Para povos indígenas, repúdio do Vaticano à Doutrina da Descoberta é “apenas um passo”

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Povos indígenas dos Estados Unidos e do Canadá reagiram de forma mista ao repúdio do Vaticano à Doutrina da Descoberta, uma série de bulas papais do século XV que legitimavam a exploração colonial, concordando que a declaração deveria ser seguida de outras ações.

A reportagem é de Aleja Hertzler-McCain, publicada em National Catholic Reporter, 06-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Marie-Anne Day Walker-Pelletier, uma ex-chefe da Primeira Nação de Okanese, que representou os sobreviventes da escola residencial de Saskatchewan em uma visita ao Papa Francisco no Vaticano em março de 2022, disse ao NCR que finalmente se sentiu ouvida, depois de tentar durante anos fazer com que a Igreja Católica “realmente entendesse e valorizasse a dor e o sofrimento que passamos ao longo de muitas centenas de anos”.

Maka Black Elk, um cidadão da nação Oglala Lakota que também é católico, disse: “Ainda é apenas um passo, mas é um passo na direção certa”.

Em 30 de março, os Dicastérios para a Cultura e a Educação e para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral divulgaram uma declaração conjunta que afirmou que a Igreja Católica “repudia os conceitos que não reconhecem os direitos humanos inerentes aos povos indígenas, incluindo a doutrina que ficou conhecida, legal e politicamente, como a ‘doutrina da descoberta’”.

As bulas papais do século XV foram citadas na Suprema Corte dos Estados Unidos, começando por uma decisão unânime em 1823, na qual o juiz John Marshall escreveu “que o princípio da descoberta deu às nações europeias o direito absoluto sobre as terras do Novo Mundo”.

Em 2005, a juíza Ruth Bader Ginsberg citou a “doutrina da descoberta” ao negar à nação indígena Oneida, no centro de Nova York, o direito à soberania tribal nas terras ancestrais resgatadas.

Embora a declaração vaticana se refira à “doutrina da descoberta” como um “conceito jurídico”, Cora Voyageur, membro da Primeira Nação Athabasca Chipewyan e professora de sociologia na Universidade de Calgary, disse que o conceito “transbordou para aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos da vida dos povos indígenas em todo o mundo”.

Documento “inadequado”

Steven Newcomb, que é Shawnee/Lenape e autor do livro “Pagans in the Promised Land: Decoding the Doctrine of Christian Discovery”, de 2008, disse que a declaração do Vaticano é “lamentavelmente inadequada”.

“Tudo o que eles apresentam são os títulos desses três documentos [que formam a Doutrina da Descoberta], mas não dizem o que está nos documentos”, disse ele.

A declaração do Vaticano cita a bula papal Sublimis Deus, de 1537, na qual o Papa Paulo III defendia a liberdade e os direitos de propriedade dos povos indígenas. Mas a declaração não menciona as três bulas papais do século XV que são citadas como formadoras da Doutrina da Descoberta, que endossam explicitamente a dominação dos povos indígenas e o comércio português de escravos africanos.

A bula papal Dum Diversas, de 1452, dava a bênção do Papa Nicolau V “para capturar, derrotar e subjugar os sarracenos, pagãos e outros inimigos de Cristo e colocá-los em escravidão perpétua e tomar todas as suas posses e propriedades”.

Para Voyageur e outros, a alegação da declaração do Vaticano de que “conteúdo destes documentos foi manipulado com fins políticos pelas potências coloniais em competição” se desvia da responsabilidade da Igreja.

Mark Charles, teólogo navajo e autor do livro “Unsettling Truths: The Ongoing, Dehumanizing Legacy of the Doctrine of Discovery”, de 2019, disse que a bula papal Inter Caetera, de 1493, que concedia à Espanha certas terras nas Américas, foi escrita depois da primeira viagem de Cristóvão Colombo, “basicamente justificando o que já havia ocorrido”.

“Suas palavras e as bulas papais não estavam sendo manipuladas e cooptadas por entidades políticas, mas estavam sendo escritas por entidades políticas para justificar essas ações”, disse Charles.

Charles vê a declaração vaticana como “uma tentativa muito clara de limitar” a responsabilidade legal da Igreja Católica, especialmente ao enquadrar os danos do passado como perpetrados por maus atores individuais, em vez de instituições da Igreja.

Pontos de vista diferentes

Quando Francisco visitou o Canadá em julho de 2022, os indígenas canadenses pediram que ele rejeitasse a Doutrina da Descoberta. Em uma coletiva de imprensa em seu voo de volta após a visita, o papa disse que o tratamento dado pela Igreja aos povos indígenas no Canadá equivalia a um “genocídio”, mas também pareceu confuso ao abordar a própria doutrina.

“Há um ponto de vista da costa que olha para aqueles navios invasores vindo em direção aos nossos ancestrais, e depois um ponto de vista do navio”, disse Newcomb, que se reuniu várias vezes com autoridades do Vaticano, incluindo uma vez com Francisco, instando-os a abordar adequadamente as consequências das bulas papais.

“Eles querem ver sua própria história e a história de sua instituição provavelmente a partir da melhor e mais favorável luz”, disse ele.

Black Elk descreveu o processo de produzir a declaração do Vaticano como “clara e profundamente muito pensado”. Ele citou a visita do superior geral jesuíta, Pe. Arturo Sosa, à Red Cloud Indian School, um antigo internato administrado pelos jesuítas, em agosto de 2022, onde Black Elk é diretor executivo para a verdade e a cura.

Elk disse que Sosa voltou com duas cartas para Francisco escritas pelas tribos Rosebud Sioux e Oglala Sioux, pedindo ao papa que rescindisse a Doutrina da Descoberta e que Sosa escreveu em setembro que havia compartilhado as cartas com Francisco e conversado com ele sobre suas impressões pessoais sobre a necessidade de repudiar a Doutrina da Descoberta.

Black Elk disse que “se sentiu confortado com o fato de que a verdade e o trabalho de cura que estamos fazendo aqui em Red Cloud podem ter desempenhado um pequeno papel em ajudar [no repúdio]”.

“Vejo isso como mais um passo em uma caminhada muito longa para curar essa relação, porque houve danos”, disse Voyageur, um sobrevivente da escola residencial Holy Angels.

Voyageur pediu aos católicos que apoiem os esforços para revitalizar as línguas indígenas e para respeitar a espiritualidade indígena. Os povos indígenas vivem traumas contínuos provocados pela Doutrina da Descoberta, como famílias que ainda não sabem a localização dos restos mortais de seus familiares que morreram em internatos e aqueles que estão lidando com os efeitos do abuso sexual clerical.

“Todas as Igrejas que traíram as Primeiras Nações, incluindo o governo, precisam se unir, precisam se sentar à mesma mesa e precisam pôr essas ações em prática”, disse Walker-Pelletier, falando sobre a revitalização da língua e a equidade no local de trabalho.

“E temos que estar à mesa também”, disse ela. “Eles não podem mais planejar sem nós.”

Repatriação de terras e bens

Black Elk disse que um próximo passo crucial para o Vaticano seria se engajar com as comunidades indígenas que pediram a repatriação de itens dos Museus do Vaticano.

Ele também disse que o Vaticano deveria apoiar os bispos dos Estados Unidos e do Canadá que realizam trabalhos locais de cura, apontando para uma carta de 2021 do arcebispo Paul Coakley, de Oklahoma City, e do bispo James Wall, de Gallup, Novo México, a todos os bispos dos Estados Unidos sobre a formação de relações com as comunidades indígenas como um ponto de partida.

Newcomb disse que, se a Igreja Católica quer assumir a responsabilidade pela Doutrina da Descoberta, ela deve levar em consideração as terras que possui.

“Em todo o hemisfério ocidental e provavelmente em outras áreas do mundo onde essa doutrina da dominação foi assumida, [a Igreja Católica tem] a posse dessas terras com base nesses mesmos documentos que eles dizem que não têm valor para eles”, disse Newcomb.

Newcomb disse que, em vez da descoberta, o problema principal em relação à série de bulas papais e sua influência duradoura é a dominação. “Como e por que a reivindicação do direito de dominação se tornou o princípio organizador do planeta?”

Foto: Ricardo Stuckert / Dilvulgação

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