Após a linda festa de posse do novo presidente da República, Lula, no domingo que correspondeu ao primeiro dia de janeiro de 2023, festa repleta de simbolismo para além de sua própria beleza, entra em campo a realidade do cotidiano. E essa realidade vai ser marcada por uma disputa importante de forças no campo da economia, entre o chamado mercado (leia-se os interesses dos aplicadores financeiros) e o novo governo, que não está “domado” pelos interesses financeiros, embora não se contraponha necessariamente a eles.
E, apesar do antigo Ministério da Economia ter sido dividido em quatro partes (Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio, e Gestão), o embate fundamental das forças do financismo é com o Ministério da Fazenda, e seu ministro, Fernando Haddad.
Por isso, não adiantou a tentativa de ensaio de música para os ouvidos do mercado no discurso de posse de Haddad na segunda-feira. Haddad falou na proposta de um novo arcabouço fiscal para substituir o chamado “teto de gastos”, atacou as benesses eleitoreiras e desonerações fiscais do governo anterior, e na possibilidade de rever o que for possível dessas medidas. Falou em recuperar as contas públicas. Falou em combater a inflação. Falou que “É preciso fazer o Brasil voltar a crescer com sustentabilidade e responsabilidade”. Falou na necessidade de organizar as contas públicas. Falou que é preciso harmonizar política fiscal e monetária (como a política monetária, assim como a cambial, é conduzida pelo Banco Central independente e com um presidente indicado pelo governo anterior, que ainda vai atravessar os dois primeiros anos do governo Lula, isso significa uma política econômica “negociada” com os interesses do rentismo encastelados no Banco Central) – e, para ser mais explícito, falou a seguir em “buscar o entendimento da autoridade fiscal e da autoridade monetária, buscando o equilíbrio”. Falou em rapidamente restabelecer a confiança dos investidores. Citou a “equipe econômica”, lembrando o nome dos demais ministros da área (Simone Tebet, no Planejamento, Geraldo Alckmin, na Indústria e Comércio, e Esther Dweck, na Gestão).
Nada disso adiantou muito, e o mercado “roncou trovoada” nos primeiros dias úteis do ano, com bolsa caindo e dólar subindo. Porque evidentemente os interesses financeiros percebem que à heterogeneidade da chamada “equipe econômica”, com o ex-candidato do PT à Presidência em 2018, um várias vezes ex-candidato do PSDB à Presidência e vice-presidente da República no momento, uma ex-candidata do MDB à Presidência no processo eleitoral do ano passado e firme apoiadora de Lula no segundo turno, e uma ministra de perfil mais técnico, corresponde apenas uma coisa: o único capaz de administrar essa variedade de visões e interesses é o próprio presidente da República, e ele vai ser o seu próprio homem-forte na área econômica, dando orientações e arbitrando disputas.
E as orientações começaram a ser dadas na véspera, na posse do presidente e efetivo condutor da política econômica ainda sob gestão do Executivo federal (de novo, há que ser lembrado que as políticas cambial e monetária estão nas mãos do presidente de um agora independente Banco Central, indicado ainda pelo governo anterior, e em meio de mandato): o rótulo de “estupidez” foi colado ao chamado “teto de gastos” e se avançou na ideia de que as privatizações chegaram ao seu final.
Na verdade as trovoadas do mercado financeiro “roncavam” contra essas duas ideias, jogando a bolsa para baixo e o dólar para cima. Aqui, as ameaças veladas: a bolsa para baixo atinge uma franja de pequenos poupadores e afugenta investidores internacionais. O dólar para cima ameaça com mais inflação uma economia que tem os seus preços extremamente dolarizados. O governo vai ter que agir, e agir rápido.
Esse tipo de comportamento deve marcar os primeiros momentos do novo governo. Até que as abóboras se ajeitem na carroça, os aplicadores financeiros devem insistir em uma série de movimentos para tentar amedrontar os gestores da política econômica, buscando enquadrá-los dentro dos interesses do capital especulativo.
O governo, e seus gestores, devem seguir insistindo no tal “equilíbrio” de interesses, já que o enquadramento dentro da lógica dos interesses financeiros significa abrir mão da possibilidade de fazer algo muito diferente do que vem sendo feito dos últimos oito anos, praticamente, começando ainda com Joaquim Levy em 2015, e seguindo por Meirelles e, finalmente, Paulo Guedes, no último governo. Ou seja, crises, crescimento pífio (quando ocorreu), cortes na área social, fome e miséria.
E, cá para nós, Lula ganhou a eleição exatamente para, na área econômica, mudar esse quadro. Se for enquadrado pelos interesses financeiros, perde rapidamente cacife político e popularidade. Mas tem que avaliar bem até que ponto é possível “esticar a corda”. É esse movimento que vamos observar na economia nas próximas semanas. A esperança é que se chegue rapidamente a algum ponto que permita avançar em alternativas de política econômica, provavelmente sem subir muito o tom na confrontação. A ver se e quando é possível que aconteça.
Frente a um mundo turbulento, onde na última terça-feira a diretora-geral do FMI alertava para a possibilidade de uma recessão global em 2023, tudo o que não precisamos é agravar esse quadro com turbulências agudas aqui dentro.
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone