Ministra das Mulheres planeja atendimento exclusivamente feminino no Ligue 180

Cida Gonçalves vai apresentar reestruturação do serviço antes do Carnaval

Por Nathallia Fonseca, em Agência Pública

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, planeja criar um grupo exclusivamente feminino para atendimento do Ligue 180, serviço de enfrentamento à violência contra a mulher. A medida seria parte da reestruturação do canal, que será apresentada no próximo dia 15.

No primeiro momento, será feita uma atualização do banco de informações sobre tipos de violência e serviços. Em entrevista à Agência Pública, a ministra informou que também estão previstas capacitações dos atendentes para tratamento de casos envolvendo violência sexual. “Ao mesmo tempo, estamos montando um protocolo, uma linha de base para esse atendimento específico, que não é só sobre Lei Maria da Penha”, disse.

Especialista em gênero e enfrentamento à violência contra a mulher, Cida Gonçalves foi coordenadora do movimento popular de mulheres no Mato Grosso do Sul, na década de 80. Ela defende que política pública deve ser feita com “capilaridade ” e avalia levar a Casa da Mulher Brasileira, equipamentos que acolhem vítimas de violência doméstica, “para todas as capitais e para o interior”.

Durante a entrevista, Cida Gonçalves também comentou a gestão que a antecedeu, da ex-ministra pastora e atualmente senadora pelo Republicanos, Damares Alves. “Nos padrões do governo anterior se estabeleceu que ‘mulher veste rosa e homem veste azul’. As pessoas na verdade vestem o que elas quiserem”. A afirmação é uma referência à declaração de Damares, de que “menino veste azul, menina veste rosa”. “As mulheres vão ser o que elas quiserem ser e o Estado brasileiro vai estar aqui por elas”, reforçou Gonçalves.

Veja os principais trechos da entrevista da ministra Cida Gonçalves:

Em outros momentos, desde a equipe de transição da qual você também fez parte, o atual governo falou muito em reconstrução e muitas urgências. Mas por onde começar? Qual o direcionamento do Ministério das Mulheres agora? 

A gente tem como maior urgência a reconstrução do Ligue 180, nosso canal de denúncias de violência contra a mulher, porque na verdade hoje ele não existe. Ele se uniu ao Disque 100 [canal que analisa e encaminha denúncias de violações aos direitos humanos] com as mesmas atendentes, os mesmos protocolos, o que significa que não existe mais um protocolo que seja específico para mulheres, e isso é uma coisa urgente. O 180 é aquele que orienta, que dá informações e até mesmo ajuda na denúncia de crimes de violência de gênero. Além disso, a gente tem que construir um ministério do zero. Nomear as pessoas, buscar essas pessoas que somem à pasta. Essa é outra questão prioritária para que comecemos a trabalhar.

O carnaval é uma época do ano em que as denúncias de assédio, importunação sexual e busca por orientações de defesa da mulher crescem muito. Podemos contar com um 180 reestruturado até lá? Como será feita essa reestruturação?

Nossa meta é apresentar essa reestruturação até o carnaval, no dia 15 de fevereiro. Essas mudanças imediatas serão vistas inicialmente na atualização do banco de informações sobre tipos de violência e serviços que podem auxiliar as vítimas e na mudança da URA (unidade de resposta audível) para facilitar e agilizar o atendimento.

Estamos fazendo isso de três formas: a primeira é revendo os contratos para avaliar o que pode ser adaptado à nossa nova realidade ou não. Nesse ponto, está nos nossos planos um grupo exclusivo de mulheres que atendam a esse canal. Ao mesmo tempo, estamos preparando e capacitando uma equipe, montando um protocolo, uma linha de base para esse atendimento específico que não é só sobre Lei Maria da Penha, que precisa compreender todas as violências sofridas pelas mulheres. E, por último, uma organização dos fluxos e dos encaminhamentos.

Outro equipamento muito importante é a Casa da Mulher Brasileira, que oferece auxílio psicológico e social, além de encaminhamento na defensoria pública, às mulheres vítimas de violência. Quais são os planos de expansão desse serviço, que apesar do cuidado integral ainda atende a um recorte pequeno de mulheres? 

Neste momento, estamos fechando um levantamento que observa de perto a Casa da Mulher Brasileira. O grande problema é que esse é um programa que foi praticamente terceirizado para emendas parlamentares. Os parlamentares que fazem a emenda e decidem qual município vai receber a Casa e também o valor. Estamos entendendo quais são cada uma dessas emendas, mas o levantamento ainda não está pronto. De toda forma, é um plano, sim, repensar a estrutura a partir das particularidades de cada região, de cada município, de forma a levar a Casa para todas as capitais e para o interior. Essa capilaridade é fundamental. Nós temos que estar na floresta, nas águas, no interior, nas periferias.

O programa “Mulher: Viver Sem Violência” [lançado em 2013 com o objetivo de integrar serviços especializados de saúde, segurança pública e justiça em defesa da mulher] também vai ser retomado e revisitado. Outros equipamentos como as delegacias especializadas, centros de atendimento estão no nosso radar.

E os recursos para todos esses programas? 

Eu não vou colocar na minha cabeça que a falta de dinheiro vai paralisar o Ministério. Nós vamos correr atrás desses recursos. Vamos falar com a [Ministra do Planejamento e Orçamento] Simone Tebet, nós vamos falar com o presidente Lula, nós vamos pedir parceria das entidades, das instituições, para que de fato a gente possa conseguir atender às nossas demandas. Nós não vamos paralisar nosso trabalho porque o governo anterior não deixou recursos. Vamos recolocar no cenário quais são todas as possibilidades para que, efetivamente e ainda este ano, possamos ampliar os serviços de atendimento, discutir a questão das políticas de cuidado, a autonomia econômica e enfim, políticas públicas que possamos construir também com outros ministérios.

O presidente Lula defende com frequência a chamada política transversal entre Ministérios. Isso já acontece na prática? Como está a relação com as outras pastas? 

Acontece sim. Eu realmente acredito que essa relação entre os ministérios, essa troca, vai ser algo permanente. Claro que é importante dizer que com as mulheres tudo flui mais fácil, mas temos encontrado abertura, de maneira geral. Neste momento estamos lidando com as outras pastas para projetos no dia 8 de março. A maioria dos ministros já estão com equipes pensando ações para colocar em prática e por enquanto tem sido muito positivo. Há um entendimento que isso é uma pauta prioritária para o governo, a questão da transversalidade de raça, gênero e a sustentabilidade.

O Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, lançado durante o governo Bolsonaro, é criticado por entidades feministas, especialmente por ter seu conteúdo restrito às autoridades policiais. Existem também críticas à adoção do documento por ele ser uma substituição ao modelo latino-americano elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Qual a visão do Ministério sobre esse protocolo? Há planos de alterar esse padrão de investigação? 

Nós queremos trabalhar com o conhecimento deste protocolo. Ele está na minha mesa, eu ainda não me aprofundei ao ponto de tecer uma opinião sobre as diretrizes, mas posso afirmar que a transparência é primordial no nosso Ministério. E sim, nós queremos trabalhar com o protocolo de investigação da ONU, que é um documento muito mais completo e que traz a questão da investigação, do julgamento, com elementos e conceitos que são muito mais avançados e com um recorte de gênero, especificidades que são importantíssimas. Vale também dizer que nos estados em que ele foi implantado, como no Mato Grosso do Sul, existiram resultados muito satisfatórios, tanto que se você vai ver no Fórum de Segurança Pública, esse é justamente um dos estados que mais tipificam o crime do feminicídio.

De toda forma, porém, nós vamos analisar o protocolo atual. Entender como ele tá instituído. Não posso prometer que esse conteúdo será publicado, porque não é um documento único do governo, tem um sistema de justiça que inclui o Ministério Público, os juizados. Tudo isso precisa ser pactuado, então eu não posso assumir uma coisa que termine por não funcionar, mas a princípio para nós a transparência é fundamental e a gente vai lutar para isso. Podemos não ganhar, mas haverá um esforço.

Você lidera agora uma pasta que sofreu cortes na última gestão e que está à frente dos direitos de um grupo que apesar de ser maioria da população, foi muito atacado pelo ex-presidente da República. Como o Ministério se posiciona diante desse desafio? 

O maior desafio é que nós vamos enfrentar o que para o governo anterior era muito caro, que é a questão dos papéis de gênero em si. Nos padrões do governo anterior se estabeleceu que mulher veste rosa e homem veste azul. As pessoas vestem o que elas quiserem, as mulheres vão ser o que elas quiserem e o Estado brasileiro vai estar aqui por elas. Eu acho que esse olhar estabelecido de preconceito e submissão das mulheres é nossa maior batalha.

A grande fragilidade histórica do Brasil no combate à violência contra a mulher é o machismo estrutural, o próprio patriarcado, eu diria, porque é algo tão arraigado que nos permite ainda ver pessoas condenando as mulheres por sofrerem a violência que sofrem. Uma revitimização. A gente tá acompanhando o caso da Janaína [jovem vítima de violência sexual e homicídio no Piauí] e isso é uma demonstração cruel, o fruto de uma sociedade machista que justifica, que autoriza, e que nos últimos anos ampliou o ódio e a violência contra as mulheres. É por isso que nós precisamos de uma política de reeducação, de mudança de comportamento e de valores com relação a homens e mulheres. E isso se faz com políticas públicas efetivas, porque a gente não faz só para aquelas mulheres que são nossas aliadas, a gente faz para 52% da população brasileira.

Cida Gonçalves durante posse como Ministra da Mulher (Ricardo Stuckert/PR)

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