A política internacional também pode ser lida como uma complexa rede de “conspirações” que acabam se transformando em golpes de Estado.
“As “grandes potências” se protegem coletivamente, impedindo o surgimento de novos Estados e economias líderes, através da monopolização das armas, da moeda e das finanças, da informação e da inovação tecnológica. Por isso, uma “potência emergente” é sempre um fator de desestabilização e mudança do sistema mundial, porque sua ascensão ameaça o monopólio das potências estabelecidas” (José Luís Fiori. História, Estratégia e Desenvolvimento. Para uma Geopolítica do Capitalismo. Boitempo, p. 35).
Este artigo repropõe uma discussão estratégica indispensável e urgente. Seu corpo principal foi escrito e publicado em maio de 2014, com os olhos postos nas eleições presidenciais de outubro daquele ano. Depois disso, entretanto, Dilma Rousseff foi reeleita, mas a elite conservadora brasileira acovardou-se e desfechou um golpe de Estado que já vinha sendo preparado há alguns anos, com o apoio do governo norte-americano. Esse golpe abriu portas para a ascensão da extrema-direita no país, e para formação de um governo, dois anos depois, que promoveu um imediato alinhamento com os Estados Unidos, junto com a aplicação de um choque econômico ultraliberal que desmontou a economia e a sociedade brasileiras.
Tudo isto aconteceu quase no mesmo momento em que os Estados Unidos e seus aliados europeus apoiavam e promoviam outro golpe de Estado, desta vez na Ucrânia, dando início a uma crise internacional que trouxe de volta a guerra para o coração do Velho Continente. No Brasil, o novo presidente bateu continência várias vezes para a bandeira norte-americana, e a política econômica ultraliberal do governo rebaixou o país da sua condição de sétima para a décima-segunda potência econômica mundial.
Da mesma forma, também na Ucrânia, o golpe de Estado acabou instaurando no governo uma coalizão de extrema-direita que se propôs a acelerar a inclusão do país na União Europeia e na OTAN, provocando a reação russa que culminou com a invasão militar do seu território e deu início a uma guerra entre a própria Rússia e os EUA/OTAN que se prolonga até hoje.
Em 2023, o Brasil retomou democraticamente o caminho do pragmatismo internacional e da soberania econômica nacional. E as duas pontas desta história se encontraram quando o novo governo brasileiro decidiu assumir uma posição ativa na tentativa de apaziguamento da Ucrânia e de negociação dos interesses das partes envolvidas no conflito. No entanto, agora enfrenta um problema, pois a negociação de paz, neste caso, só irá à frente se todas as partes envolvidas participarem do processo e aceitarem negociar a paz, incluindo evidentemente, os Estados Unidos e seus satélites da OTAN. Tudo isto ao mesmo tempo em que o sistema geopolítico e econômico internacional atravessam um processo de transformação profundo, radical, quase telúrico.
Houve a pandemia; a economia mundial enfrenta uma nova crise inflacionária e financeira; o próprio sistema econômico mundial entrou num processo acelerado de “desglobalização”; e as políticas econômicas protecionistas e nacionalistas, típicas de períodos de guerra, voltaram a ocupar lugar central no mundo das grandes potências. Mesmo assim, o diagnóstico feito há oito anos, sobre o lugar internacional ocupado pelo Brasil, junto com seus desafios, segue sendo exatamente o mesmo, com a diferenças de que as ameaças externas agora são muito maiores, seja pela pressão da guerra que está em pleno curso, seja pelo poder aumentado das sanções econômicas praticadas pelos Estados e pelos agentes financeiros privados envolvidos no sistema de pagamentos internacionais, o SWIFT, sediado em Bruxelas mas tutelado pelo Banco Central e pelos Departamentos de Estado e de Justiça norte-americanos.
Por isso, é interessante retomar o caminho da análise e da discussão das alternativas estratégicas do Brasil, tal como estava posto logo antes da “degringolada” direitista do panorama político e ideológico do país, e da desmontagem estatal promovida pelo fanatismo ultraliberal da elite financeira brasileira. O mundo mudou, a supremacia euro-americana está sendo questionada, e o mais provável é que tenhamos uma nova ordem geopolítica mundial na próxima década. O peso da destruição interna promovida pela extrema-direita e o tamanho dos desafios e ameaças externas trazidas pela polarização provocada pela guerra são maiores do que no passado, mas as oportunidades abertas são grandes e parece-nos que a estratégia sugerida em 2014 segue sendo válida. Senão, vejamos.
No século XX, o Brasil deu um passo enorme e sofreu uma transformação profunda e irreversível, do ponto de vista econômico, sociológico e político. No início do século, era um país agrário, com um Estado fraco e fragmentado, e com um poder econômico e militar muito inferior ao da Argentina. Hoje, na segunda década do século XXI, o Brasil é o país mais industrializado da América Latina e a sétima maior economia do mundo (era, em 2014, mas não é mais, caiu para décima segunda depois do golpe e do choque ultraliberal); possui um Estado centralizado, uma sociedade altamente urbanizada – ainda que desigual – e é o principal player internacional do continente sul-americano. Além disso, é um dos países do mundo com maior potencial de crescimento pela frente, se tomarmos em conta seu território, sua população e dotação de recursos estratégicos, sobretudo se for capaz de combinar seu potencial exportador de commodities com a expansão sustentada do seu próprio parque industrial e tecnológico.
Tudo isto são fatos e conquistas inquestionáveis, mas que colocaram o Brasil frente a um novo elenco de desafios internacionais, e hoje, em particular, o país está enfrentando uma disjuntiva extremamente complexa. As próprias dimensões que o Brasil adquiriu e as decisões que tomou no passado recente (com exceção do período ultraliberal) o colocaram no núcleo de poder do “caleidoscópio mundial”: um pequeno número de Estados e economias nacionais que exercem – em maior ou menor grau – um efeito gravitacional sobre todo o sistema, e que são capazes, simultaneamente, de produzir um “rastro de crescimento” em suas próprias regiões.
Queiram ou não queiram, esses países criam em torno de si “zonas de influência”, onde têm uma responsabilidade política maior que a de seus vizinhos, enquanto são chamados a se posicionar sobre acontecimentos e situações longe de suas regiões, o que não acontecia antes de sua ascensão. Ao mesmo tempo, os países que ingressam nesse pequeno “clube” dos países mais ricos e poderosos têm que estar preparados, porque entram automaticamente num novo patamar de competição, cada vez mais feroz, entre os próprios membros desse “núcleo” que lutam entre si para impor, a todo o sistema, seus objetivos e estratégias nacionais de expansão e crescimento.
Neste momento, o Brasil já não tem como recuar sem pagar um preço muito alto. Mas (como acabou recuando entre 2016 e 2022) agora, para poder avançar, deverá ter uma dose extra de coragem, persistência e inventividade. Terá que ter, ainda, objetivos claros e uma coordenação estreita entre as agências responsáveis pela política externa do país, envolvendo sua diplomacia e política de defesa, articuladas com sua política econômica e a política de difusão global de sua cultura e de seus valores. E o que é mais importante, o Brasil terá que sustentar uma “vontade estratégica” consistente e permanente, ou seja, uma capacidade social e estatal de construir consensos em torno de objetivos internacionais de longo prazo, junto com a capacidade de planejar e implementar ações de curto e médio prazo, mobilizando os atores sociais, políticos e econômicos relevantes, frente a cada situação e desafio em particular.
Mais difícil do que tudo isto, entretanto, o Brasil terá que descobrir um novo caminho de afirmação de sua liderança e poder internacional, dentro e fora de sua zona de influência imediata. Um caminho que não siga o mesmo roteiro das grandes potências do passado, e que não utilize a mesma arrogância e violência que utilizaram os europeus e os norteamericanos para conquistar, submeter e “civilizar” suas colônias e protetorados.
Em segundo lugar, como todo país que ascende dentro do sistema internacional, o Brasil terá que questionar, de forma cada vez mais incisiva, a ordem institucional estabelecida e os grandes acordos geopolíticos em que se sustenta. Mas terá que fazê-lo sem o uso das armas, e através de sua capacidade de construir alianças com quem quer que seja, desde que o país mantenha seus objetivos, valores e soberania, visando sempre expandir e conquistar novas posições na hierarquia política e econômica internacional. Este objetivo já não obedece mais a nenhum tipo de ideologia nacionalista, muito menos a qualquer tipo de cartilha militar; obedece a um imperativo “funcional”’ do próprio “sistema interestatal capitalista”: neste sistema, “quem não sobe, cai”.[1] Mas, ao mesmo tempo, “quem sobe” tem que estar preparado, porque será atacado e desqualificado inevitavelmente e de forma cada vez mais intensa e coordenada, dentro e fora de suas fronteiras, caso não se submeta à vontade estratégica dos antigos donos do poder global.
E foi exatamente isto que aconteceu depois do golpe de 2016, que levou à desmontagem do Estado, ao atraso da economia e à destruição moral da sociedade brasileira. E pode voltar a acontecer a qualquer momento na próxima década, se o governo brasileiro não estiver permanentemente atento e cometer os mesmos erros do passado, compreendendo que, apesar de os cientistas políticos não gostarem ou desqualificarem, a política internacional também pode ser lida como uma complexa rede de “conspirações” que acabam se transformando em golpes de Estado, como aconteceu no Brasil em 1964 e em 2016, e como ocorreu também na Ucrânia, em 2014. Nesse sentido, é melhor aprender com a história para que a história não se repita, porque neste caso será com uma agressividade e destrutividade cada vez maior.
*José Luís Fiori é professor Emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O mito de Babel e a disputa do poder global (Vozes).
Nota
[1] Elias, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, v. 2, p. 134.