A contraofensiva tem que ir além da resposta institucional. Será nas ruas que devemos medir forças com o golpismo
“A cem fustiga quem a um castiga. O castigo faz, ao doido, ter juízo” (Sabedoria popular portuguesa)
Fracassaram. O “assalto aos palácios” bolsonarista foi derrotado. Agora é hora de avançar na investigação, prisão e condenação dos responsáveis, sem tropeços, mas, sobretudo, sem hesitações sobre o destino de Jair Bolsonaro. O principal responsável da incitação do golpismo, há anos, impunemente, é Jair Bolsonaro.
A decisão do governo Lula de decretar intervenção federal na segurança de Brasília, em função da ameaça golpista, foi correta, e Ricardo Capelli, ex-presidente da UNE, merece apoio na iniciativa de realizar a repressão imediata necessária. A decisão de Alexandre de Moraes de afastar Ibaneis Rocha do governo do Distrito Federal foi, também, justa, para tentar recuperar o domínio de Brasília. Mas a contraofensiva tem que ir além da resposta institucional. Será nas ruas que devemos medir forças com o golpismo.
O que aconteceu no domingo foi uma insurreição, ponto. Caótica, demencial, obscura, mas uma insurreição. O objetivo era a derrubada do governo Lula. Felizmente, não houve mortos. Não foi uma manifestação de protesto. Não foi o descontrole de uma “explosão” de radicalização espontânea. A aparente “acefalia” da subversão não deve esconder a responsabilidade de quem preparou, organizou e dirigiu a tentativa de tomada do poder. Obedecia a um plano. Foi uma tentativa amalucada de provocar uma quartelada. Um levante desarmado, mas não por isso, menos perigoso.
Obedecia ao cálculo delirante de que bastaria uma fagulha para que alguns generais colocassem os tanques nas ruas. Que a faísca não tenha gerado um incêndio com a saída às ruas de tropas militares dispostas a oferecer sustentação ao golpe de Estado não diminui a gravidade da sublevação. E não anula o perigo que é uma evidente simpatia policial e militar pelo movimento bolsonarista. Uma desconcertante operação articulada, planejada e, minuciosamente, orquestrada que não pode ser subestimada. Descobrir quem deu as ordens, portanto, quem comandou: este é o desafio central destes dias.
Assistimos perplexos, atônitos e chocados a incrível facilidade com que, não mais que alguns milhares de fascistas, fantasiados de patriotas em marcha carnavalesca, escoltados pela Polícia Militar invadiram os prédios que são os símbolos dos poderes da República. Algo, simplesmente, inacreditável. A invasão do Congresso Nacional, do STF e do Palácio do Planalto foi uma demonstração de que a impunidade da extrema direita, depois de dois meses de concentrações na porta de quarteis pedindo um golpe militar, tem consequências graves. O espetáculo absurdo e grotesco durante três horas, no centro do poder da capital, seria inexplicável sem a cumplicidade das forças policiais e militares de Brasília.
As prisões preventivas são inescapáveis para investigar os organizadores. Há mandantes ocultos ainda por ser revelados. Mas, ainda que progressivas, estas decisões são insuficientes. Permanece sem solução a “questão militar”. José Múcio Monteiro não tem condições de permanecer como ministro da Defesa. O comandante do Exército não pode permanecer no cargo. Será decisiva, portanto, a resposta da mobilização popular que começou na segunda-feira, 9 de janeiro e que não deve ser interrompida.
A “desbolsonarização” deve ser uma estratégia permanente. Abriu-se um novo momento na conjuntura, uma oportunidade que não podemos perder, com o fiasco da aventura golpista. A hora é de contraofensiva implacável. Infelizmente, é necessário que sejamos conscientes que a sociedade brasileira continua muito fraturada. A vitória eleitoral alterou, favoravelmente, a relação política de forças. Mas só a luta social de massas poderá impor uma relação social de forças melhor.
Não esqueçamos que a maioria da burguesia apoiou Jair Bolsonaro nos últimos anos. Que as camadas médias apoiaram Jair Bolsonaro. Que, ainda que dividida, uma parcela importante da classe trabalhadora apoiou Jair Bolsonaro. As provocações fascistas não vão parar enquanto não houver repressão. A extrema direita tem que ser detida. Em grande medida a aventura deste domingo foi mais um “ensaio geral”. As forças da extrema direita mergulharam em crise em função da derrota eleitoral. O próprio Jair Bolsonaro se recolheu desmoralizado durante dois meses e saiu do país.
Mas ainda não foram neutralizados, mantém, posições. Os fascistas quiseram demonstrar em Brasília que mantém força social, ambição política e capacidade de ação. Estão apostando na acumulação de forças. Se não forem reprimidos com a prisão dos responsáveis, a começar pela investigação de Jair Bolsonaro, voltarão. Não pode haver qualquer anistia aos crimes que cometeu. O governo Lula deverá assumir, plenamente, a liderança do combate contra a provocação bolsonarista. A esquerda, se apoiando nos movimentos sociais, terá que organizar um dia nacional de mobilização em resposta. Fascistas não passarão!
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).