado. “Não conseguimos ter diálogo com a cúpula em momento nenhum”, conta Marcelo.

Major minimizou ameaça a servidores

Até que a oportunidade de fazer a reivindicação finalmente apareceu. Um major da cúpula da Força Nacional foi à sede da Funai local, em um encontro com servidores. Ao sair da reunião, o militar foi interpelado pelos agentes, que faziam diariamente a guarda do prédio do órgão indigenista durante o expediente.

O major aceitou ouvi-los, mas logo de cara limitou o tempo para a conversa: quatro minutos. As primeiras palavras dele foram em jargão militar: “Senhores, não piruarás”. Nos quartéis, “piruar” significa agir com um voluntarismo excessivo não requisitado pelos superiores. A palavra tem uma conotação negativa e costuma ser usada para desqualificar quem tenta ajudar demais, mas acaba atrapalhando. Informalmente, militares dizem que “Não piruarás” é o “11º mandamento”. “Nós ouvimos e esperamos ele falar”, conta Marcelo.

O major da Força Nacional prosseguiu. Minimizando os alertas, avisou aos agentes já ter visto o vídeo do motociclista encapuzado, mas disse não não ver motivo para escoltas. O oficial acrescentou que incluiria as informações em um relatório, antes de sair com pressa em direção à viatura, para retornar à cidade de Tabatinga (AM).

“Antes disso ainda consegui perguntar: ‘senhor, teria possibilidade de conseguir para nós aqui armamentos de melhores condições de alcance?’. Ele respondeu que já estaria providenciando isso”, lembra Marcelo. Mas a promessa nunca foi cumprida. Os agentes continuam usando armas de calibre 5.56, que não foram concebidos para letalidade a grandes distâncias, inadequadas para áreas abertas, como é o caso da Terra Indígena (TI) Vale do Javari.

Demissão e redução do efetivo

Após o episódio, todos os homens da Força Nacional receberam ordens para deixar o Vale do Javari. A medida causou estranhamento, afinal deixaria ainda mais expostos os servidores da Funai. A equipe foi completamente substituída por um grupo de quatro homens, metade do efetivo anterior. E um mês depois seria reduzida para dois agentes.

Dois dias depois da conversa com o major, Marcelo foi exonerado da Força Nacional. O motivo da demissão nunca foi esclarecido. “A explicação foi que era interesse da administração pública”, diz o ex-integrante da Força.

Marcelo gostava do seu trabalho na Força Nacional, mas não se arrepende de ter reivindicado melhores condições de trabalho, mesmo que isso tenha provocado sua exoneração. Ele acredita não ter desrespeitado a cadeia de comando. “Pela hierarquia, a omissão é ilegal”, pontua.

“Eu faria tudo novamente, já que a portaria da Força Nacional solicitava para protegermos as vidas dos servidores. Nunca omitirei informações importantes para os meus superiores e nunca deixarei os que estão sob a nossa proteção e guarda sem as devidas orientações cabíveis de segurança. Independente de bandeiras”, afirmou.

Assédio e perseguição

Marcelo diz que vinha há tempos sofrendo assédio moral de seus superiores. Ele afirma ter encaminhado denúncias ao Ministério Público Federal (MPF), mas sustenta que os assédios nunca cessaram. Mesmo fora da Força Nacional, diz temer represálias. Por isso, preferiu não ser identificado nesta reportagem.

“É triste essa realidade. Infelizmente com meus colegas também vem acontecendo as mesmas coisas. Temos medo da perseguição. Espero que isso venha a parar. Buscamos um país melhor, independente de bandeiras. Estamos aqui para trabalhar para todos sem desigualdades”, relata.

Politização da Força Nacional

Na avaliação de Marcelo, a cúpula do órgão de segurança confundiu a necessidade objetiva de mais segurança no Vale do Javari com questões político-partidárias. Reconhecer a necessidade do emprego de mais recursos materiais e humanos na Terra Indígena poderia implicar ao governo reconhecer a negligência prévia com a região.

Na visão de outros agentes da Força Nacional ouvidos pela reportagem, há uma crescente e perniciosa politização na cúpula do órgão.

O ex-chefe da Força Nacional, coronel Aginaldo Oliveira, hoje é um candidato bolsonarista a deputado federal pelo Ceará. No mesmo partido de Bolsonaro, o PL, ele aparece ao lado do presidente em seu material de campanha. Com o slogan “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, Oliveira tem pedido votos para a reeleição de Bolsonaro.

Com Dilma Rousseff (PT) foi diferente. Em março de 2016, o diretor da Força Nacional, coronel Adilson Moreira, pediu demissão do cargo por se recusar a trabalhar sob o comando da petista, que estava às vésperas de sofrer um impeachment.

Em uma carta publicada à época, o Coronel Moreira deixou claro que se tratava de uma decisão política. “Minha família exigiu minha saída, pois não precisa ser muito inteligente para saber que estamos sendo conduzidos por um grupo sem escrúpulos, incluindo aí a presidente da República”, escreveu.

Marcelo opina: “Infelizmente a Força Nacional mudou e muito de anos para cá. Eram usados todos meios necessários para ajudar os que solicitavam ajuda. Hoje tudo gira em torno de bandeiras, e a população é que sofre com isso. E quem tentar fazer mais é penalizado pelos que acham que a população não merece”.

Falta de estrutura colocou servidores em risco

A Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) não é um órgão militar, nem faz parte das Forças Armadas. Trata-se de um projeto de cooperação entre forças de segurança dos estados, sob a coordenação do Ministério da Justiça. Foi criada em 2004 para reunir os melhores policiais militares e civis, bombeiros e profissionais forenses de todo o país. Quem deseja ser agente da Força Nacional deve se voluntariar e ter o nome aprovado pela secretaria de segurança pública do estado de origem.

O Vale do Javari, onde morreram Bruno Pereira e Dom Phillips, é palco de uma das 34 operações em andamento da Força Nacional. Dez delas são feitas em Terras Indígenas e oito em apoio a servidores da Funai.

Em Atalaia do Norte (AM), a Força Nacional chegou com atraso, um mês após as mortes do indigenista e do jornalista. O Brasil de Fato já reportou que os agentes foram enviados em efetivo menor do que o suficiente, sem armas de calibre adequado e sem barcos para percorrer os rios, onde ocorre a pesca e caça ilegais, garimpo e o narcotráfico.

Essas limitações de impediram que os agentes protegessem como deveriam os servidores da Funai. Mas um cenário diferente foi descrito pelo diretor da Força Nacional, coronel José Américo Gaia.

“A estrutura que existe no Vale do Javari, nos locais em que a Força fica para prestar a segurança dos servidores da Funai, tem uma condição que é possível a Força atuar”, afirmou em entrevista publicada no site do governo federal.

Outro lado

O Brasil de Fato aguarda posicionamento do Ministério da Justiça a respeito da atuação deficitária da Força Nacional no Vale do Javari. No contato mais recente, a reportagem perguntou se a demissão de Marcelo está relacionada ao seu pedido de melhores condições de trabalho. Questionou também se há providências no sentido de conter possíveis casos de assédio e perseguição e sobre a politização da cúpula do órgão. Se houver respostas, elas serão acrescidas a este texto.

Edição: Thalita Pires

Imagem: Bruno Pereira em seu trabalho com indígenas isolados no Vale do Javari

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