“Onde está nosso processo de demarcação?”: indígenas da Bahia questionam governo federal quanto ao andamento da demarcação de suas terras

O MPI e a Funai prometem a povos indígenas da Bahia a emissão e assinatura da portaria declaratório ainda em abril deste ano

POR MAIARA DOURADO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

Os cantos e os maracás soaram forte nas salas e saguões dos prédios do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em Brasília. Na última semana, cerca de 70 representantes Tupinambá e Tumbalalá viajaram mais de 1800 km de seus territórios até Brasília a fim de reforçar um pedido que se prolonga há quase 15 anos: o avanço nos processos de demarcação de suas terras.

Ambos os povos aguardam a emissão da portaria declaratória, penúltima etapa antes da finalização do processo de demarcação. Tanto a Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença quanto a TI Tumbalalá já foram identificadas e delimitadas. Os relatórios circunstanciados de identificação e delimitação (RCID) das duas terras foram publicados em 2009, já tendo, de igual modo, passado pelo período de contestação. Desde então, os processos encontram-se paralisados.

Ambos os povos aguardam a emissão da portaria declaratória, penúltima etapa antes da finalização do processo de demarcação

Com o novo governo, a esperança é de que se dê, finalmente, andamento às demarcações, que agora assumem nova condução com a conformação de um ministério indígena. “Uma casa que foi construída por diversas mãos e preparada para que isso [as demarcações] pudesse avançar depois do período de escuridão que a gente passou no governo de Bolsonaro”, lembra Jaborandi Tupinambá, liderança do povo Tupinambá, em audiência com a ministra dos povos indígenas, Sônia Guajajara.

A reunião, que ocorreu na última terça-feira (21)  contou com representantes dos dois povos e teve como pauta principal a questão territorial dos Tupinambá e Tumbalalá. Para ambos, “é importantíssimo que neste momento a gente entenda onde está o nosso processo de demarcação”. O questionamento feito por Jaborandi se dá em razão da mudança da pasta ministerial, que passa a assumir a emissão das portarias declaratórias tão reclamadas e aguardadas por esses povos.

“É importantíssimo que neste momento a gente entenda onde está o nosso processo de demarcação”

A responsabilidade da publicação e assinatura da portaria que declara os limites das terras indígenas e marca o início do processo de demarcação passa a ser assumida pelo MPI, antes uma competência do Ministério da Justiça (MJ).

Segundo a ministra Sônia Guajajara, a mudança não afetará o rito de demarcação, e deve agilizar o seu andamento. “Ele [o processo de demarcação] vai continuar sendo o mesmo. A Funai faz um estudo de identificação de limitação como sempre foi, só que agora, ao invés de ele ir pro MJ ou o MJ assinar, ele vem para cá [MPI]. Aqui, a gente assina a portaria declaratória e aí devolve para Funai para fazer a demarcação física, para a gente encaminhar para a Casa Civil”, explica a ministra.

“Ele [o processo de demarcação] vai continuar sendo o mesmo”

Revisão dos processos

O novo cenário político com um ministério próprio, comprometido com as questões indígenas, leva esses povos a demandar ainda mais celeridade na regularização de suas terras.  “A minha pergunta é justamente se essas cartas [declaratórias] chegaram, se esses processos chegaram e se já está tendo esse avanço?”, interpela Jaborandi à ministra dos povos indígenas a respeito do andamento da demarcação de seus territórios.

Segundo a ministra, todos os processos em fase de emissão da portaria declaratória estão sendo revistos pela atual gestão da Funai, que nos últimos quatro anos, no governo de Jair Bolsonaro, trabalhou contra o direito dos povos indígenas. A finalidade da revisão é garantir a segurança jurídica dos processos de demarcação.

“A minha pergunta é justamente se essas cartas [declaratórias] chegaram, se esses processos chegaram e se já está tendo esse avanço?”

Para isso, “a Funai está fazendo a atualização desses processos que precisam vir para cá para ser assinado a portaria declaratória […]. O processo tem que vir qualificado, porque não adianta chegar aqui, passar para frente e chegar lá em cima [na Casa Civil] e voltar […]. Nós temos que chegar com esses processos inquestionáveis, de forma que eles não sejam devolvidos”, explica a ministra, que se comprometeu em atender o pedido de agilidade na emissão da portaria declaratória feito pelos povos da Bahia.

Demarcações paradas

Na reunião realizada com a equipe da Funai no dia seguinte ao encontro com a ministra, a informação dada aos indígenas era de que todos os pedidos de demarcação, em razão da política anti-indígena do último governo, estavam parados no órgão que tem por atribuição principal assistir os povos indígenas.

“O que aconteceu nesses últimos quatro anos é que todos os processos que estavam no Ministério da Justiça foram devolvidos para a Funai sob a alegação do parecer 001 da AGU, que vinculava como regra as condicionantes da Raposa Serra do Sol para tentar legalizar o marco temporal”, explicou Janete Carvalho, diretora de proteção territorial da instituição, que na ocasião respondia pela presidenta da Funai, Joenia Wapichana, que estava em viagem à Guatemala.

“O que aconteceu nesses últimos quatro anos é que todos os processos que estavam no Ministério da Justiça foram devolvidos para a Funai”

Mesmo suspenso em 2020 pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, o “parecer antidemarcação”, como assim ficou conhecido pelos indígenas, teve seu efeito de impedimento às demarcações das terras indígenas garantido por um outro parecer.

O parecer 763 também publicado pela Advocacia Geral da União (AGU) em 2020 pelo governo federal, proibiu a continuidade dos procedimentos administrativos de reconhecimento e demarcação das terras indígenas no Brasil. Uma medida que marcou a famigerada política de demarcação zero do governo Bolsonaro e que travou quaisquer procedimento administrativo que pudesse vir a demarcar territórios tradicionais.

No encontro com a ministra, lideranças Tupinambá e Tumbalalá cobraram não só a revogação do parecer 763, como também da normativa 09/2020, que autoriza a certificação de propriedades privadas sobrepostas a terras indígenas.

O parecer 763 proibiu a continuidade dos procedimentos administrativos de reconhecimento e demarcação das terras indígenas no Brasil

“A pergunta que nós ficamos é se quando a responsabilidade para a assinatura das portarias declaratórias muda do Ministério da Justiça para esta casa , se esse parecer [763] também acompanha. E se a gente precisa também revogar esse recurso”, questiona Ramon Tupinambá, cacique da aldeia Tukum, da TI Tupinambá de Olivença.

O compromisso da nova gestão da Funai é dar prosseguimento a todas as demarcações paralisadas nesses últimos anos. “Nossa primeira missão dada pela ministra e pela presidenta [da Funai] foi retomar todos os processos fundiários que estão parados. Todos”, frisou Janete. A ação implica na conferência de todos os pareceres jurídicos antes do reenvio ao MPI.

“A gente está tomando essas providências para evitar ao máximo novas contestações e novas judicializações que possam inviabilizar a continuidade do processo”, explica a diretora, a fim de justificar a lentidão na retomada dos procedimentos de demarcação.

“Nossa primeira missão dada pela ministra e pela presidenta [da Funai] foi retomar todos os processos fundiários que estão parados”

14 homologações e 25 portarias

Na reunião com os povos Tupinambá e Tumbalalá, a ministra informou que, além da homologação das 14 terras indígenas já anunciadas ainda na fase de transição do governo, mais 25 terras indígenas se encontram prontas, sem impedimento técnico, para assinatura da portaria declaratória. A assinatura dessas portarias devem ser feitas em abril, na semana do Acampamento Terra Livre (ATL).

“Se não for assinada agora nos 100 dias, elas [as portarias declaratórias]  vão ser assinadas no ATL  […]. Hoje mesmo a gente já fez esse pedido lá da Funai para mandar aquelas 25 [terras a serem declaradas], que ela [a Funai] identificou, que estava nessa lista, pronta para vir para cá, para nós assinarmos também nesse período”, prometeu Sônia.

“Se não for assinada agora nos 100 dias, elas [as portarias declaratórias]  vão ser assinadas no ATL  […]”

O anúncio da ministra foi confirmado pela equipe da Funai, que garantiu que dentre as 25 terras listadas para assinatura da portaria declaratória, estavam pelo menos três terras dos povos da Bahia: a TI Tupinambá de Olivença e a TI Tupinambá Bel Monte, bem como a TI Barra Velha do Monte Pascoal, do povo Pataxó.

“As  duas [terras] Tupinambá e Barra Velha Monte Pascoal estão na nossa lista para mandar para o ministério[ MPI], para [emissão da] portaria declaratória, e a gente já tem a ordem da ministra para isso ser urgente. Então a gente está trabalhando em regime de urgência e de rapidez, porque a ministra quer poder declarar essas terras em abril”, certificou Janete.

“As  duas [terras] Tupinambá e Barra Velha Monte Pascoal estão na nossa lista para mandar para o ministério[ MPI], para [emissão da] portaria declaratória”

A questão territorial do povo Tumbalalá, contudo, ainda segue indefinida. A Funai alega que há ainda uma diligência a ser respondida, cuja apresentação se deu fora do prazo de contestação e cujo parecer jurídico os Tumbalalá nunca tiveram acesso. Para Socorro Tumbalalá, liderança de seu povo, a existência dessa diligência não se justifica diante dos prazos estabelecidos pelo decreto 1775, que regulamenta o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas.

O decreto determina o prazo de 90 dias após publicação do RCID para interessados se manifestarem contra o processo de demarcação. O RCID da TI Tumbalalá foi publicado em 2009, e a diligência apresentada à Funai em 2016, sete anos depois do prazo estabelecido.

“A Funai pode responder a essa diligência num parecer apenas de acordo com o decreto 1775”

“Então não justifica, gente. A Funai pode responder a essa diligência num parecer apenas de acordo com o decreto 1775. É a resposta, passou todo o tempo [de contestação] e a gente se depara nessa mesma situação.  É triste isso, é triste”, lamenta Socorro a morosidade da instituição.

Após reunião com representantes do povo Tumbalalá, a Funai se comprometeu em responder juridicamente à diligência no prazo de dez dias, e garantiu maior transparência e comunicação quanto ao andamento do processo e das questões jurídicas e administrativas que causaram sua paralisação por tanto tempo.

Representantes dos povos Tupinambá e Tumbalalá se reúnem com equipe do Ministério dos Povos Indígenas. Crédito: Maiara Dourado/Cimi

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