“Os Invasores” mostra participação de gigantes da soja em sobreposições de terras indígenas

Relatório revela mais de 500 fazendas de soja sobrepostas a terras indígenas, nas cinco regiões do Brasil, ocupando área maior que Singapura; casos envolvem gigantes do setor de grãos, como Bunge, Amaggi, Bom Futuro, Cantagalo e Terra Santa

Por Bruno Stankevicius Bassi, Hugo Souza, Luma Ribeiro Prado e Tonsk Fialho, em De Olho nos Ruralistas

O Brasil é o quarto maior produtor de grãos do mundo. Na safra 2021/2022 o país atingiu 271,2 milhões de toneladas em volume de produção e, conforme projeção da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), deve ultrapassar a Índia ainda este ano, tornando-se o terceiro colocado, atrás de China e Estados Unidos.

O setor é voraz também na ocupação do território. Mais da metade da área plantada no Brasil é destinada à soja: 41 milhões de hectares, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), 4,6% a mais que na safra 2020/2021. O milho ocupa outro terço, preenchendo 21,6 milhões de hectares. Somado, esse estoque de terras é 14 vezes maior do que a área destinada à produção de arroz e feijão.

Mas essa expansão não ocorre apenas sobre áreas produtivas. O relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado na última quarta-feira (19) pelo De Olho nos Ruralistas mostra que, entre as áreas indígenas – regularizadas ou não – que foram convertidas para uso agropecuário, a soja é responsável por 34,6% das sobreposições em terras indígenas. Isso equivale a 76,5 mil hectares – pouco maior que o território de Singapura. Ao todo, 507 fazendas incidentes em TIs possuem algum tipo de produção sojeira.

Em termos de impacto, o setor fica atrás apenas da pecuária, responsável por 55,6% das áreas de sobreposição em 954 imóveis rurais, conforme mostramos em reportagem: “Pecuária ocupa 123 mil hectares em terras indígenas, mostra estudo“.

Essas sobreposições não incluem apenas fazendeiros “fora da lei”. Entre os casos analisados pelo observatório estão algumas das maiores produtoras e comercializadoras de grãos do país, como Bunge, Amaggi, Bom Futuro, Cantagalo e Terra Santa.

Confira abaixo, na tabela, as propriedades de sojeiros com maior incidência em terras indígenas:

PORTO DA BUNGE NO CAMINHO DO POVO GUARANI MBYA

Nem todas as sobreposições precisam se espalhar por milhares de hectares para impactar os povos que habitam naquele território. A TI Morro Alto, em Santa Catarina, tem apenas 893 hectares. Desde que obteve a declaração de limites pelo Ministério da Justiça, em 2009, o povo Guarani Mbya luta para que a demarcação seja concretizada. No caminho está o imóvel “Projeto São Francisco 135”, que avança 134 hectares na TI e pertencia, até meados de 2022, à Bunge Alimentos S.A., subsidiária da gigante estadunidense do agronegócio.

Com sede no Missouri, a Bunge opera em mais de 40 países de maneira verticalizada. No Brasil, atua do plantio de cana de açúcar à operação de terminais portuários. É a maior processadora de soja e trigo e uma das principais empresas exportadoras do país, conforme dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). A Bunge é uma das empresas que operam no corredor de exportação instalado na zona primária do Porto de São Francisco do Sul (SC), junto com a Terlogs e a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc). O complexo da Bunge tem capacidade de armazenar 200 mil toneladas de granéis sólidos e 45 mil toneladas de óleo de soja. É justamente sobre uma dessas áreas que incide a TI Morro Alto.

Entre 2010 e 2014, a Bunge Brasil foi presidida por Pedro Parente, na época ministro da Casa Civil e do Planejamento do governo de Fernando Henrique Cardoso, presidente da Petrobras na gestão de Michel Temer. Seu sucessor na Bunge, o argentino Raul Alfredo Padilla, foi denunciado em 2019 por crime ambiental em uma unidade da empresa no Rio Grande do Sul. No segundo trimestre de 2022, a 2ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF) arquivou a ação penal por falta de provas sobre a individualização da conduta de Padilla no descarte de resíduos nocivos no curso hídrico do Saco da Mangueira, em Rio Grande (RS), com potenciais riscos à saúde humana, à fauna e à flora. Hoje, o presidente da operação brasileira da multinacional é Mario Lindenhayn, membro do Conselho de Administração da Câmara Britânica de Comércio e Indústria no Brasil (Britcham).

Em nota enviada à reportagem, a Bunge informa que o imóvel incidente na TI Morro Alto foi vendido em 2022. Sobre o imóvel continuar vinculado à empresa na base mais recente do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Incra, a trader afirma que “cabe ao comprador os trâmites burocráticos para a transferência de sua titularidade perante o cartório de Registro de Imóveis”:

— Cabe ressaltar que a Bunge não é parte em nenhum processo administrativo onde se discute a demarcação como área indígena e, pelas informações públicas disponíveis, essa demarcação não aconteceu, não havendo, portanto, qualquer ilegalidade por parte da empresa.

O imóvel vendido apresenta essa mesma sobreposição detalhada, de forma explícita, na descrição dos limites do imóvel. O vértice FIWP-V-1318 está localizado na parte central da TI Morro Alto. Hoje, a proprietária do imóvel é a Nova Barra Investimentos S/A, do empresário Jorge Roberto Favretto, que atua no setor imobiliário e no cultivo de eucalipto.

Confira a resposta da Bunge e dos demais grupos citados no relatório: “O que dizem as empresas sobre “Os Invasores” e sobreposições em terras indígenas“.

AMAGGI TEM EXECUTIVOS LIGADOS A SOBREPOSIÇÕES

Desde 2002 ocupando a presidência do Conselho de Administração da Amaggi, o produtor de soja, milho e algodão Pedro Jacyr Bongiolo é dono da Fazenda Matão, em Sapezal (MT), que se sobrepõe, nos limites da propriedade, em 0,59 hectares, com a TI Tirecatinga. O imóvel é citado no Linkedin da PG Bongiolo Agropecuária, que gere as fazendas do empresário, como um dos pilares de seus negócios.

A Amaggi tem sede em Cuiabá e é capitaneada por Blairo Maggi, ministro da Agricultura entre 2016 e 2018, antes senador, governador do Mato Grosso por dois mandatos. Sua receita em 2022 foi de R$ 38,21 bilhões em 2022, quando se manteve como uma das principais empresas do agronegócio brasileiro. O político e sua mãe aparecem entre os quinze bilionários do setor listados pela Forbes em seu ranking mais recente de pessoas mais ricas do mundo.

Além de Bongiolo, outro acionista da Amaggi opera no entorno da mesma TI. Cunhado de Blairo e seu colega na lista de bilionários da Forbes, Itamar Locks é dono da Agropecuária Locks, que possui duas sobreposições limítrofes à TI Tirecatinga: a  Fazenda Globo, de 8,8 mil hectares, e a Fazenda Itavera, de 1,8 mil hectares, que, segundo os registros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), avançam em 0,27 hectares do território indígena. Ele é irmão de Sedeni Lucas Locks, cuja empresa KLM Participações é acusada pelo Greenpeace, desde 2006, de invadir ilegalmente o território do povo Irantxe-Manoki para expandir a produção de soja da Fazenda Membeca, que avança 4.450 hectares na área de reestudo da TI Manoki, em Brasnorte (MT).

Embora tenha finalizado seu processo de demarcação em 1991, a TI Tirecatinga sofre com a proximidade da soja e milho transgênicos, que vêm devastando a segurança alimentar do povo Nambikwara Halotesu. Segundo relatório de 2022 da Operação Amazônia Nativa (Opan), oito em cada nove amostras de ervas medicinais e frutas coletadas no território indígena continham traços de contaminação por agrotóxicos.

Em nota enviada à reportagem, a empresa reforçou não ser proprietária das fazendas e que, em ambos os casos, trata-se de “sobreposição ínfima em área de mata nativa totalmente preservada e que em nenhum momento configura disputa por terra e nem intenção de utilização para outros fins, que não a conservação”. Confira a nota na íntegra aqui.

“PARCEIRO DE OURO” DA CARGILL INVADE TI EM MATO GROSSO

Fundado pelos irmãos Maggi Scheffer, primos de Blairo Maggi, o Grupo Bom Futuro possui mais de 600 mil hectares de cultivo, com destaque para a soja, milho e algodão, além de 109 mil cabeças de gado. A exemplo da Amaggi, o fio que conecta a Bom Futuro a propriedades sobrepostas em terras indígenas passa por um de seus executivos. José Maria Bortoli, cunhado de Eraí Maggi Scheffer, possui uma propriedade de 1.669 hectares em Sapezal (MT), a Fazenda Progresso, que conforme o Incra avança em 20 hectares no interior da TI Enawenê-Nawê, regularizada desde 1996. Trata-se, portanto, de uma invasão irregular.

É histórica a tensão entre os Maggi Scheffer e o povo Enawenê-Nawê. Na região, o curso do Rio Juruena tem sido prejudicado pelas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) da Bom Futuro. Segundo relatório do biólogo Francisco de Arruda Machado, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a ação da empresa altera o curso dos rios e afeta diretamente a segurança alimentar dos Enawenê-Nawê. Em entrevista ao portal RDNews, o pesquisador associou a presença desses empreendimentos ao aumento de suicídios entre indígenas da etnia, que tem sua ancestralidade ligada à pesca e à proteção dos rios. No Rio Juruena, o Grupo Bom Futuro administra as PCHs Parecis, Rondon, Sapezal, Telegráfica e Cidezal.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, um membro do povo Enawanê-Nawê encontrou-se com o então presidente, causando atritos no território. Na ocasião, conforme relatado pelo jornal Brasil de Fato, foram protocolados “pedidos de licenciamento ambiental para desmatar a área e de maquinário para introduzir a agricultura mecanizada no território”. Em reação, seis líderes da etnia (incluindo quatro caciques) manifestaram-se publicamente contra a ação do parente, afirmando que seu posicionamento não representava a comunidade.

Apesar de figurar entre os três principais grupos produtores de soja do país, o Bom Futuro não se destaca pelas exportações. Boa parte de sua produção é escoada pela Amaggi e traders parceiras, como a Cargill, que, em dezembro de 2022, concedeu à empresa dos irmãos Maggi Scheffer o troféu “Parceiro de Ouro”, em reconhecimento aos anos de atuação conjunta em Mato Grosso.

DIRIGENTE DA FIESP COMANDA TRADER COM SOBREPOSIÇÕES NO MATO GROSSO

O processo de demarcação da TI Menkü, em Brasnorte (MT), começou em 1987, baseado não em critérios técnicos, mas nos cálculos de um fazendeiro da região que pretendia — e conseguiu — deslocar o povo Mynky para fora das suas terras. Com isso grandes parcelas do território tradicionalmente ocupado pelos indígenas ficaram de fora da homologação, gerando nas décadas seguintes uma série de impactos socioambientais. Até hoje os Mynky lutam pela justa e efetiva ampliação da TI Menku, após o governo Bolsonaro retardar, via Funai e Ministério da Justiça, o cumprimento de decisões judiciais recentes nesse sentido.

Outra ameaça ao povo Mynky é a sobreposição de propriedades rurais à área da TI, seja a demarcada, seja aquela em processo demarcatório. Uma delas está registrada em nome da Siqueira Empreendimentos e Participações, empresa que tem como atividades a monocultura de soja, milho e algodão. Ao todo, são 37.491,93 hectares sobrepostos ao território Mynky, divididos em sete propriedades. A composição acionária da empresa traz um novelo de conexões entre bancos, traders internacionais e membros da poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Uma das sócias da Siqueira Empreendimentos é a Cantagalo General Grains (CGG), uma holding controlada pela companhia têxtil Coteminas. A Coteminas, por sua vez, pertence a Josué Gomes da Silva, filho do ex-vice-presidente da República José Alencar e atual presidente da Fiesp, uma das financiadoras do Instituto Pensar Agro (IPA), fiador da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). A participação na CGG significou a estreia de Josué no agronegócio, tendo como sócias as brasileiras Agrícola Estreito e GFN Agrícola, além do fundo estadunidense Valor Grains. A gigante japonesa Sojitz também já fez parte da holding.

Em 2015, o braço de trading da CGG tornou-se a primeira empresa a exportar a partir do Terminal de Grãos do Maranhão (Tegram), no Porto de Itaqui. Dois anos depois, em 2017, a CGG  Trading fez um acordo com uma série de bancos para reestruturar uma dívida de US$ 170 milhões. Participaram do acordo o Banco do Brasil, ABN Amro, Rabobank, Bradesco e Santander.

Desde o ano da reestruturação, o CEO tanto do grupo CGG quanto da CGG Trading é Luiz Conrado Sundfeld. Ele integra os conselhos de administração de uma série de grandes companhias e é Conselheiro Superior do Agronegócio na Fiesp, além de ser sócio de uma consultoria que apoia tradings, bancos e produtores em matéria de “regularização fundiária e ambiental em áreas de larga extensão nos diversos biomas”.

TERRA SANTA CONECTA MEGAINVESTIDORES À TI BATELÃO

Outra gigante da soja com histórico de sobreposições em Mato Grosso é a Terra Santa. Cronicamente endividada, a empresa vendeu sua divisão de produção de grãos para a SLC Agrícola, em acerto anunciado em 2020 e consumado em 2021, após aprovação do Cade. A transação alçou a SLC à condição de maior exportadora de grãos do Brasil.

Na outra mão, da divisão de terras da antiga Terra Santa, que ficou de fora do negócio com a SLC, tornou-se a Terra Santa Propriedades Agrícolas —  inicialmente TS Agro —, uma imobiliária rural dona de sete grandes fazendas no Mato Grosso, cinco delas arrendadas para a própria SLC, por um período de vinte anos. O valor de mercado da Terra Santa Agro antes da transação era de R$ 405 milhões. Hoje, a divisão de propriedades agrícolas vale R$ 2,5 bilhões e está listada no Novo Mercado da B3, um segmento do “nível mais alto de governança corporativa”.

Embora o negócio com a SLC tenha resolvido o problema crônico da velha Terra Santa, na outra ponta o povo Kawaiwete (também conhecido como Kaiabi) denuncia a invasão de parte da área delimitada da TI Batelão pelos reis da soja. Reivindicado desde a década de 1980 pelos indígenas, o processo demarcatório teve início em 2001. Em 2007, após a área ser reconhecida como indígena pelo Ministério da Justiça, fazendeiros moveram ação judicial e paralisaram o processo. Em 2016, a Justiça Federal confirmou a ocupação ancestral dos Kawaiwete na T.I. Batelão. No mesmo ano, foram identificados, pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR), dezenas de imóveis rurais sobrepostos ao território ancestral dos Kawaiwete.

Segundo o cacique Mairawe Kaiabi, que vive hoje no Território Indígena do Xingu, nenhum indígena vive dentro das áreas de ocupação mais antigas por causa exatamente da presença de sojicultores e madeireiros. A Terra Santa Propriedades Agrícolas reivindica 7.226,65 hectares da TI Batelão.

A corporação tem como sócia principal a holding de investimentos Bonsucex, de Silvio Tini de Araújo, que controla 43,2% das ações. Dono de um patrimônio de R$ 4,60 bilhões, segundo a Forbes, Silvio Tini tem participação em empresas de diversos setores, do bancário a bens de consumo, da metalurgia à construção, passando pelo agronegócio. Ele é também conselheiro do Museu de Arte de São Paulo (Masp), que elegeu a arte indígena como centro de sua programação em 2023.

A Terra Santa Propriedades Agrícolas tem outros dois grandes acionistas: a Laplace Finanças (23,0%) e a Gávea Investimentos (8,6%). A Laplace tem como sócios Renato Carvalho, vice-presidente do Conselho de Administração da Terra Santa e ex-funcionário do banco estadunidense Lehman Brothers, um dos propulsores da crise global de 2008; Allan Libman, ex-Credit Suisse, Santander e Unibanco; e Marcelo Saad, que trabalhou no banco americano Goldman Sachs, nos europeus Deutsche Bank e Credit Suisse e foi sócio na operação brasileira do francês Credit-Agricole Indosuez.

A Gávea foi fundada por Luiz Henrique Fraga e Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e “um dos investidores mais aclamados do Brasil”. A empresa tem investimentos em 30 países e mais de R$ 20 bilhões de ativos sob sua gestão. No agronegócio, além da Terra Santa Propriedades Agrícolas, a Gávea tem participações, por exemplo, na Fibria e na Natural One.

OBSERVATÓRIO DESTACA CASOS EM SÉRIE DE REPORTAGENS

As 1.692 sobreposições em terras indígenas reveladas pelo relatório “Os Invasores” comprovam que a violação dos direitos indígenas não é um mero subproduto do capitalismo agrário. Entre os atores dessa política de expansão desenfreada sobre os territórios tracionais estão algumas das principais empresas do agronegócio brasileiro e global.

Os casos descritos na pesquisa serão explorados também em uma série de vídeos e reportagens, publicada pelo observatório, detalhando as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.

Confira abaixo o vídeo sobre o dossiê:

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

quatro − quatro =