Zelic faleceu hoje após sofrer um AVC na última sexta feira. Ele deixa milhões de páginas de documentos sobre o genocídio indígena.
No dia 31 de março de 2023, Marcelo Zelic atravessou parte da plenária da Assembleia Legislativa do Pará em minha direção. Estava com uma inacreditavelmente cafona pochete que me fez sorrir. Me deu um abraço e falou baixinho: “conseguimos”. E seus olhos umedeceram num choro suave e emocionado. Foi um abraço rápido, mas cheio de significados. Um tempo depois estávamos lado a lado no púlpito da ALEPA explicando um pouco sobre a obra que era nosso motivo de estar ali: os três tomos do Relatório da Comissão da Verdade do Pará.
Por Ismael Machado, no Jornalistas Livres
Marcelo Zelic morreu hoje, no dia 08 de maio de 2023, vitimado pelas consequências de um AVC, o quarto. Sobrevivera a três. Este lhe foi fatal. Angelina Anjos nos deu a notícia no grupo que mantivemos ao longo dos últimos anos para discutir as temáticas e resoluções dos trabalhos relacionados aos livros da Comissão da Verdade.
Respirei fundo. Em casa tocava uma canção nordestina chamada ‘Sete Dias’, de Henrique Cartaxo, que exala melancolia. Saí para sentar no banco da pracinha aqui ao lado, observando um casal de passarinhos construir um ninho numa pequena árvore. Uma tarde absurdamente bela me abraçava.
Zelic me foi apresentado por outra pessoa que se foi. Paulinho Fonteles. Quando me falou sobre ele a primeira vez, Paulinho era todo entusiasmo. No Instituto Paulo Fonteles me mostrava os arquivos do Armazém Memória, a hemeroteca viciante que Zelic havia disponibilizado. Um trabalho que merecia e merece todas as reverências possíveis.
Depois foi um bate-papo rápido em São Paulo no lançamento do livro sobre Paulo Fonteles, já sem a presença de Paulinho, que saíra de cena um ano antes. Me deu a impressão de ser um homem castigado pelas manias, pelo despreocupar-se com a própria saúde, pelo cigarro e pelas pequenas obsessões. Mas já o coloquei naquele lugarzinho especial das pessoas queridas.
Zelic foi fundamental nos dois, três anos de discussões sobre o relatório da Comissão da Verdade, quando ficávamos os quatro- Angelina e Marco Apolo, além de nós- tentando organizar o quase não organizável material que tínhamos à mão para trabalhar. Era ele quem indicava os caminhos que deveríamos percorrer, já calejado por experiências similares anteriores. Era didático e paciente, com sua voz rouca de cigarros.
Tinha uma preocupação maior com a questão indígena. Era seu ponto de maior inflexão. Um dia chegou a me convidar para bolarmos algo a partir de tanto material que possuía sobre o tema. Os atropelos das demandas não nos permitiram seguir adiante.
Era ranzinza e teimoso também quando necessário. Uma vez brinquei que ele aos 80 seria complicado de lidar. Ele riu apenas.
Nos dias que antecederam e sucederam o lançamento do relatório nos encontramos em Belém. Ele se hospedou com Pedrinho e Angelina lá no Conjunto Maguari. Passamos uma tarde entre um churrasco divino feito pelo Pedro e as conversas sobre a tarefa que conseguimos realizar e o que poderia ser feito ainda.
Depois do lançamento, almoçamos olhando o Rio Guamá, ele não querendo ficar nem um momento sequer distante de seus exemplares. Havia sido homenageado com uma comenda na ALEPA. E como isso foi importante, pensando agora.
De noite fomos ao The Beatles e ele se encantou com o lugar. Fez diversas imagens e comentários sobre o lugar. E numa nem um pouco criativa ideia, fomos tentar reproduzir a famosa travessia de rua do Fab Four. Foi uma noite agradável a não mais poder e que ficará na memória como um momento único, percebo agora, em mais uma daquelas lições de que viver cada instante e apreciá-lo como único é cada vez mais fundamental.
Não chorei por Zelic. Fiquei num mutismo estranho. De certa forma eu já esperava por esse desfecho. Não me agarrei a santos e orações porque minha fé de vida não me leva a esse lado religioso. Mas pensei nele com carinho e aflição desde que Angelina nos alertou sobre a delicadeza de seu estado.
Zelic é mais uma perda, dessas tantas que nos doem pela importância que causam, pela ausência insubstituível que passa a se apresentar e pela lacuna que sabemos não será preenchida.
Quando me abraçou na ALEPA e chorou brevemente no meu ombro, eu apenas repeti: ‘conseguimos, companheiro’.
Deveria ter agradecido mais enfaticamente talvez. Mas Zelic sabia seu lugar no mundo, sem precisar gritar por isso ou tentar forçar portas e janelas.
Dia desses o vi na televisão em um filme que falava sobre a ditadura. O ator Marcelo Zelic, ainda gordo, me fez rir muito, mas de alegria. Fiz uma foto da tela e mandei a ele. Me passou um áudio explicando pacientemente o trabalho tim-tim por tim-tim.
Assim era o Zelic.
Que consigamos sempre honrar sua memória.
–