A hora é agora: Lula terá que decidir sobre Belo Monte

Está na mesa do novo governo a renovação da licença de operação da hidrelétrica que causou uma crise humanitária e ambiental em uma das regiões mais diversas da maior floresta tropical do planeta. Sua escolha determinará o legado do PT na Amazônia e o destino do rio Xingu

por HELENA PALMQUIST, ALTAMIRA/PARÁ, em Sumaúma

Em 22 de junho de 2010, o presidente Lula, então em seu segundo mandato, visitou Altamira, no Pará, e fez um discurso polêmico, até hoje lembrado na região. Lula defendeu a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que alagaria parte da cidade, afogaria ilhas, afetaria povos indígenas, secaria a Volta Grande do Xingu e expulsaria cerca de 55 mil pessoas de suas casas, parte delas de comunidades tradicionais da floresta. A licença prévia para a obra tinha sido expedida poucos meses antes, em fevereiro daquele ano, depois de intensos conflitos com ambientalistas, com os movimentos sociais da região e com lideranças indígenas. “Eu sei que muita gente bem-intencionada não quer que se repitam os erros cometidos neste país, ao longo da construção de hidrelétricas”, disse Lula. “Nós nunca mais vamos querer uma hidrelétrica que cometa o crime de insanidade que foi Balbina, no estado do Amazonas. Nós não queremos repetir Tucuruí. Nós queremos fazer alguma coisa nova.”

Hoje, quase 13 anos depois daquele discurso, Lula está no início de seu terceiro mandato e há fatos e provas abundantes para afirmar: Belo Monte é um “crime de insanidade”. Dados inéditos obtidos por SUMAÚMA mostram que, em 2019 e 2020, em quatro terras indígenas atingidas pela usina, o desmatamento foi maior do que em todos os outros 311 territórios da Amazônia. Uma geração de crianças da floresta, que tiveram suas ilhas ou casas nos beiradões do Xingu queimadas e afogadas, virou adolescente na periferia de Altamira, que se tornou uma das cidades mais violentas do Brasil, dominada pelo crime organizado e pelas disputas sangrentas entre facções. À espera de reassentamento para recompor o modo de vida, suas famílias anseiam por um território ribeirinho que hoje está sob ataque de políticos associados à destruição da floresta e de grileiros e fazendeiros locais. Parte delas está confinada nos chamados RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos), numa rotina de falta d’água e contas de energia que não conseguem pagar. Neste momento, a Volta Grande do Xingu, 130 quilômetros de uma das mais biodiversas regiões da Amazônia e lar de três povos indígenas, comunidades ribeirinhas e camponesas, está secando, numa catástrofe humanitária e ambiental.

Mais de sete anos depois do início da operação, apenas 13 das 47 condicionantes foram integralmente concluídas, segundo parecer técnico do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) analisado pelo  Instituto Socioambiental (ISA). As condicionantes, como o nome diz, deveriam condicionar as licenças para as obras e para a operação da usina. Seu descumprimento aponta para uma violação explícita das leis.

Pelo menos 29 ações do Ministério Público Federal apontaram  ilegalidades no processo de construção e operação da hidrelétrica.  Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o governo federal havia desrespeitado os direitos indígenas ao não realizar as consultas prévias, livres e informadas previstas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Belo Monte se tornou um nome internacionalmente maldito.

As usinas de Balbina e Tucuruí, citadas por Lula, foram construídas na Amazônia pela ditadura empresarial-militar (1964-1985) e se tornaram exemplos históricos de destruição do meio ambiente e também de vidas humanas e não humanas. Belo Monte foi construída pelo governo mais à esquerda da história da democracia brasileira, eleito com o apoio dos movimentos de base da região de Altamira. A hidrelétrica, no Xingu, acabou por repetir violências e danos causados pela usina de Tucuruí e também se mostrou deficitária como Balbina, já que, como os cientistas haviam alertado repetidamente, a água do rio Xingu diminui durante os meses de seca.

Parte do impacto das denúncias de corrupção que envolvem os governos do PT foi amenizada pelos abusos e ilegalidades da Operação Lava Jato e pela magistral volta por cima de Lula, que depois de ter ficado 580 dias preso se elegeu para o terceiro mandato com o apoio de uma frente ampla. Belo Monte não. Belo Monte permanece incontornável. A aposta de que poderia ser considerada “fato consumado” e com o tempo esquecida não se concretizou. Ao contrário. Os impactos sobre a floresta e seus povos estão longe de acabar. Lula só não foi confrontado muito mais duramente na campanha eleitoral porque havia consenso, da esquerda à direita, de que era necessário vencer o fascismo representado pelo extremista de direita Jair Bolsonaro.

Agora, Lula tem diante de si uma escolha: cabe a seu governo renovar a licença de operação da hidrelétrica, vencida desde novembro de 2021.

Lula 3 reproduz, em parte, a configuração de Lula 2. Em 2008, Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, deixou o governo e, no ano seguinte, o PT. Fora do cargo, Marina defendeu o adiamento do leilão da hidrelétrica e questionou a viabilidade social, ambiental e econômica do projeto. “Belo Monte está na agenda do país há 20 anos, faz 20 anos que a índia Tuíre botou o facão no pescoço do diretor da Eletrobras. Lamentavelmente, 20 anos se passaram e a licença foi dada sem que os problemas de Belo Monte tivessem sido resolvidos, em relação aos impactos sociais, aos impactos ambientais e ao processo que afeta a terra das comunidades indígenas. […] E Belo Monte, para além dos problemas sociais e ambientais, acabou revelando um outro problema, que é a questão da própria viabilidade econômica, porque hoje é um empreendimento praticamente subsidiado”, criticou ela em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em junho de 2010.

Hoje, Marina Silva é mais uma vez ministra do Meio Ambiente do governo Lula. As semelhanças do contexto, porém, acabam aí. Não por acaso o nome da pasta foi alterado para Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Se no segundo mandato Lula se tornou o presidente pop no mundo por causa de seus programas sociais de redução da pobreza, agora, num planeta em que a crise climática virou uma preocupação central até mesmo em espaços conservadores como o Fórum Econômico Mundial, seu governo será julgado pelo que acontecerá na Amazônia. O nome “Belo Monte” ressoa no planeta como aquilo que de fato é: um desastre ambiental e humano. E nenhuma das várias declarações em defesa de Belo Monte feitas por Lula e políticos do PT será capaz de apagar aquela que não é uma pedra no meio do seu caminho, e sim toneladas de aço e concreto no meio de um dos rios mais majestosos e com maior biodiversidade da Amazônia.

Cabe ao Ibama, órgão vinculado ao ministério comandado por Marina Silva, a decisão técnica sobre a renovação da licença de operação da hidrelétrica e sobre o que será feito em relação aos impactos causados por sua construção. A decisão política, porém, será de Lula.

Ao assumir o terceiro mandato na Presidência do Brasil, Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado do cacique Raoni Metuktire. Além de ser uma das maiores lideranças indígenas da história do país, Raoni foi uma das vozes mais importantes contra a construção da usina de Belo Monte no rio Xingu. A presença de Raoni entre os representantes do povo brasileiro que passaram a faixa a Lula no dia 1º de janeiro de 2023 emocionou a muitos e pode ter surpreendido alguns. Afinal, por causa de Belo Monte, os dois grandes líderes brasileiros estiveram em lados opostos por muitos anos.

Dias antes da posse, Raoni e Lula se reuniram. Naquele momento foi anunciado o nome de Joenia Wapichana, apoiada por Raoni, para a presidência da Funai (agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas). O tema Belo Monte esteve muito presente na reunião. Raoni, mais uma vez, advertiu Lula da destruição provocada pela usina no Xingu, um dos principais tributários da bacia amazônica, rio que é parte da vida do povo Kayapó e de dezenas de outros grupos indígenas que vivem em suas margens, desde as nascentes, em Mato Grosso, até a foz, na região de Porto de Moz, no Pará.

Belo Monte era um projeto da ditadura empresarial-militar, batizado então de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó. Em fevereiro de 1989, um encontro de povos indígenas do Xingu em Altamira ficou marcado por uma cena que correu o mundo: a liderança Tuíre Kayapó encostou um facão no rosto do então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, homem de José Sarney que atravessou décadas no setor elétrico. Depois do episódio com Tuíre, a Eletronorte decidiu abrir mão do nome Kararaô e a hidrelétrica virou Belo Monte – o projeto só seria retomado no fim dos anos 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Dessa vez, coube ao Ministério Público Federal (MPF) sepultar judicialmente a usina, apontando várias irregularidades nos estudos de impacto e a ausência de consulta aos povos indígenas.

Quando Lula se elegeu para o primeiro mandato, tanto movimentos sociais quanto indígenas do Xingu comemoraram, pois achavam que o caso estava encerrado. Mas já em 2005 o presidente garantiu a aprovação em tempo recorde de um decreto legislativo que permitiu o licenciamento das obras. Belo Monte foi então licenciada e leiloada em 2010, em seu segundo mandato, depois de uma batalha judicial em que saíram derrotados o MPF, os indígenas, os ribeirinhos e os movimentos sociais do Xingu. Naquele momento, grande parte das elites brasileiras e também da imprensa era favorável à usina, considerada uma “magistral obra de engenharia”. Tanto que deixaram passar um leilão arquitetado por Delfim Netto, ex-ministro da ditadura, em que houve abundância de acontecimentos estranhos antes, durante e depois de sua realização e do qual saiu vencedor o consórcio de empresas chamado Norte Energia.

Decidida e leiloada no governo Lula, a hidrelétrica de Belo Monte foi construída nos mandatos de sua sucessora, Dilma Rousseff, por um conjunto de empreiteiras que mais tarde seria alvo da Operação Lava Jato. Em 2015, a licença de operação foi assinada e já naquele ano, como mais tarde mostraria o Atlas da Violência, Altamira se tornou a cidade com mais de 100 mil habitantes mais violenta do Brasil. Desde então, o município apresenta alguns dos piores índices do país. Em 2019, foi palco do segundo maior massacre da história do sistema prisional brasileiro, com 62 mortos. Em 2020, pouco antes de os primeiros casos de covid-19 alcançarem o Pará, testemunhou uma série de suicídios entre aqueles que se tornaram adolescentes em uma cidade brutalmente transfigurada. Especialistas em saúde mental conectaram os suicídios aos impactos provocados pela construção da hidrelétrica.

Belo Monte, paradoxalmente, uniu dois governos ideologicamente opostos. Em 2016, pouco antes de ser arrancada do poder por um impeachment, a petista Dilma Rousseff desembarcou na região para inaugurar a hidrelétrica. Em 2019, o extremista de direita Jair Bolsonaro terminou de inaugurar a usina.

O principal projeto do governo Bolsonaro era o avanço sobre as áreas protegidas da Amazônia. Os resultados se tornaram evidentes com o genocídio do povo Yanomami e os recordes de fogo e desmatamento, com mais de 2 bilhões de árvores mortas. Antes mesmo de Bolsonaro, porém, Belo Monte já tinha transformado a região do Xingu na campeã absoluta do desmatamento na Amazônia: Altamira esteve no topo do ranking em sete dos dez anos do período que vai de 2012 a 2021. Com Bolsonaro, a destruição se agravou ainda mais.

A usina instalada no rio Xingu acumula um passivo correspondente a seu gigantismo em impactos não mensurados, em danos imprevistos, em condicionantes não cumpridas: a dívida com os povos da região e com a própria floresta só cresce.

Ao tratar o rio como sua caixa-d’água particular, de onde pode tirar ou colocar água conforme suas necessidades, Belo Monte está secando os 130 quilômetros da Volta Grande do Xingu, lar de milhares de espécies, algumas delas endêmicas, o que significa que só existem lá e, se forem extintas, desaparecerão do planeta.

Desde que a licença de Belo Monte expirou, em novembro de 2021, os técnicos do Ibama estudam sua renovação. Não há um prazo determinado para as análises. Segundo a legislação, a usina pode continuar funcionando porque solicitou a renovação com antecedência. Mas, a cada mês que passa, a fatura ambiental e humana aumenta. E aumenta na conta de Lula e do PT.

A decisão sobre a renovação da licença de operação pode ser uma janela de oportunidade única para um governo que assume o poder comprometido com a sustentabilidade ambiental e com o combate à miséria. É uma chance também de Lula mostrar ao mundo a real dimensão de seu compromisso com a Amazônia, a crise climática e o meio ambiente. É, acima de tudo, uma escolha sobre qual será a marca de seu legado em um planeta em catástrofe climática.

Lula, agora, tem um encontro marcado – e incontornável – com Belo Monte.

Para ajudar o presidente a tomar sua decisão, a equipe de SUMAÚMA visitou as comunidades mais isoladas, brasileiros que não podem mais navegar pelo Xingu e estão sem acesso a estradas, vivendo na penúria e desassistidos. Nossa equipe de reportagem também foi a primeira a visitar os locais onde a Norte Energia quer construir as “soleiras” – sete barragens no rio, na tentativa de evitar ter que devolver parte da água desviada da região da Volta Grande do Xingu. Conversamos com pescadores que vivem há sete anos sem conseguir sustentar suas famílias com a pesca, devido aos danos à fauna aquática que só foram reconhecidos pelo Ibama em 2019. Também percorremos as ruas dos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), bairros distantes do centro construídos pela Norte Energia em que foram jogadas as famílias expulsas pela hidrelétrica, submetidas a uma rotina de falta d’água, contas de luz impagáveis e violência extrema.

Em comum, além das reivindicações e do sofrimento, todas as pessoas com quem conversamos na região disseram ter votado em Lula em 2022. Apesar dos desastres provocados por Belo Monte, o governo de Jair Bolsonaro produziu tantas mortes que Lula era efetivamente, para muitos eleitores, a “salvação do país”. Esses eleitores dizem confiar no presidente para fazer as mudanças que são necessárias para interromper o ciclo de empobrecimento e de destruição socioambiental que Belo Monte inaugurou no Xingu. “Eu diria para ele [Lula] olhar para a classe humilde, para os nossos jovens. Temos muitos jovens aqui perdendo a vida para o tráfico”, diz Odelita Honorato, sentada na sala de sua casa, em em um dos RUCs construídos pela Norte Energia. “O que a gente espera é ele arrumar uma forma de uma condição melhor pra gente trabalhar e sobreviver aqui”, reivindica José Bastos, um maranhense que foi morar nas margens da Volta Grande do Xingu atraído pela facilidade de plantar e levar sua produção de barco para vendê-la nos centros urbanos mais próximos, mas agora não tem mais como navegar nem estradas para percorrer. Ele também votou em Lula.

Vivendo entre duas ilhas na Volta Grande, que batizou de Ilha do Amor 1 e Ilha do Amor 2, o pescador Sebastião Bezerra Lima conta que a vida ficou muito difícil depois que Belo Monte desviou 70% das águas para movimentar suas turbinas: “As coisas aqui não tão mais que nem eram, de jeito nenhum. Nem o peixe, nem o ribeirinho, nem o pescador, nem o indígena, não compreendem mais o rio. Antigamente, o pescador, o ribeirinho, compreendia o rio, a vazante, a enchente, tudo ele compreendia e agora não mais. A vida do pescador mudou, as frutas caem no seco, a água não chega no igapó, hoje em dia o peixe não tá se alimentando, algum peixe que ainda tem é magro como um facão. Perdi muita coisa. O pescador, o indígena, o ribeirinho, perdeu muita coisa”. Sebastião está ao lado de uma área que deveria estar alagando desde novembro do ano passado, para a reprodução dos peixes, mas permanecia seca na terceira semana de janeiro. Ainda assim, o pescador sem rio e sem peixes confia em Lula: “Confio. Se ele reparar pra gente, o que a gente pede é que ele repare. Eu confio de coração. Ele ficou para ajudar os pequenos. E eu sou pequeno, eu sou pequenininho”.

O que está em jogo na renovação da licença de operação

A licença de operação (LO) de Belo Monte foi concedida pelo Ibama no dia 24 de novembro de 2015. Essa data marca o fechamento definitivo da barragem de Pimental, que, no dizer dos ribeirinhos do Xingu, cortou o rio. A usina é chamada de complexo hidrelétrico porque o projeto de engenharia inclui duas barragens, dois reservatórios e duas casas de força. Pimental, a barragem principal, represa parte da vazão do Xingu na região em frente de Altamira e desvia outra parte para um segundo reservatório, um canal artificial que leva as águas que deveriam correr pela Volta Grande do Xingu para a casa de força principal, onde movimentam as turbinas e geram energia. Do ponto de vista dos moradores da Volta Grande, nada mais exato do que dizer que Pimental cortou o rio, porque são eles que ficam sem as águas.

Com a decisão sobre a renovação da licença de operação na mesa, o governo federal poderá finalmente respeitar os pareceres técnicos, levar em consideração as dezenas de cientistas que acompanham os impactos da implantação da usina, evitar as pressões políticas e econômicas e atender aos pedidos dos eleitores do Xingu, corrigindo os inúmeros problemas provocados pela hidrelétrica e também transformando em realidade o discurso sobre a proteção da Amazônia.

“A gente não pode mais brincar com questões ambientais, muito menos com questões socioambientais. A gente fala o tempo todo do papel que essas comunidades tradicionais têm na conservação ambiental, a importância que elas têm para o conhecimento do que ocorre na região, para a geração de conhecimento e para o compartilhamento de recursos naturais, para formas de viver que sejam sustentáveis para o ecossistema amazônico. Mas tudo que temos feito são intervenções que põem isso em xeque, que desestabilizam completamente o ecossistema e a vida dessas comunidades. Já passou da hora, né, de a gente ter uma nova estratégia para esses empreendimentos na Amazônia”, alerta Jansen Zuanon, um dos maiores especialistas em ictiologia amazônica, professor aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e integrante de um observatório que reúne pesquisadores e moradores para monitorar os danos causados por Belo Monte no Xingu.

André Sawakuchi, geólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e também integrante do observatório de pesquisadores, alerta sobre a necessidade de uma compreensão mais atual do desmatamento para que o Brasil esteja afinado com o debate global sobre a crise climática:

“A destruição das florestas aluviais também é um tipo de desmatamento. O que a gente tem que pesar nessa discussão sobre Belo Monte é quanto mais de biodiversidade vamos estar dispostos a sacrificar para gerar energia. Vale a pena a destruição de todos esses ecossistemas e das florestas, sem falar na perda de culturas ribeirinhas e indígenas? A Volta Grande ainda tem solução, ainda poderemos salvar se garantirmos em primeiro lugar a vida dos ecossistemas e das comunidades. Mas precisamos decidir o que vamos sacrificar”.

Pela legislação brasileira, a licença de operação deveria ser concedida quando as condicionantes das licenças anteriores – prévia e de instalação – estivessem totalmente cumpridas. Condicionantes, como o nome diz, são o que condiciona. No caso de Belo Monte, elas não condicionaram. Tanto o MPF quanto organizações da sociedade civil, como o Instituto Socioambiental (ISA), afirmam que até hoje há pendências das licenças anteriores. O descumprimento das condicionantes provoca danos trágicos na vida das pessoas e nos ecossistemas da região. As falhas no licenciamento, deliberadas ou não, foram cruciais para fazer com que a região de Altamira fosse a mais desmatada da Amazônia na última década.

Ao analisar o último parecer técnico do Ibama, emitido no fim de junho de 2022, o ISA fez uma avaliação do status de atendimento de 47 condicionantes socioambientais da licença de operação. Os dados, aos quais SUMAÚMA teve acesso com exclusividade, mostram que dessas obrigações o Ibama considera que a Norte Energia atendeu apenas 13.

Em resumo: depois de todas as licenças concedidas e de sete anos de operação da usina, apenas 13 das 47 medidas que deveriam ter sido cumpridas na íntegra foram efetivamente concluídas. Outras 21 ainda estão sendo implementadas, oito foram parcialmente atendidas e há duas condicionantes que nem sequer começaram a ser executadas. Além disso, nove condicionantes ainda não foram analisadas, entre as quais aquela que provavelmente é o maior dilema do complexo hidrelétrico: a partilha da água do Xingu, para garantir a vida dos ecossistemas da Volta Grande.

Entre as condicionantes consideradas não atendidas e com pendências, segundo o parecer do Ibama, estão a do reassentamento das populações atingidas, a do saneamento básico de Altamira e a das medidas de compensação e mitigação para populações tradicionais da região devido à perda da atividade da pesca. Essas condicionantes interferem diretamente na qualidade de vida de milhares de moradores da região.

Emitir as licenças de Belo Monte sem que as condicionantes tenham sido cumpridas significa uma violação explícita da legislação, com graves consequências para a floresta, seus povos e os moradores de Altamira. Com a decisão sobre a renovação da licença de operação, Lula e Marina Silva vão mostrar se o governo continuará aceitando o descumprimento da lei e permitindo graves danos ambientais e humanos na Amazônia – ou se as condicionantes finalmente vão condicionar.

Em nota enviada a SUMAÚMA, a Norte Energia afirmou que “não há condicionante não cumprida. As condicionantes estão atendidas ou em atendimento. Esse acompanhamento é feito regularmente pelo órgão licenciador, o Ibama”. O Ibama, por sua vez, afirmou à reportagem que “há obrigações pendentes, em execução e já cumpridas pela Norte Energia”. Destacou também que “foram solicitadas informações complementares” à empresa e “feitas recomendações para adequação dos empreendimentos às diretrizes do licenciamento”. Para uma manifestação conclusiva sobre o atendimento das condicionantes da licença de operação, o Ibama afirma estar esperando a finalização das análises da equipe técnica.

Pescadores estão há sete anos sem peixes – e sem energia

É fácil entender por que a pesca era uma das principais atividades econômicas nos municípios atingidos por Belo Monte – Altamira, Vitória do Xingu, Senador José Porfírio, Brasil Novo e Anapu. “O Xingu era nossa mãe”, dizem muitos pescadores da região sempre que precisam falar sobre como a usina afetou a vida deles. Agora não mais. O impacto das barragens sobre a pesca foi negado por muitos anos pelas autoridades e pela Norte Energia com base em metodologias de mensuração muito questionadas por cientistas. Finalmente, esse impacto foi reconhecido oficialmente pelo Ibama em 2019.

No Pará, o MPF, que já ajuizou 29 ações judiciais que questionam o licenciamento e os impactos da usina, afirma que não existem mais controvérsias a respeito dos graves danos causados pelo barramento do Xingu aos estoques de peixes e à atividade pesqueira na região. O alagamento dizimou as florestas de igapó na área do reservatório e o desvio da água na região da Volta Grande do Xingu inviabilizou a desova e a alimentação das espécies de peixes, reduzindo drasticamente os rendimentos dos pescadores.

Finalmente, a própria Norte Energia reconheceu os danos no ano passado e convocou cerca de 2 mil pescadores para que se cadastrassem e recebessem a quantia de 20 mil reais pelos danos. A proposta gerou revolta principalmente pelo valor, irrisório diante de sete anos de perdas econômicas, pelo baixo número de pescadores reconhecidos (estima-se que possam chegar a 7 mil) e pela exigência do registro de pescador, inacessível sobretudo para ribeirinhos e indígenas que vivem da pesca de subsistência.

Mesmo assim, convocados pela empresa a comparecerem, em ordem alfabética, a uma escola no centro de Altamira, pescadores de várias comunidades distantes se dirigiram até lá no primeiro dia de cadastro, 16 de janeiro. Muitos deles contaram que estavam passando fome e vivendo de doações, sem energia elétrica por falta de dinheiro para pagar as contas. Relataram também o desaparecimento de muitas espécies de peixe, as mais apreciadas e de maior valor comercial, como pacu-de-seringa, matrinxã e curimatá. As perdas econômicas se acumulam e são severas em uma região em que, alguns anos atrás, a pesca garantia uma vida confortável e autonomia a pescadores, ribeirinhos e indígenas.

A empresa não permitiu que a imprensa acompanhasse o primeiro dia do cadastro, mas, do lado de fora, falamos com Orlando de Oliveira Queiroz, um dos moradores mais antigos da região da Volta Grande. Ele aguardava sua mulher, que havia entrado para se cadastrar. “Para nós, que somos nascidos e criados aqui, acabou tudo”, desabafou. “Acabou o rio, o paredão desgraçou o resto, e ainda querem fazer mais sete paredões lá para baixo, para prender água.”

Ele, que numa terra de tantos pescadores mereceu o apelido de Orlando Pescador, se referia a um projeto apresentado pela Norte Energia ao Ibama que, mais uma vez, ameaça a população de expulsão. A proposta prevê as chamadas “soleiras”, barragens menores, num total de sete, que supostamente reduziriam os danos provocados pelo desvio das águas da região da Volta Grande. Pelo projeto, as soleiras criariam áreas de alagamento, permitindo a alimentação dos peixes e a reprodução da vida aquática nas florestas de igapó, mas o próprio Ibama já disse que elas não serviriam para essa finalidade. Orlando Pescador ainda não sabe, mas, como mora muito perto da área onde seriam construídas as soleiras, ele poderá ser removido compulsoriamente da ilha onde vive há mais de 40 anos. Caso o Ibama aprove as sete novas barragens, o projeto prevê a expulsão de sete famílias da região.

Em agosto de 2022, durante uma audiência pública, o pescador Raimundo Gomes, conhecido como Raimundo Berro Grosso, disse ter passado por tantas dificuldades que ficou com problemas de saúde: “Em primeiro lugar, nós precisamos ser vistos por esses órgãos públicos como seres humanos. Eu vivo a minha vida inteira no rio Xingu e hoje não posso mais pescar porque o rio acabou. A Norte Energia acabou com nossas espécies, acabou com nossas ilhas e praias, acabou com nosso lazer e depois acabou com os pescadores. Nós precisamos, sim, que as autoridades se levantem do banco e obriguem a Norte Energia a pagar o que nós temos por direito. Pais de família estão no escuro, cozinhando com pontas de tábua [pedaços de madeira, lenha], porque não conseguem pagar a energia nem o gás. Tem gente que está há mais de um ano sem energia”.

Em nota, a Norte Energia nega ter mudado de posição a respeito dos impactos de Belo Monte sobre a pesca. Diz que os impactos à ictiofauna estavam previstos e que realiza ações de mitigação voltadas aos pescadores desde 2017, “quando, em seminário técnico com o órgão ambiental [Ibama], ficou definido que, para realização mais assertiva das mitigações e compensações propostas, fazia-se necessário um levantamento detalhado da categoria e cadeia de pesca na área de influência do empreendimento”. A empresa alega que foi a partir desse cadastro que chegou ao quantitativo de 1.976 pescadores para o recebimento de indenizações. Na mesma nota, a Norte Energia reconhece que, depois de um parecer do Ibama, foi obrigada a pagar a verba de reparação pelas perdas na pesca e que o valor proposto “leva em conta o valor equivalente ao seguro-defeso pago pelo governo no período de piracema, quando é proibida a pesca”.

O valor da conta de luz cobrado pela concessionária Equatorial Energia, que explora o serviço após a privatização da distribuição de energia elétrica no Pará, em 1998, é uma reclamação recorrente em todas as comunidades, urbanas e rurais. No RUC Laranjeiras, onde parte dos expulsos pela construção da hidrelétrica foi reassentada, as contas de luz chegam com valores de 120, 170 e até 200 reais, mesmo em casas em que só há um ventilador, uma geladeira, uma televisão e algumas lâmpadas. Ao lado de Belo Monte, expulsas por Belo Monte de suas casas e do rio, as vítimas da hidrelétrica pagam uma das contas de energia mais caras do país.

Em nota, a Equatorial Pará declarou que cada conta teria de ser analisada individualmente para explicar o valor. “No entanto, alguns fatores como fuga de energia e eletrodomésticos em mau estado de conservação podem contribuir para o aumento do consumo”, alegou.

Ribeirinhos sem rio

Só reconhecida em 2018 pelo Ibama, depois de muita pressão dos atingidos, a reparação integral à população ribeirinha do Xingu está longe de ser cumprida. Após a expulsão das famílias e diante da ausência de um modelo compatível de reassentamento destinado a elas, iniciou-se em 2015 um longo processo de reconhecimento dos impactos sobre o modo de vida dessa população tradicional. “Diálogos Ribeirinhos” foi o nome do espaço interinstitucional criado para encaminhar soluções com a participação de órgãos públicos e da Universidade Federal do Pará (UFPA). Em junho de 2016, o MPF lançou um pedido de apoio à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) para a realização de um estudo sobre as populações ribeirinhas expulsas do rio Xingu a fim de propor medidas de reparação fundamentadas, capazes de assegurar a reprodução de seu modo de vida. O resultado foi transformado no livro A Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte, organizado pelas antropólogas Manuela Carneiro da Cunha, professora emérita da Universidade de Chicago e professora-titular aposentada da Universidade de São Paulo, e Sônia Magalhães, uma das maiores estudiosas dos impactos de Tucuruí, vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia e professora da UFPA.

O efeito mais importante desse movimento foi a criação do Conselho Ribeirinho, um espaço de organização própria das comunidades para pressionar pelo reconhecimento de seus direitos e pelo retorno aos beiradões do Xingu. Encontramos Rita Cavalcante, uma das conselheiras, na fila do cadastro de pescadores no dia 16 de janeiro. Apesar da inicial de seu nome ser R, ela havia comparecido na data destinada aos nomes iniciados pela letra A. Tinha recebido na véspera um telefonema de um funcionário da Norte Energia que lhe pediu que representasse o marido, Alberto Benício da Silva. O ribeirinho morreu três anos atrás, sem ver nem o reassentamento no beiradão nem a indenização pelos danos à pesca.

Uma geração de crianças ribeirinhas já se tornou adolescente nas periferias de Altamira, crescendo apartada do rio e exposta a todo tipo de violência. É importante lembrar que parte significativa das famílias ribeirinhas foi expulsa do rio Xingu por um processo em que chefes de família assinaram com o dedo papéis que não eram capazes de ler, sem assistência jurídica garantida pelo Estado e sob forte coerção da empresa e seu plantel de advogados. A Defensoria Pública da União só chegou a Altamira em janeiro de 2015, quase no fim dessa manobra, caracterizada pela violação de direitos básicos, e depois da pressão do MPF.

“Nós chegamos a ser ameaçados para sair do nosso local no Xingu”, diz a conselheira Rita, que lembra o momento em que uma balsa contratada pela Norte Energia percorreu as ilhas e margens do Xingu com máquinas para derrubar e incendiar as casas dos ribeirinhos. Ela era chamada de balsa da demolição pelos moradores, que assistiam apavorados a sua movimentação pelo rio. “Depois de toda a luta, ainda estamos esperando para voltar para a beira do rio”, conta. “A empresa faz questão de dizer para todo mundo que nada pode ser feito, aumenta as dificuldades, assusta mesmo, e muita gente desistiu do direito ao território ribeirinho por causa disso.”

SUMAÚMA questionou a Norte Energia sobre a situação dos ribeirinhos. A empresa diz que eles já foram atendidos pelos reassentamentos na área urbana de Altamira: “O retorno destas famílias ribeirinhas para as margens do reservatório é resultado do diálogo da empresa com o MPF, Conselho Ribeirinho e outros intervenientes, e faz parte de um rol de compromissos assumidos pela Norte Energia em atendimento ao processo de licenciamento ambiental. Assim, em respeito e atenção no que tange ao conceito deste modo de vida tradicional com dupla moradia, sendo uma delas na beira do rio, na relação direta com a pesca artesanal, com as atividades de subsistência e com o extrativismo, a Norte Energia está realizando o processo de retorno das famílias ribeirinhas para pontos localizados na área de preservação permanente (APP) do reservatório, com acompanhamento do Ibama e também do conselho comunitário de ribeirinhos e seu respectivo grupo de apoio”. A empresa afirma, ainda, que aguarda a emissão da Declaração de Utilidade Pública (DUP), instrumento jurídico que viabiliza a compra de áreas para o assentamento das famílias nos beiradões do rio.

O Ibama discorda do número de reassentados informado pelo Conselho Ribeirinho e informa que já foram reassentadas 121 famílias no entorno do reservatório do Xingu. “Providências para o reassentamento das 201 famílias restantes estão em curso, porém sem data prevista para conclusão da ação”, diz, a nota da assessoria de imprensa do órgão licenciador.

Desmatamento recorde nas terras indígenas

O nome técnico de todo o capítulo do licenciamento que se refere aos povos indígenas afetados por Belo Monte é “componente indígena”. E sua análise depende da Fundação dos Povos Indígenas. Renovar ou não a licença de operação de Belo Monte será um grande desafio para a primeira presidenta indígena da Funai, Joenia Wapichana, e para o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara.

Um exemplo é a condicionante que tratava da proteção territorial das terras indígenas atingidas, determinada ainda na fase de licença prévia, para evitar a invasão e a devastação dessas áreas. A Norte Energia foi obrigada pela Justiça Federal a construir as bases de vigilância que evitariam as invasões, mas só entregou parte das estruturas em 2016. Para prevenir conflitos e invasões nas terras indígenas, os postos de proteção deveriam estar em funcionamento antes do começo das obras da hidrelétrica, mas parte deles só ficou pronta quando a usina já estava operando. O atraso está diretamente relacionado à intensa pressão de grileiros, madeireiros e garimpeiros sobre os territórios afetados por Belo Monte. Nos últimos anos, Cachoeira Seca, do povo Arara, Trincheira Bacajá, do povo Xikrin, Apyterewa, do povo Parakanã, e Ituna Itatá, de povos isolados, colecionaram recordes ao se tornarem as terras indígenas mais desmatadas do Brasil. Nos casos de Cachoeira Seca e Ituna Itatá, a negligência na proteção territorial é ainda mais grave: até hoje as bases de proteção desses territórios não foram construídas pela Norte Energia.

Em relatório técnico divulgado com exclusividade por SUMAÚMA, a Rede Xingu +, que acompanha o desmatamento em toda a bacia xinguana, afirma que as terras indígenas sob influência de Belo Monte foram as mais desmatadas de toda a Amazônia nos sete anos em que a usina está operando. Em 2019 e 2020, os dois primeiros anos do governo Bolsonaro, com o clima de liberou geral que se espalhou pela região, o desmatamento cresceu ainda mais em todo o bioma. Mas em quatro terras indígenas impactadas por Belo Monte ele foi maior do que nos outros 311 territórios: justamente Apyterewa, Ituna Itatá, Cachoeira Seca e Trincheira Bacajá, todas na área de influência da hidrelétrica.

No diagnóstico da Xingu +, a devastação começou a aumentar em 2015, antes mesmo da licença de operação, por causa da desmobilização do canteiro de obras da usina. Era um impacto previsto e que deveria ter sido contido. Com o desaparecimento dos empregos, muitas pessoas que tinham vindo de diversas partes do Brasil para buscar trabalho na usina passaram a recorrer a atividades ilegais na região para sobreviver. Por isso haviam sido previstas as ações de proteção territorial que a Norte Energia demorou anos para cumprir e mesmo assim entregou incompletas. Também era necessário finalizar as ações de regularização fundiária de todas as terras afetadas e a desintrusão (retirada de invasores) das que já estivessem invadidas. Nada disso aconteceu. Em consequência, vieram anos de devastação. Somente em 2019, 30 mil hectares de floresta foram derrubados nas quatro terras indígenas mais desmatadas. “Para se ter uma dimensão da magnitude do desmatamento nessas TIs, em específico, esse total representa 61% de todo o desmatamento das Áreas Indígenas da Amazônia Legal”, diz o relatório.

A Terra Indígena Cachoeira Seca deveria ter passado por desintrusão, com a retirada dos invasores ilegais e o reassentamento dos chamados “ocupantes de boa-fé”. Entre eles há ribeirinhos que estão lá desde o início do século 20 e moradores que chegaram à região atendendo a uma convocação do Estado, durante a construção da Transamazônica pela ditadura. O governo federal deveria ter feito isso antes de liberar a operação da usina, mas até agora nada aconteceu. “Sem a desintrusão, ao invés de redução do desmatamento no território do povo Arara, esse continuou a subir. Segundo dados do Prodes [sistema de detecção de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe], em 2017 o desmatamento na TI aumentou 24%. Nos três anos que se seguiram, o total desmatado na Cachoeira Seca –18,7 mil hectares – foi maior do que todo o desmatamento da década anterior, que tinha alcançado 18 mil hectares. Somente no ano de 2020, foram desmatados mais de 7 mil hectares na TI”, informa o relatório.

A Terra Indígena Apyterewa também deveria ter passado pela retirada de invasores antes que a usina começasse a funcionar. Essa promessa foi feita aos indígenas Parakanã na época dos estudos sobre a usina, mas jamais foi cumprida. Resultado: o desmatamento aumentou 237% nos anos de 2017 e 2018 – e 350% em 2018 e 2019. Para a Rede Xingu +, o desmatamento no território encontra-se atualmente fora de controle. “Somente em setembro de 2021, o desmatamento na Apyterewa registrou 2.480 hectares. Essa é a maior taxa já detectada na TI na última década. Em 2022, o desmatamento não arrefeceu, e até agosto já foram somados mais de 6,2 mil hectares de supressão de vegetação na TI”, afirma o documento.

A Terra Indígena Ituna Itatá é território de povos isolados e houve grande pressão, inclusive política, pela desinterdição da área, protegida por uma portaria de Restrição de Uso. Em 2022, foi necessária uma decisão judicial para obrigar o então presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, a renovar a portaria. A área fica a apenas 45 quilômetros de distância da barragem de Belo Monte e sofreu uma pilhagem de seus recursos florestais: aumento de 295% do desmatamento nos anos de 2015 e 2016 – e de 478% nos anos de 2016 e 2017. “Mas foi em 2019 que a invasão e o desmatamento na TI fugiram de controle, quando foram derrubados quase 12 mil hectares de floresta”, diz o relatório. Após operações coordenadas das equipes de fiscalização do Ibama, o desmatamento caiu em 2020, porém em 2021 e 2022 voltou a crescer.

Na Terra Indígena Trincheira Bacajá, 60% de todo o desmatamento registrado ocorreu entre 2017 e 2021. A partir da licença de operação de Belo Monte, a devastação nesse território do povo Xikrin começou a crescer, indo de zero a 4 mil hectares de vegetação suprimida. “Em 2019, ano com o maior índice de desmatamento, mais de 3,4 mil hectares de floresta foram destruídos”. Depois que as imagens do genocídio Yanomami chocaram o Brasil, em decisão de 30 de janeiro, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, ordenou que o governo federal retirasse garimpeiros de sete terras indígenas na Amazônia, atendendo a pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Entre as terras que deverão ser beneficiadas pela desintrusão está a Trincheira Bacajá.

Ao reconhecer que o governo federal desrespeitou os direitos indígenas por não realizar as consultas prévias, livres e informadas previstas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, o STF proferiu uma decisão histórica: a primeira da corte superior sobre as consultas prévias em Belo Monte. “Não se sustenta o argumento do Ibama, igualmente sustentado pela União, de que o empreendimento não se localiza em terras indígenas, pois, […] mostra-se inegável que, embora o empreendimento em si não esteja totalmente localizado em áreas indígenas, os seus impactos – os quais abrangem área muito superior à do próprio empreendimento – indiscutivelmente abrangeram terras indígenas”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes.

Em resposta aos questionamentos de SUMAÚMA sobre o papel de Belo Monte no crescimento da devastação florestal, a Norte Energia limitou-se a “esclarecer que a supressão de vegetação realizada para a construção da UHE Belo Monte corresponde a 0,04% da área total da bacia do rio Xingu e 0,0045% da Amazônia Legal”. Sobre o atraso na construção das unidades de proteção territorial que deveriam proteger as terras indígenas atingidas pela usina, a empresa confirmou que oito estão em funcionamento e outras três, nas terras indígenas Ituna Itatá, Koatinemo e Cachoeira Seca, “sofreram atrasos devido a questões de segurança naquelas regiões”. E que a partir de outubro de 2022, com o acompanhamento da Funai e da Força Nacional de Segurança, iniciou a construção dos postos de proteção de Ituna Itatá e Koatinemo, mas ainda aguarda autorização para iniciar as obras na Cachoeira Seca. Impossível não notar a ironia: segundo a empresa, conflitos fundiários nas terras indígenas impediram a construção dos postos de proteção que, de acordo com os estudos de impacto ambiental, deveriam ter sido feitos antes das obras da usina para evitar, justamente, conflitos fundiários.

Como o majestoso Xingu se tornou a caixa-d’água particular de Belo Monte

A Volta Grande do Xingu é um trecho de aproximadamente 130 quilômetros abaixo da cidade de Altamira em que o rio faz uma curva pronunciada de 90 graus, formando o que era, antes de Belo Monte, um cenário deslumbrante de ilhas, praias, pedrais e florestas de igapó. Havia um intenso movimento de canoas de seus muitos habitantes, indo e voltando da cidade, onde vendiam os excedentes da pesca, sempre abundante, e os produtos da roça, principalmente a farinha de mandioca, base alimentar de grande parte das comunidades amazônicas. A Volta Grande é também lar de várias comunidades ribeirinhas e indígenas: os três maiores povos em territórios demarcados e homologados são os Arara da Volta Grande, os Yudjá (Juruna), da Terra Indígena Paquiçamba, e os Xikrin, da Trincheira Bacajá. Por suas características ecológicas ímpares, a Volta Grande conformou, por séculos, um conjunto de ecossistemas singulares, produzindo espécies endêmicas (que só existem lá), como o acari-zebra, e sociedades indígenas e ribeirinhas que, até a construção de Belo Monte, viviam em consonância com o pulso de inundação (ritmo anual de enchente e seca) do rio Xingu.

Desde 2015, o delicado equilíbrio de tanta vida foi rompido – ou cortado, como dizem os moradores da Volta Grande. Quando a barragem principal de Belo Monte, a de Pimental, foi definitivamente fechada, em novembro daquele ano, data da concessão da licença de operação, seguiu-se uma série de eventos dramáticos para o equilíbrio do ecossistema e a vida das comunidades da região. O primeiro foi a chacina de mais de 55 mil espécimes (16 toneladas) de peixes, segundo cálculo do Ibama, constatada logo nas primeiras semanas após o fechamento da barragem. Alguns tinham sido triturados na força excessiva das águas movidas pelas turbinas. Outros ficaram sem oxigênio, presos em poças de água quente na região da Volta Grande, de onde a água foi desviada em grande quantidade. E isso tudo ocorreu exatamente no período reprodutivo das espécies, quando elas buscavam locais de alimentação e desova.

O Ibama multou a Norte Energia em 27 milhões de reais por essa mortandade. Mesmo assim, no ano seguinte, outros 23.260 espécimes de peixes morreram na época em que deveria ocorrer a enchente do Xingu. Em 2021, o MPF calculou que mais de 85 mil espécimes (24 toneladas) de peixes tinham morrido por causa de Belo Monte de novembro de 2015 até dezembro de 2018, com base em autos de infração emitidos pelo Ibama. No total, essas multas podem alcançar o valor de 70 milhões de reais – elas estão sendo cobradas em uma ação judicial que segue em tramitação na Justiça Federal em Altamira.

No início da noite de 26 de janeiro de 2016, uma enxurrada artificial produzida pela usina varreu, sem aviso, as margens da Volta Grande do Xingu, levando embarcações, motores, apetrechos de pesca, roupas e louças que estavam na beira do rio, seguindo o hábito secular das comunidades. O impacto foi o mesmo de um evento extremo, hoje cada vez mais comum devido ao agravamento da crise climática. Naquele caso, porém, a causa foi a súbita liberação de uma grande quantidade de água pelos administradores da usina – e sem que nenhum aviso fosse dado.

Os prejuízos foram grandes, mas o medo foi maior. Os moradores passaram a temer a beira do rio e proibiram as crianças de tomar banho e brincar em suas águas. Houve registro de nuvens de mosquitos, chamados de carapanãs no Pará, que obrigavam as famílias a fazer refeições em cima da cama, debaixo de um mosquiteiro. As águas, antes familiares, se tornaram imprevisíveis, ora subindo, ora descendo. O Xingu, pai e mãe daqueles povos indígenas e tradicionais, se transformou num estranho. Foram tantas e tão intensas as mudanças que até hoje 2016 é conhecido na Volta Grande como “o ano do fim do mundo”.

Chamar de fim do mundo pode soar hiperbólico, mas, para comunidades que tinham modos de vida em total sintonia com os ciclos de enchente, cheia, vazante e seca próprios dos grandes rios de pulso da Amazônia, essa é uma descrição exata. Elas passaram a viver em seca permanente desde que 70% das águas que banhavam a Volta Grande foram desviadas para fazer girar as turbinas da hidrelétrica. No verão amazônico (de maio a outubro), período da vazante, quando as vazões médias históricas do Xingu são de 2 mil metros cúbicos de água, a mudança é menor. Mas no inverno amazônico (de novembro a abril), período que deveria ser de cheia, as vazões médias históricas são de 20 mil metros cúbicos, podendo chegar a 25 mil metros cúbicos. Esse era o momento em que os peixes adentravam a Volta Grande em busca de centenas de refúgios nas florestas de igapó, que iam aos poucos se alagando e permitindo o acesso a uma abundância de frutos. Protegidos de predadores, nos recônditos das ilhas e margens da região, eram locais ideais para a desova. Esses refúgios são chamados pelos moradores de piracemas.

“Normalmente, quando a gente fala em piracema no Brasil, se refere ao movimento ascendente que os peixes fazem para desovar nas cabeceiras dos rios, uma estratégia para que os indivíduos mais jovens possam se espalhar ao longo de todo o curso do rio. No caso do Xingu, naquele trecho, que tem muitas corredeiras e cachoeiras, os peixes estão o tempo todo em movimento, e de fato os ribeirinhos se referem às piracemas como uma combinação de espaço e tempo. É um momento em que as águas sobem e os peixes fazem esse movimento de subida, mas não em direção às cabeceiras do rio, e sim à procura desses locais recentemente inundados, perfeitos para a desova”, explica o cientista Jansen Zuanon. Hoje, a maior parte das piracemas não serve mais de refúgio, e, desde que a barragem de Pimental fechou definitivamente a correnteza do Xingu para a Volta Grande, isso praticamente acabou com a reprodução das espécies na região.

A principal medida proposta pela Norte Energia para mitigar os impactos da redução da vazão foi chamada de “hidrograma de consenso”. Mas, apesar do nome, nunca houve qualquer consenso. Pelo contrário, as populações atingidas, tanto quanto os cientistas que dão consultoria ao MPF, jamais concordaram com a divisão desigual da água – algo incompatível com a reprodução do modo de vida de humanos e não humanos. A previsão do licenciamento era liberar 4 mil metros cúbicos de água em um ano e 8 mil metros cúbicos de água no ano seguinte, o que submeteria a vida na região a um estresse hídrico considerado insustentável.

Ao analisar os documentos do licenciamento de Belo Monte, o MPF descobriu que os técnicos do Ibama discordaram frontalmente do hidrograma proposto pela Norte Energia. Um parecer do Ibama de 2009, anterior à emissão da licença prévia, trazia o alerta de que a quantidade de água prevista para ser mantida na área era insuficiente para a continuidade da vida. “Não há clareza quanto à manutenção de condições mínimas de reprodução e alimentação da ictiofauna, quelônios e aves aquáticas, bem como se o sistema suportará esse nível de estresse a médio e longo prazos. A proposta do Hidrograma de Consenso não apresenta segurança quanto à manutenção do ecossistema para o recrutamento da maioria das espécies dependentes do pulso de inundação, o que poderá acarretar severos impactos negativos, inclusive o comprometimento da alimentação e do modo de vida das populações da Volta Grande”, afirma o documento. Mas os técnicos do Ibama foram totalmente ignorados na emissão da licença pela direção do instituto, então presidido por Roberto Messias Franco. A proposta feita pela empresa foi acatada integralmente, numa decisão política do Ministério do Meio Ambiente, comandado na época por Carlos Minc.

Durante os anos de instalação e operação da usina, o esquema hidrológico aplicado foi o chamado “hidrograma B”, que permite a liberação de 8 mil metros cúbicos de água por segundo para a Volta Grande durante as cheias. Isso significa que, quando o Xingu atinge sua vazão máxima, com 20 mil metros cúbicos de água por segundo, a maior parte da água vai para as turbinas e os ecossistemas e comunidades permanecem em um regime de seca, com no máximo 8 mil metros cúbicos de água por segundo.

Para o geólogo André Sawakuchi, a forma como foi feita a partilha inverte as prioridades: entre a biodiversidade e a geração de energia, optou-se por sacrificar a biodiversidade e as florestas de igapó, o que também é um tipo de desmatamento. A constatação não é banal e tem efeitos jurídicos, já que o pilar do direito constitucional para um meio ambiente equilibrado é o princípio da precaução, que determina que a proteção ambiental deve ser sempre priorizada.

Esse entendimento foi confirmado por parecer do Ibama de dezembro de 2019. A equipe técnica atestou a gravidade dos impactos sobre a Volta Grande e considerou que não seria possível manter a região com apenas 8 mil metros cúbicos de água por segundo, pelo menos enquanto não houvesse segurança de que as comunidades e os ecossistemas pudessem sobreviver ao regime artificial das águas.

No parecer 133/2019, o Ibama declarou a “inviabilidade” dos hidrogramas A e B, pediu estudos complementares e determinou a aplicação do chamado “hidrograma provisório”, que previa a liberação de quantidades mínimas de água maiores do que as que constavam nos hidrogramas anteriores, até que fossem realizados estudos complementares que demonstrassem qual era, afinal, a quantidade de água necessária para garantir o alagamento de florestas, a alimentação e a reprodução da fauna aquática — sistemas cruciais para a sobrevivência de toda a região e a manutenção dos modos de vida indígenas e ribeirinhos. O hidrograma provisório foi aplicado de abril de 2020 a fevereiro de 2021, mas o alívio durou pouco. Mais uma vez, como se revelou tão comum no licenciamento de Belo Monte, a conclusão da equipe técnica não foi respeitada.

Em fevereiro de 2021, o então presidente do Ibama, Eduardo Bim, permitiu a continuidade do hidrograma B até que fossem realizados estudos complementares. Em troca da água que garantiria a vida, o Ibama assinou um Termo de Compromisso Ambiental com a Norte Energia que previa a execução de uma série de medidas adicionais de mitigação e compensação dos impactos em favor das comunidades da Volta Grande. Essa decisão manteve a Volta Grande sem água suficiente por mais dois anos. Os estudos complementares foram apresentados, rejeitados, refeitos e, entre essas idas e vindas, foram finalmente concluídos em 2022. Aguarda-se para as próximas semanas um parecer final sobre eles da equipe técnica do Ibama.

Ao mesmo tempo, o dilema sobre a partilha da água do Xingu chegou aos tribunais. O MPF obteve decisões favoráveis da Justiça Federal em Altamira e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que ordenaram que a água liberada pela usina garantisse a sobrevivência da Volta Grande. O presidente do TRF-1 na época era Ítalo Mendes. Ele suspendeu a decisão. O MPF recorreu, mas ainda não houve avanços no processo. Hoje, o volume de água sequestrado pela usina impede comprovadamente a sobrevivência de grande parte da fauna aquática e compromete seriamente a vida de populações tradicionais.

A SUMAÚMA, a Norte Energia disse que “a afirmativa sobre chacina de peixes e multas não é verdadeira e o tema está sendo discutido judicialmente em busca da prova da verdade dos fatos”. A empresa se refere a duas ações judiciais movidas pelo MPF em que está sendo processada tanto pela mortandade dos peixes quanto pelos prejuízos aos pescadores. Os processos tramitam na Justiça Federal de Altamira.

Sobre a enxurrada artificial que varreu a Volta Grande do Xingu em janeiro de 2016, a empresa se limitou a dizer que, “ao tomar conhecimento sobre a ocorrência à época, se manifestou junto ao Ibama e às comunidades, tendo sido tomadas as providências cabíveis”, mas não detalhou, apesar de ter sido questionada especificamente sobre indenizações pelos danos aos moradores, quais providências teriam sido essas.

E finalmente, sobre o desvio das águas da Volta Grande, a empresa afirmou que “não estabeleceu ou definiu os hidrogramas de operação da usina” e que essa decisão partiu do Ibama, “baseado em estudos técnicos e ecológicos, visando assegurar a manutenção da qualidade da água, da conservação da ictiofauna, da vegetação aluvial, dos quelônios, da pesca e da navegação, além dos modos de vida da população na região”. “A empresa desconhece dados realmente científicos sobre danos e suas causas, e não tem conhecimento de crise humanitária sobre a população da sua área de influência direta, em razão da operação da Usina”, afirmou a Norte Energia.

Já o Ibama informou que a equipe técnica se dedica no momento a avaliar a situação da Volta Grande do Xingu para “subsidiar uma possível tomada de decisão da instituição licenciadora sobre a aplicabilidade do ‘Hidrograma de Consenso’ [as aspas são do próprio Ibama], proposto no EIA”. Os técnicos avaliam os estudos complementares entregues pela concessionária de Belo Monte sobre a dinâmica de alagamentos da região, sobre os ecossistemas e sobre os impactos socioeconômicos aos moradores. Mas a assessoria não informou se há previsão para a conclusão dessas análises técnicas.

A última chance do Xingu – e de seus povos

A maioria dos direitos das dezenas de milhares de atingidos por Belo Monte foi arrancada com muita luta. Sem as manifestações dos indígenas e ribeirinhos da Volta Grande, não haveria o sistema de transposição de embarcações nem a ponte sobre o canal de derivação que garante o acesso ao Xingu por estrada na região da Terra Indígena Paquiçamba. Sem a pressão dos moradores dos bairros Independente I e Independente II, eles não teriam sido reconhecidos como atingidos e reassentados, talvez estivessem até hoje com as casas debaixo d’água. Sem a pressão da SBPC, do MPF e dos ribeirinhos, os direitos deles como comunidades tradicionais não teriam sido considerados e o território ribeirinho não teria sido previsto pelo Ibama. Sem as brigas dos indígenas da cidade, a construção de um bairro mais adaptado ao seu modo de vida, o Tavaquara, não teria ocorrido.

A catástrofe ambiental e humanitária da Volta Grande do Xingu é mais um capítulo em que a mobilização dos atingidos pode ser crucial. Em agosto de 2022, foi protocolado no Ibama um primeiro resultado do trabalho conjunto de pesquisadores indígenas, ribeirinhos e acadêmicos com uma avaliação técnica independente em relação às informações prestadas pela Norte Energia. O parecer, feito pelo MPF, propõe uma série de medidas que, se adotadas, poderão salvar os ecossistemas e as comunidades da região.

A proposta recebeu dos ribeirinhos o nome esperançoso de “Hidrograma das Piracemas”. A ideia é aplicar um hidrograma provisório ajustado para a Volta Grande, enquanto são realizados estudos adicionais, e criar um grupo multidisciplinar, com representantes das comunidades indígenas e ribeirinhas, para elaborar um hidrograma socioecológico da Volta Grande que assegure a viabilidade dos ecossistemas e modos de vida das populações e também a produção de energia por Belo Monte. Enquanto esses estudos são feitos, os moradores e cientistas pedem ao Ibama que respeite as fases de enchente e vazante do rio.

Trata-se, portanto, de inverter a lógica sob a qual Belo Monte operou desde que foi concebida e adotar um ponto de vista de proteção das riquezas socioculturais e ecológicas da região. “Até agora foi calculado de quanta água Belo Monte precisa para gerar energia e apenas o que sobra vai para a Volta Grande”, resume o cientista André Sawakuchi. “Se fosse realmente um projeto para reduzir as perdas da biodiversidade, a lógica precisaria ser o contrário disso. Teria que ser pensada qual é a quantidade mínima de água necessária para manter os ecossistemas e o excedente seria usado para gerar energia.” Para o geólogo, caso o Ibama e o governo concordem com as propostas de cientistas, ribeirinhos e indígenas, o Xingu terá uma chance. “Na área do reservatório da usina, as perdas já são irreversíveis. Na Volta Grande, ainda tem jeito”, afirma.

Não há reparação para os impactos produzidos por Belo Monte. Eles já ocorreram. Seus efeitos deixaram marcas em mais de uma geração de pessoas humanas e destruíram milhões de vidas não humanas, além de terem comprometido a existência em conexão da floresta, com danos que vão muito além dela. Como é sabido, os efeitos do que acontece na natureza não são circunscritos, eles produzem destruição em cadeia. Mas é possível – e constitucionalmente obrigatório – que novos impactos, alguns deles ainda mais destruidores, sejam finalmente barrados pelo governo e que as condicionantes que deveriam ter condicionado a construção e a operação da hidrelétrica sejam finalmente cumpridas.

Não é apenas a Volta Grande do Xingu que pode ter uma chance, mas também o legado de Lula e do PT na Amazônia.

 

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