Há uma relação causal entre o golpismo latente, ameaça permanente à nossa democracia e a ausência de um processo de justiça de transição
No Sul21
Já transcorridos alguns dias do 59º aniversário do putsch que, em 1º de abril de 1964, instalou a ditadura civil-militar que perdurou no país por mais de duas décadas – sem desconhecer o tanto que se falou e escreveu sobre o episódio e suas consequências nefastas, ainda presentes hoje em dia – talvez caiba tecer mais alguma reflexão sobre o tema, modesta que seja, abordando-o sob um ângulo frequentemente tangenciado.
Trata-se do processo de justiça de transição, expressão que designa o conjunto de mecanismos – políticos e jurídicos, judiciais e extra-judiciais – que deveriam acompanhar a implantação da democracia em países que viveram situações extraordinárias, como guerras, externas ou civis, invasões e regimes autoritários. O conceito de justiça transicional surgiu e se desenvolveu notadamente a partir da década de 1980, sobretudo pelas experiências históricas de superação destas ocorrências, nas Américas Central e do Sul, África e Ásia.
No Brasil, ao contrário do que se passou com seus vizinhos, sobretudo a Argentina, o processo de transição daquele regime ditatorial para a democracia, deu-se de forma incompleta e truncada. O primeiro passo foi dado apenas em 1995, quase oito anos depois da promulgação da nova Constituição Federal, marco inicial da redemocratização – mediante a criação e instalação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, órgão que desde então desenvolveu notável trabalho, na identificação e localização de vítimas das mais graves violações a direitos humanos praticadas durante a ditadura de ’64, por parte do famigerado “sistema de segurança e informação” por ela montado para perseguir e reprimir seus oponentes – reais, potenciais ou imaginários.
A propósito, não se pode deixar de registrar a mais veemente indignação com a decisão, em tudo lamentável (mas sintomática!) de extinguir aquele Colegiado, tomada no governo passado. E, da mesma forma, apoiar o pedido de sua recriação e instalação, formulado pelos movimentos de direitos humanos aos atuais governantes, de quem, pelo seu passado e por seu projeto político democrático, só se pode esperar sua acolhida.
A segunda etapa da marcha transicional no país só veio a ocorrer em 2002, ao final do governo de FHC, com a lei que criou a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça – a qual cumpriu nos anos seguintes a importantíssima tarefa de apreciar e julgar cerca de 65.000 processos, instaurados em favor de pessoas que buscaram reparação pelas inúmeras violências contra si cometidas, durante aquela “página infeliz de nossa história”, a saber: cassações, demissões, exílios, sequestros, prisões ilegais, torturas e até mesmo mortes e desaparecimentos. No que se refere a ela, o (des)governo do Boçal não a extinguiu, preferindo desfigurá-la, nomeando integrantes ligados às estruturas militares, que se dedicaram a negar infundadamente os pedidos ainda por decidir – como, por exemplo, aquele formulado em favor da ex-Presidenta Dilma Roussef, pelos notórios abusos que sofreu de parte dos esbirros do aparato repressivo ditatorial.
Já o terceiro e último estágio de nosso processo de transição consistiu na criação por lei, em 2011, da Comissão Nacional da Verdade, que foi instalada no ano seguinte e atuou até dezembro de 2014, quando entregou seu Relatório Final – acompanhado dos depoimentos prestados por centenas de pessoas, além de anexar vasta e importante documentação acerca das graves violações a direitos humanos perpetradas no passado recente do país, sobretudo durante os governos ditatoriais.
Importa referir que, atendendo a uma solicitação feita ao início de seus trabalhos pelos membros da Comissão, a Chefa do Executivo instou os Governadores de Estado a criarem organismos similares, nos seus respectivos âmbitos, para auxiliá-la naquele mister – dadas sua magnitude e exiguidade do prazo estabelecido para cumpri-lo. Assim, ao seu Relatório Final também foram anexados os destas Comissões Estaduais, inclusive daquela criada no Rio Grande do Sul – e até mesmo as de alguns Municípios, como o Rio e São Paulo.
Infelizmente, o torvelinho político em que o Brasil logo foi atirado – com a implementação do plano golpista que redundou nos anos seguintes no afastamento ilegal da Presidenta Dilma, bem como na prisão e afastamento de Lula da corrida presidencial de 2018 – não permitiu dar execução à série de Recomendações que as Comissões da Verdade ofereceram juntamente com seus Relatórios Finais, a fim de efetivar medidas destinadas a recuperar a história do período ditatorial.
Muito ao contrário, o lamentável retrocesso imposto paulatinamente, desde então, em todos os domínios da vida política, social e cultural, atingiu igualmente a busca por memória, verdade e justiça. Basta lembrar aqui dois exemplos deploráveis. A começar, o pronunciamento criminoso do deputado que, poucos anos depois, por infeliz conjugação dos fados, viria a assumir a primeira magistratura nacional, ao proferir seu voto na sessão que autorizou a instalação do impeachment de Dilma – invocando a repulsiva figura do seu torturador-chefe, militar que teve esta condição judicialmente reconhecida, em decisão transitada em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo.
E também a espantosa e explícita ameaça feita, em rede social digital, seguida de ampla divulgação da chamada grande imprensa, pelo próprio Comandante do Exército ao Supremo Tribunal Federal, às vésperas do julgamento por este de habeas corpus impetrado em favor de Lula, para a eventualidade de sua concessão – que, é claro, não ocorreu, e não por mera coincidência.
Não estranha assim que, após a vitória eleitoral e assunção à Presidência da maior liderança popular brasileira – apesar de todas as manobras e, mesmo, ataques perpetrados para evitá-lo – tenham vindo à tona manifestações falaciosas de setores militares, procurando justificar seu “afastamento” em relação ao PT, malgrado em seus governos as Forças Armadas tenham sido beneficiadas institucionalmente, como nunca o foram antes. O pretexto brandido – que beira o cinismo – para sua adesão ao projeto golpista que afastou Dilma, instalou Temer, prendeu Lula e o alijou do pleito de 2018, para eleger o Boçal, foi… a Comissão da Verdade!!
Quer dizer: as cúpulas das Três Forças, que a Constituição expressamente determina sejam submissas ao poder civil – além de não contribuírem, e inclusive boicotarem os esforços empreendidos para identificar e relatar à cidadania os crimes contra a humanidade cometidos durante os governos da ditadura civil-militar instaurada em 1964, em nome de um corporativismo cego e suicida – não se pejam em invocar a atuação do órgão legalmente constituído para a execução daquele importante trabalho, como motivo para justificar sua participação política, ativa e decisiva, no novo golpe, de natureza judicial-parlamentar-midiática, desfechado contra nossa frágil democracia!
E se alguma dúvida persistia a respeito da recalcitrância castrense à volta de Lula ao Planalto, ungido pelo voto da maioria do eleitorado, certamente esvaneceu-se diante do comportamento dúbio e reticente, para dizer o mínimo, das Chefias das Forças, em face da tentativa de putsch do 8 de janeiro, preparada há meses nos acampamentos montados por fascistóides lunáticos em frente a várias organizações militares, em obediência às ordens de seu líder fujão. Felizmente, a reação firme das instituições – lideradas por Lula e a cúpula do Judiciário, com destaque aos Presidentes do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, trazendo a reboque os Governadores dos Estados e o Parlamento – fez com que os novos Comandantes, sobretudo o do Exército e, com certa relutância inicial, também da Marinha e da Aeronáutica, recuassem, assumindo por fim a posição que deles se espera, em defesa do regime democrático, inclusive auxiliando na identificação e punição dos militares que participaram daquela intentona criminosa.
O balanço que se pode fazer destes acontecimentos, ainda tão recentes, evidencia que as instabilidades e riscos a que nossa democracia continua sujeita, desde seu nascimento, há pouco mais de três décadas e meia, são decorrência direta, entre outros fatores, da natureza peculiar de nossa transição. Nunca é demais lembrar que se tratou a mesma de processo realizado “por cima”, fruto de negociações encetadas entre as chamadas elites políticas e as chefias militares, após a imposição, no início do último governo ditatorial, de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” para os crimes cometidos por seus agentes, e de simples indulto parcial para os atos praticados por seus oponentes e adversários.
Em suma, há uma relação causal inegável entre o golpismo latente, ameaça permanente à nossa “democracia tutelada” – como a chamava o saudoso José Paulo Bisol – e a ausência de um processo de justiça de transição, como aquele desenvolvido ainda hoje na Argentina, responsabilizando de forma inédita no mundo, toda a cadeia repressiva do regime de terror de estado – desde ditadores até guardas da esquina.
Por isso, hoje como sempre, se impõe a consigna: “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”!
*Carlos Frederico Guazzelli, Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)
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Imagem: Adriano Machado/Reuters