Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão participa da VII Jornada de Agroecologia da Bahia

Encontro aconteceu entre os dias 30 de janeiro e 3 de fevereiro no quilombo Conceição de Salinas (BA) e teve como tema as lutas por terra, território e água

POR JESICA CARVALHO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI REGIONAL MARANHÃO

A Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão participou da VII Jornada de Agroecologia da Bahia. O evento ocorreu entre os dias 30 de janeiro e 3 de fevereiro de 2023, em frente às praias marisqueiras do quilombo Conceição de Salinas, localizado na cidade de Salinas da Margarida, na Bahia, a 73 km de Salvador.

O encontro, que reuniu, também, articuladores e articuladoras das Teias dos Povos e Comunidades Tradicionais da Bahia, Sergipe, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro e Rondônia, teve por objetivo discutir o tema “Lutar por Terra, Território e Água: Fortalecer a (r)existência e Defender o Modo de Vida Tradicional e Ancestral”.

Hemerson Pereira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Maranhão, aponta que a Jornada é um momento de fortalecimento da articulação das Teias. “O centro da discussão é a agroecologia vinculada às práticas ancestrais e aos modos de vida dos povos originários e das comunidades tradicionais, numa experiência vivenciada no cotidiano”, reflete.

“O centro da discussão é a agroecologia vinculada às práticas ancestrais”

“Nesses dias de encontro, tivemos trocas de saberes, momentos de discussões sobre a conjuntura política nacional, as violências que afligem os corpos-territórios e as mobilizações de resistência ao agronegócio. Nós, do Cimi Regional Maranhão, somos aliados da Teia e estamos aqui para fortalecer a luta”, complementa Hermeson Pereira.

“É um momento propício para dialogarmos e falarmos sobre nós, mas também para falar sobre a agroecologia em nossos territórios, fortalecer a nossa ancestralidade e nossa espiritualidade. A vertente que viemos trabalhando dentro dos processos por terra e território aponta um caminho para a autonomia e para a aliança preto-indígena-popular”, destaca Deise Ferreira, da Teia da Bahia.

“A vertente que viemos trabalhando […] aponta um caminho para a autonomia e para a aliança preto-indígena-popular”

Para o cacique Ramon Tupinambá, o encontro é um momento de unir forças com os outros povos e comunidades tradicionais para juntos pensar a autodefesa, proteção e demarcação dos territórios. “Estamos pensando também no desenvolvimento das nossas formas de ser”, acrescenta.

Na ocasião, os povos e comunidades tradicionais que tecem as teias nesses estados discutiram o contexto das lutas em seus territórios e ações necessárias para enfrentar a atual conjuntura. A programação envolveu círculo de diálogos, apresentação de pesquisas feitas nas universidades e oficinas sobre o tema do encontro, além de momentos sagrados e de rituais dos povos.

“Estamos pensando também no desenvolvimento das nossas formas de ser”

Raimunda Costa, do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, evidencia a importância da união das Teias dos Povos e Comunidades Tradicionais. “Esse é um momento para o fortalecimento dos nossos territórios. Vamos levar daqui mais força, mais conhecimento e mais soberania com a nossa união”, afirma.

Como resultado das discussões do encontro, ao final, os participantes construíram uma carta que traz as lutas pela terra e território como sinônimos de conquista de liberdade e dignidade.

Confira abaixo a carta na íntegra.

CARTA DA VII JORNADA DE AGROECOLOGIA DA BAHIA

Com as bênçãos de nossas mais velhas e mais velhos
e dos mais velhos do que os nossos mais velhos
Em respeito às águas e seus povos,
Em respeito às crianças e a nossa juventude,

Em respeito às férteis terras do Recôncavo e as ricas águas da Baía de Todos os Santos, que tantos de nossos irmãos alimentaram ao longo de séculos e séculos.

Com a força dos ventos, desde o quilombo de Conceição de Salinas, território ancestral pesqueiro conquistado e preservado por gerações de mulheres negras guerreiras, aqui falamos em nome da Teia dos Povos, desde a Bahia. Aqui estamos em território repleto de memórias dos Tupinambá e Tupiniquim, que aqui reinaram por muitos séculos e também permanecem vivos no sangue e nas almas de muitos de nós.

Em 2019, estivemos reunidos na Chapada Diamantina, onde nascem águas que correm até a baía em cujas margens hoje voltamos a nos reencontrar, depois de mais de três anos em que padecemos com um governo fascista e uma pandemia que potencializou a política de extermínio de nossos corpos e modos de vida. Enquanto lutamos aqui, irmãos e irmãs Yanomami e Ye’kwana, entre tantos outros povos ameaçados pela mineração e o agronegócio, seguem sendo perversamente violentados.

Reunidos neste lugar sagrado de encontro das águas, nos preparamos em nossas mentes, corpos e espíritos, celebrando o dia de Iemanjá e Kayala para abençoar nossa luta contra o capital, simbolizada por Salvador, primeira capital estabelecida pelos invasores em Pindorama.

Esta Baía de Todos os Santos nos serve, hoje, para lembrar que, há exatos 200 anos, uma poderosa aliança negra, indígena e popular varreu as tropas portuguesas destas terras, garantindo nosso embarque no grande sonho de independência latino-americana. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de lembrar a amarga traição que as elites brancas nos infligiram logo em seguida, assim que tiveram chance. Permanece viva a lembrança do cativeiro imposto a milhões de nossos ancestrais e das guerras injustas travadas, ainda, contra os povos originários, mesmo depois do 2 de Julho de 1823.

Neste nosso encontro em terras afro-indígenas, inauguramos nossos trabalhos no mesmo dia em que tivemos a revoltante notícia do assassinato do pescador Josias Almeida de Jesus, morador do vizinho povoado de Encarnação, brutalmente alvejado em praça pública por um representante da elite branca local que se evadiu do local do crime de forma covarde.

Honramos nosso compromisso com os nossos, com as nossas, e com a comunidade de Encarnação apoiando seu justo protesto na estrada que corta o distrito, num exercício de solidariedade que nos permitiu rememorar coletivamente o sério desafio que enfrentamos no Brasil atual, para enfrentar a militarização de nossa sociedade e a espúria tentativa de imposição de tutela dos militares sobre nossa frágil democracia burguesa. É sempre importante perceber que, como aconteceu no caso de Josias, quando os militares têm que optar entre proteger a vida da população ou o patrimônio dos ricos, eles muitas vezes fazem opções que expõem a verdadeira natureza dessa instituição: impedir a revolta dos povos escravizados contra o latifúndio.

Neste momento em que assume um novo governo, em torno do qual se gera enorme expectativa, em nosso exercício coletivo de reflexão, também pudemos ouvir com atenção nossos mais velhos e nossas mais velhas, que nos alertaram para a necessidade de não construirmos um novo ciclo de ilusões em nossas mentes e corações. A constante aliança com o latifúndio e o capital que tem sustentado todos os governos neste país em cinco séculos nunca nos deu e nunca nos dará de forma plena o que é mais fundamental: terra e território – liberdade e dignidade.

Precisamos, sim, é de aproveitar a oportunidade histórica que nos oferecem os grotescos erros do anterior governo fascista. É hora de enterrar, de vez, o autoritarismo e o militarismo nestas terras. Na Bahia, fascista não se cria. Que o espírito dos Aimoré, dos Malês, dos Alfaiates, de Canudos inspire o Brasil a varrer para o esgoto essa escória.

Renovamos, ainda, em nossas conversas, as reflexões sobre o maior perigo que atualmente ronda a humanidade, o atual estado generalizado de ecocídio, cujo enfrentamento nos exigirá, ainda, muito vigor e energia. É uma luta urgente e de longa duração, sabemos. São muitas as comunidades que nos trazem relatos das ameaças que as rondam. Não satisfeito com o atual processo de colapso ambiental planetário, o capital segue voraz, cobiçando águas, terras, florestas, jazidas minerais, cardumes, tudo aquilo que ele devora para transformar em dinheiro – para eles – e ruínas – para nós.

Não podemos nos enganar: o ecocídio generalizado e a expansão desenfreada do capital sobre o mercado mundial de alimentos estão criando uma crise sem precedentes. A fome se espalha cada vez mais, e triste será o povo que permanecer desatento à necessidade de construção de sua soberania alimentar. Só um povo altivo consegue guerrear contra seus inimigos.

Trata-se de uma tarefa imediata, urgente, e que não podemos deixar a cargo do Estado. Ao mesmo tempo, é importante perceber que as pessoas só permanecerão na terra, para defender nossos territórios, se tiverem uma renda digna – que deve ser garantida pelo trabalho. É só assim que conseguiremos que as novas gerações permaneçam nos territórios e construam um futuro de luta e emancipação real para si.

Durante nosso encontro anterior, em 2019, havíamos assumido o compromisso de dar um espaço central para a juventude nesta Jornada. Cumprimos nossa palavra. Aos jovens foram confiadas importantes tarefas e espadas para as lutas vindouras.

E não há espaço para a juventude sem espaço para formação. Por isso, estamos criando este ano a Universidade dos Povos. Não será um espaço de aprendizagem para indivíduos, será dos povos e territórios. Não estamos preocupados em oferecer diplomas, e sim oportunidades para o desenvolvimento de nossas melhores inteligências. A Universidade dos Povos poderá não dar canudos, mas quem sabe dê em muitas novas Canudos.

Mas é importante lembrar, precisamos garantir as crianças uma boa formação de base. O atual sistema oferecido pelos Maus Governos e simplesmente uma fábrica de escravos. A Universidade dos Povos principia, na verdade, desde nosso terreiro lúdico, desde a escola de base, que precisa educar para a emancipação.

O desafio de encantar o mundo não pode encontrar limites nas fronteiras definidas pelos Maus Governos. Por esta razão, prometemos ir muito além da Bahia em nossas tessituras, e é o que estamos fazendo. Neste nosso encontro, fomos honrados com a presença de delegação de algumas das novas Teias que estão semeadas por todo o Brasil, às quais deixamos uma especial saudação e a confiança que seguirão a expansão de nossa articulação.

Viemos das águas doces da Chapada Diamantina e agora fomos abençoados nas águas salobras da Baía de Todos os Santos. O destino do rio é encontrar-se com o mar. E esperamos que assim seja nossa jornada.

Nossa palavra não é de boca, é de coração. Assumimos, então, que até lá seguiremos uma caminhada de unidade através dos seguintes passos:

  • Não esperaremos que o Estado demarque nossas terras, seguiremos o caminho de autodemarcação de nossos territórios em luta.
  • Em nossa próxima jornada haverá uma centralidade da luta das mulheres em nossa atividade para que esse espaço faça jus à grandiosa atuação das companheiras que são o fundamento dessa tecitura que é a Teia de Povo.
  • Vamos enfrentar a fome em nossos territórios e onde quer que tenhamos pernas e forças para fazê-lo.
  • Fortaleceremos as experiências revolucionárias de formação de crianças e jovens para que tenhamos guerreiras e guerreiros para nossas próximas gerações.
  • Ao nos encontrarmos no Quilombo da Conceição, reafirmamos nossa solidariedade aos territórios em conflito. Seguiremos com essa postura e ampliaremos nosso pacto de solidariedade.
  • Avançamos com a Teia dos Povos para cinco outros estados e temos que seguir ampliando a nossa articulação, cada vez mais envolvendo novos povos e agregando nossa gente desterritorializada para que encontrem morada em nossas lutas.

Com a força dos ventos e das águas, seguiremos no desafio histórico de acabar com o machismo, o racismo e o capitalismo, agarrando a pequena brecha de esperança no futuro da humanidade, diante do colapso ambiental, que é a unidade dos povos em luta!

Essa é a Palavra da Teia dos Povos.

Quilombo de Conceição, Salinas da Margarida, Bahia

03 de fevereiro de 2023

Povos e Comunidades Tradicionais participam de VII Jornada de Agroecologia da Bahia. Foto: Leandro dos Santos/ Quilombo Cocalinho-MA

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