Como retomar soberania cultural no Brasil?

Seminário debate a urgência de reconstruir as instituições culturais e repensar a propriedade intelectual no mundo das plataformas. Como assegurar ao país uma voz própria no mundo, indo além do papel de reprodutor e consumidor?

Por Ana Clara Ferrari, em Outras Palavras

O Brasil está condenado a ser prestador de serviços globais via plataformas de streaming ou pode constituir um projeto nacional de desenvolvimento da economia cultural? A resposta a esta pergunta certamente ultrapassa o debate sobre a reconstrução do setor cultural após a provável e almejada derrota do bolsonarismo, mas se torna especialmente urgente neste contexto. Bolsonaro destruiu instituições do setor – o exemplo mais evidente é a extinção do Ministério da Cultura, transformado em uma frágil e aparelhada secretaria – e colocou outras instituições para operar contra a cultura – caso da Fundação Palmares. Também tornou outros órgãos inoperantes sem chegar a extingui-los, como é o notório caso da Ancine. Num governo Lula, que se anuncia cada vez mais próximo e provável, será preciso reconstruir toda essa institucionalidade e recolocá-la a serviço da cultura brasileira. Mas de que maneira e com que objetivo?

Foram questões como essas que animaram as conversas da terceira mesa dos Seminários Cultura e Democracia 2022, que aconteceu no dia 14 de setembro com o título “Arte e Cultura na sociedade digital”. A discussão está no cerne de muitas dimensões do que se considera arte e cultura, atualmente. Afinal, a hoje hegemônica cultura digital é fruto de transformações tecnológicas extremamente aceleradas – em menos de uma geração, passamos das fitas VHS às plataformas de streaming para o acesso a filmes, por exemplo –, que resultaram também em mudanças na produção e na apropriação da riqueza que circula internacionalmente no setor. A própria questão da captura de dados dos usuários da cultura e seu uso para capitalizar empresas, algo que há poucas décadas sequer fazia sentido, hoje deve ser objeto de análise e de busca de soluções. Que implicações isso tem para a produção cultural? E para o consumo de cultura?

Tendo isso no horizonte, os debatedores enfrentaram uma questão incontornável, pois quando se destrói a estrutura de apoio à cultura nem por isso a população brasileira deixou de precisar de e consumir produtos culturais. Do ponto de vista econômico, isso significaria abrir mão de ser um fornecedor de produtos de alto valor agregado – por exemplo, produzindo menos filmes e músicas, tanto para o mercado interno quanto externo, gerando riquezas e empregos qualificados em toda a cadeia da cultura –, e optar por ser apenas um consumidor e prestador de serviço na parte da circulação local de uma cultura vinda de fora. Mas no caso da cultura, a questão econômica não está desvinculada de outras questões tão ou mais importantes. O país também abdica de ter uma voz própria, uma identidade própria, um modo de vida próprio. A capacidade de dialogar com o que vem de fora fica enfraquecida. Mas o que fazer?

Em resposta a esse diagnóstico, os debatedores procuraram discutir além da reconstrução do que havia em termos de institucionalidade e fomento à cultural, pois isso não bastará. Afinal, como pensar novas formas de fomento, que sejam mais democráticas, menos vulneráveis aos ataques de governos que assumam uma postura anticultura e, ao mesmo tempo, que deem conta da realidade e das tendências tecnológicas?

Leia a seguir as principais ideias e discussões do debate, por Ana Clara Ferrari.

Maurício Ayer

Arte e Cultura na sociedade digital

Por Ana Clara Ferrari

Abrindo a discussão, Dani Ribas foi direto ao ponto: “Que direitos as plataformas de streaming têm de coletar não só nossos dados pessoais, mas nossas subjetividades? Essas informações são usadas em trocas transnacionais, para tentar influenciar o estado de espírito das pessoas. O potencial de violações é, portanto, enorme!”

Segundo ela, o debate sobre o funcionamento dos algoritmos têm três dimensões a serem analisadas: econômica, epistemológica e comportamental.

No que tange à dimensão econômica, Dani Ribas alerta que os dados de milhões de pessoas em todo o mundo são utilizados como ativos econômicos das empresas chamadas big techs. Já no que se refere à dimensão epistemológica, a especialista defende que a forma como o ser humano produz conhecimento sobre si mesmo mudou, já que o tratamento e análise de dados possibilita a criação de perfis matematizados de nós mesmos.

“Se esses algoritmos são usados para criar perfis nossos na internet, a questão é: será que esses perfis correspondem à representação que fazemos de nós mesmos? Ou existe algum viés sendo reproduzido que pode nos afetar e influenciar? O que passa é que acabamos assumindo tais perfis como verdade absoluta. Da mesma maneira, a própria produção cultural, como forma de conhecer a experiência humana, está sendo tratada como forma de conhecimento menor, uma vez que ‘os números não mentem’”.

A terceira dimensão – comportamental – mostra que o mercado cultural está aprisionado pelo chamado “mercado da atenção”, onde cada conteúdo ou segundo de atenção é disputado como em final de campeonato. “Só para se ter uma ideia, para levar as pessoas das redes sociais para o streaming, o mercado da música, por exemplo, faz um esforço enorme, para que as pessoas se interessem pela música e vão lá dar um clique no Spotify, onde a música é comercializada. Isso faz com que a maior parte do trabalho dos artistas e suas equipes seja a produção de conteúdo e não a arte. E o conteúdo para as redes sociais é feito em tamanha quantidade e velocidade, que os artistas se veem cada vez mais presos nessa roda e com retornos criativos cada vez menores”, explica Dani Ribas.

No audiovisual não é diferente. O pesquisador Alfredo Manevy mostra que a lógica das plataformas de streaming, aliada ao desmonte de políticas públicas para o setor, relegaram o Brasil a um país consumidor. “O Brasil deixou de lado seu potencial de ser um polo produtor de conteúdo digital para se manter apenas como consumidor. O problema desta inversão é que a riqueza acaba não ficando no Brasil, e essa lógica não fortalece nossos artistas, produtores e produções. Essa questão vem se colocando de forma cada vez mais dramática no país. A pergunta que fica é se seremos capazes de reverter isso”, analisa.

Um fato recente importante foi a extinção do Ministério da Cultura, que praticamente amputou a política audiovisual. E segue daí um aprendizado sobre como são importantes as instituições culturais, para a formulação de políticas, e de como as próprias políticas públicas são importantes. Alfredo cita o caso da Ancine, a Agência Nacional de Cinema, que não foi eliminada como o MinC, mas deixou de formular políticas e apenas existe, sem alma, sem força, sem capacidade de atuar. Instituições e políticas devem andar juntas.

Por outro lado, surge uma força que não havia antes que é a descentralização de políticas públicas de cultura, um federalismo, com iniciativas próprias em cada estado, e, mais uma vez, é preciso a volta de um Ministério da Cultura forte para dar uma dimensão geopolítica que impulsione isso a nível global e ajude a fortalecer as instâncias estaduais e até municipais. Isso é colocar o Brasil de volta no mundo contemporâneo e recuperar o protagonismo que já tivemos em matéria de desenvolvimento da indústria cultural.

“Nós queremos que a cultura entre de vez, como um consenso do campo democrático brasileiro, como uma questão central de desenvolvimento econômico, cultural e social, uma necessidade básica da sociedade brasileira, que não pode ser tratada como vem sendo nesses últimos anos,” concluiu.

A produtora cultural Vânia Lima, da Bahia, traz consigo justamente essa visão regional da cultura. Conselheira da BRAVI, que associa a produção audiovisual independente e membro da CONNE, a Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste, ela se reconhece como fruto dessas políticas culturais que já foram mais fortes e propõe pensar a arte e a cultura nessa sociedade digital.

“Tudo que é produzido atualmente entrelaça arte e o digital, seja na publicidade, na comunicação, na produção independente. E daí surge a necessidade de refletir sobre a propriedade intelectual. A quem pertence as obras produzidas no Brasil quando elas estão direcionadas apenas às plataformas de streaming?,” indaga.

Essa é uma questão que perpassa tudo o que está sendo discutido hoje. Quando se reparte a produção com essas grandes plataformas digitais e não se tem uma devida contrapartida, pior, quando se perde parte dos direitos de propriedade intelectual, perde-se também, além de recursos financeiros, muito do valor simbólico do país.

E é assustador, segue Vânia, como acreditávamos ter políticas culturais fortes como políticas de Estado, não de governo x ou y, mas que foram totalmente desarticuladas de 2018 pra cá. À paralisação promovida pelo governo somou-se a da pandemia e, mesmo assim, só fomos ter liberação de recursos em 2021. Recursos públicos que são muito importantes para a descentralização mencionada por Manevy. Sem esses recursos, empresas que estão fora do eixo Rio-São Paulo têm muita dificuldade de conduzir projetos. E estamos falando de cerca de 9 mil empresas nessa situação.

E aí olhamos para o orçamento do próximo ano e não há mais essa verba prevista, nem mesmo a tributação que geraria receita para esta verba. Deveria ser possível isso? Que um governo, com uma canetada, desmobilize dessa forma um setor inteiro, uma indústria inteira? A quem interessa isso?

Isso é mais um capítulo dessa guerra ideológica promovida pelo governo, que se coloca à frente do Estado. E aí precisamos convocar o Congresso Brasileiro para regular essas questões e representar os interesses do povo brasileiro. O Estado precisa ser um alicerce importante às políticas públicas, para o fortalecimento das instituições e das regulações. Hoje, com os streamings sem nenhuma regulação e nenhum incentivo para pensar o Brasil como praticamente um continente, composto por diversas regiões, os recursos privados acabam sendo aplicados totalmente no Rio e em São Paulo e o restante dos estados têm parcos recursos para dar conta de toda a produção do país. Como pode dois estados serem a “produção nacional” e os outros 25 serem apenas “produção regional”? Que olhar é esse?

A professora Vera Zaverucha é especialista em cinema e já foi diretora da Ancine. Foi ela uma das responsáveis pela criação do Observatório do Cinema e do Audiovisual e, em sua contribuição, já traz uma afirmativa forte: “A ideia é nossa, mas o negócio é deles.”

É um resumo do que vem acontecendo frente ao streaming. Acabamos nos adaptando ao que é imposto pelas grandes plataformas e vamos perdendo nossa originalidade, aquilo que é verdadeiramente nosso. E voltamos a falar em maior regulação, mais transparência.

O algoritmo também, na área do audiovisual tanto quanto na da música, tem influência. O que as plataformas estão entregando para aquele avatar virtual construído e comercializado à nossa revelia? De que forma está influenciando a nossa cabeça a ver aquilo que não veríamos se não fosse o algoritmo?

Por isso é vital preservar a fortalecer as instituições que pensam política cultural. É inacreditável um governo abrir mão de receita como faz hoje, por exemplo, com a Condecine e o Fundo Setorial do Audiovisual – tendo em vista a hegemonia das produções estrangeiras em nosso mercado. Mas o que se vê é um desmonte do que se tinha e a falta de novas políticas. Não há regulação do vídeo on demand, nem obrigação de investimento dessas plataformas em audiovisual brasileiro, nem tributação para se investir em novas produções, nem cotas para o nosso conteúdo. Fica tudo à mercê do algoritmo.

Outra prioridade a ser levada em consideração é atender a diversidade, que é um grande fator de desenvolvimento e cidadania no país. Uma política inclusiva de audiovisual é determinante para que o Brasil se conheça e o mundo nos conheça, como uma nação rica culturalmente e, por isso mesmo, plural e com potencial de investimentos em diversas frentes.

A cultura é a política de defesa de uma ideia de país, complementa o produtor, diretor e editor Leonardo Edde, da Urca Filmes. É a produção cultural dos Estados Unidos que leva os produtos americanos a todo o mundo, embalados no “American way of life”. E, no mundo digital (e digitalizado), a propriedade intelectual é o que se deve preservar. E dá como exemplo a compra da MGM pela Amazon, por 8,5 bilhões de dólares. Se não fosse a propriedade que a MGM tinha sobre todos aqueles filmes e séries e desenhos clássicos, talvez a MGM não valesse nem 50 milhões, mesmo com todos os prédios e estúdios e bens materiais. Foram os direitos sobre aquela produção cultural que impulsionou o negócio. A Amazon, é bom lembrar, é uma das grandes operadoras mundiais de streaming da atualidade.

Não é à toa que a indústria cultural é uma das poucas a contar com reserva de mercado global na Organização Mundial do Comércio. Novamente, cultura ligada a comércio ligada a proteção de interesses nacionais. A importância da cultura não está somente em sua preservação, portanto, mas em seu fomento e desenvolvimento.

Reconstrução

Passada essa época de desmontes, então, o que pode ser pensado em nível de reconstrução? Primeiro, um Ministério forte, com recursos, com orçamento. Um conselho com representação da produção nacional. E uma agência reguladora independente e desburocratizada, que não pare de uma hora pra outra por decisão de um governo. É preciso criar de novo um ambiente favorável para que se desenvolva a produção independente no Brasil. E garantir essa distribuição do conteúdo em todas as telas, em todos os caminhos e formas de distribuição.

E voltamos à propriedade intelectual porque é ela o ativo das produtoras. Se ela investe em um projeto e depois vende isso como um mero serviço, onde se perde toda a propriedade, vira uma commodity. O valor agregado vai todo pra fora. E, por um lado, tudo bem que grandes empresas internacionais venham pra cá e utilizem nossos serviços e que isso gere milhares de empregos, ótimo. Mas não pode ser só isso. É preciso equilibrar e ter também um segmento de propriedade intelectual brasileira que seja tão forte que gere o dobro de serviços, o dobro de empregos, e esse mercado cresça imensamente. Que a gente possa gerir e rentabilizar nossa própria propriedade intelectual.

Além do que a diversidade advém da manutenção da propriedade intelectual. Se eu mantenho essa propriedade, eu conto a história que eu quero contar. Se eu sirvo a uma empresa, eu não tenho mais esse controle. A história contada é a que a empresa quiser contar. E, por mais que ela queira fazer um bom produto, não vai ser a mesma história contada por uma pessoa daqui. E diversidade é um negócio, está dentro do negócio. Leva a produção muito mais longe, vende muito mais.

Ou seja, propriedade intelectual é Poder.

Os Seminários Cultura e Democracia

Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia realizaram seu segundo ciclo de 12 a 16 de setembro de 2022, de forma online, gratuita e interativa.

Os Seminários Cultura e Democracia reuniram diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debate passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Foram transmitidos pelo youtube.com/seminariosculturaedemocracia, com retransmissão nos canais de youtube das entidades organizadoras (FES-Brasil, FPA e ICD) e parceiros (Mídia Ninja, TAL, Outras Palavras, TVT, Desinformante, e retransmitidos pela ABTU, TV Fórum, Nova Frente Negra Brasileira, Unafro).

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

vinte − 9 =