O retorno à política democrática não se fará sem que consigamos suplantar de forma completa os restos significativos da hegemonia fascista
Duas questões de fundo atravessam hoje a recuperação democrática do país, onde a esfera da política – com suas mazelas e grandezas –, não os criminosos organizados com seus asseclas armados que assaltaram as instituições da República, irá decidir para onde vamos no mundo de tragédias que nos assolam.
A primeira questão de fundo está expressa no assassinato das quatro crianças em Blumenau, por um sociopata nazista, que foi estimulado por alguém e que aceitou aquele estímulo assassino, em decorrência de uma cultura da morte e do “justiçamento”, que veio do poder comunicativo e da política de um governo de bandidos. Este assassinato é uma barbárie singular vindo da barbárie coletiva que arremete contra os valores do iluminismo em sua face democrática.
A outra questão de fundo é a disputa e a discussão sobre a “nova âncora fiscal”, de Lula, Fernando Haddad e Simone Tebet, como momento de ultrapassagem para que, mantendo a frente política majoritária, possamos buscar uma reforma econômica mais ampla para permitir um financiamento do Estado nacional, que possa combinar uma certa estabilidade fiscal com o combate à fome e ao desemprego.
Considero este “arcabouço” fiscal a única possibilidade, na atual correlação de forças, para que possamos reduzir o peso da extrema direita fascista e neofascista, no consórcio burguês de dominação, do qual estamos nos livrando, considerando que o que temos como ”centro”, no nosso país de descendência escravocrata, não hesitará a aliar-se com o fascismo, quando for necessário, para reduzir a democracia política a nada e retornar aos ideais totais da “mão invisível” do mercado.
Quero aduzir, sobre este segundo ponto, que apoio – até agora – o processo de composição da “âncora”, porque entendo que a situação atual do país, mesmo com a vitória de Lula, é mais favorável ao fascismo e à morte do que à democracia e à vida. Isso implica em reconhecer que a coesão social mínima que precisamos para vencê-lo, deve ser buscada rapidamente para enfraquecer as possibilidades de que a violência fascista, que também conquistou o espírito das massas, possa aumentar suas chances de retorno.
Lembremos mais um pouco, pelo menos, a história da barbárie, que está na gênese da sociedade burguesa do mercado moderno. Numa sessão de 31 de março de 1821 as “Cortes Constituintes” portuguesas decretaram a extinção do Tribunal do Santo Ofício, instituição nascida em Portugal em 1536. Do ano da sua criação, até a sua extinção transcorreram quase três séculos e nela, os condutos da barbárie moderna – ali já conformados juridicamente pela religião – organizaram o novo continente europeu para receber, moderar e ao mesmo tempo conter o “ethos” do iluminismo triunfante.
Este, ao mesmo tempo que impôs sua força sobre as classes ricas europeias, para colocar o Estado moderno a seu serviço, desdobrou-se – externamente – como modo colonial-imperial de governar, cujos requintes de barbárie eram abrigados por novos estatutos jurídicos, que permanecem como centrais até hoje. As duas grandes guerras são a realização e a implosão do novo-velho modo de vida europeu, com seus reflexos coloniais: os massacres ingleses na Índia, o genocídio continuado do Rei Leopoldo na Bélgica, Hitler, Mussolini, a guerra com o “agente laranja” no Vietnã (depois da expulsão dos francesas), a indiferença à fome e aos massacres tribais na África, são exemplos contemporâneos da modernidade tingida de barbárie.
Sustento que Donald Trump e Jair Bolsonaro, a seu modo, são resíduos explícitos dela, e que eles retornam turbinados pelas novas tecnologias info-digitais, absorvidas e subsumidas pelo sistema do capital em crise, mas triunfante. A moderação iluminista da Inquisição aqui no Brasil assentou-se no “escravismo colonial”, que fez os alicerces da sociedade capitalista moderna após a Revolução de 1930, a partir de uma ágil combinação do atraso com a modernidade tardia.
Reorganizada e revista pelo Golpe de 64 no Brasil, a nossa barbárie ocidental está presente – com todos os seus movimentos e ambiguidades – em todas as revoluções do Século XX. Jair Bolsonaro e Donald Trump, todavia, não são apenas seus resíduos, que vem por dentro da velha Inquisição, pela chancela da tortura e pela demonização absoluta do inimigo. São, na verdade, composições doentias de uma cultura que permaneceu, transitando das velhas classes dominantes europeias para as elites financeiras mundiais do armamentismo, da segregação dos desiguais, defensoras das chacinas “necessárias” para manter a ordem.
Numa “fala do trono” Dom Pedro II já tinha feito uma súmula brilhante do que seria o nosso país nesta complexa transição, no estilo da Lei Rio Branco: “O elemento servil do Império não pode deixar de merecer (…) vossa consideração (…) de modo que respeitada a propriedade atual (dos escravos) e sem abalos profundos em nossa primeira indústria -a agricultura – sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação”.
Na introdução do livro Século das luzes de Alejo Carpentier está anotado que ainda na travessia da Revolução Francesa transitava pelos mares do Caribe um navio negreiro cujo nome reverenciava Jean-Jacques Rousseau. A nossa travessia, para construirmos um país livre, democrático e próspero, nos próximos 30 anos – se é que isso é possível – não se dará se não ajustarmos as contas para compreendermos como o nosso passado escravista – colonial, bárbaro – gerou os corações e as mentes que em todas as classes sociais, com a naturalização da morte e da dor, para serem aceitáveis no cotidiano da ordem.
Neste mundo, onde a insensibilidade perante a dor alheia espalhou-se também entre as classes populares e os donos do dinheiro (e da fabricação de armas) são indiferentes a que as guerras coletivas se transformem em barbáries singulares (como a de Blumenau) – não importa como e não importa contra quem – é possível afirmar que o espírito do nazi-fascismo está presente e forte, seja como cumplicidade, seja como ameaça.
Poderemos sucumbir, se não compreendermos de forma mais abrangente este mundo integrado pela transmissão comutativa de sinais e dados, onde as calúnias e mentiras em escala industrial, as verdades científicas, as grandezas humanas e as perversões genocidas de destruição das condições de vida no planeta, permanecem mais fortes como consciência dominante, embora difusa, do que a memória das grandes lutas sociais do século passado.
Sem reconhecer que a tragédia nos espreita – mais forte do que nunca – não atravessaremos este rubicão, para devolver à luta política a sua dignidade originária. Porque o retorno à política democrática não se fará sem que consigamos suplantar de forma completa – com uma ampla aliança política de classes – os restos significativos da hegemonia fascista, que ainda nos ameaça com suas garras afiadas pelas novas religiões do dinheiro, que estão muito longe de Deus, mas sempre muito perto dos cofres da República.
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*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
Brasilia, 08/01/2023. Foto: Marcelo Camargo /Agência Brasil
Muito lucida a analise de Genro , evidenciando que os massacres em escolas e creches não podem ser vistos de forma isolada, mas como fios de uma tessitura cultural, politica e econômica . Essa complexidade ( algo entretecido , uma trama de fios ) precisa ser levada em conta . As violências em escolas, famílias, comunidades , são a ponta do iceberg de violências estruturais e estruturantes de nossa sociedade , e não serão resolvidas aumentando a quantidade de policiais armados nas ruas , Madza Ednir [email protected]