‘Fácil’ e ‘legal’, desmatamento no Cerrado bate recorde e avança sem resistência

Cidades da Bahia, onde houve flexibilização das licenças de corte, lideram ranking das mais desmatadas nos últimos anos

Por Giovana Girardi, Rafael Oliveira, Agência Pública

O recorde de alertas de desmatamento do Cerrado registrados nos quatro primeiros meses deste ano – os mais altos da série histórica do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), iniciada em 2018 –, levantou um alerta: “está muito fácil” suprimir vegetação no bioma.

A constatação, feita pelo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, reflete o fato de que uma boa parte do desmatamento no Cerrado está ocorrendo de forma legal. Ou seja, há uma autorização, em geral por parte dos órgãos ambientais estaduais, para acontecer.

“Vários estados têm criado mecanismos para autorizar a supressão de vegetação de forma automatizada. A pessoa entra no site do órgão ambiental, coloca os dados, a gleba, pinta a área que quer desmatar e está feito, já consegue”, disse Agostinho à Agência Pública.

“Desmatar legalmente passou a ser fácil. Ninguém olha inventário de animais no terreno, se ali vivem espécies ameaçadas, quais são plantas que têm na área. Só delimitam 20% e passam o correntão nos 80%. Não se avalia nem qual é o melhor lugar para deixar a Reserva Legal. Quando é muito automatizado, acaba com a análise técnica”, criticou.

Pelo Código Florestal, propriedades rurais localizadas no bioma precisam preservar apenas 20% da vegetação nativa. Com exceção se for Cerrado dentro da Amazônia Legal – lá a proteção sobe para 35%. “Então os caras estão derrubando 80% da propriedade. Estamos percebendo que existe uma real certeza de que se não desmatarem agora, não vão conseguir mais depois”, continuou o presidente do Ibama, em uma tentativa de explicar o aumento mais recente nos cortes.

“O problema é que o mundo não está olhando se o desmatamento é legal ou ilegal, está olhando para o dado do satélite”, afirma Agostinho, em referência às cobranças feitas especialmente de países europeus para que não haja compra de produtos provenientes de desmatamento.

A taxa anual (medida sempre entre agosto de um ano a julho do seguinte) de desmatamento no bioma teve três altas consecutivas nos últimos anos, de acordo com outro sistema do Inpe, o Prodes. Subiu 25% de 2019 para 2020 (foi de 6.319 km² para 7.905 km² ); mais 8% no ano seguinte (para 8.531 km²) e teve um novo salto de 25% em 2022, chegando a 10.689 km². Comparando com 2019, o aumento foi de 69%.

E a motosserra continua acelerada neste ano, de acordo com dados preliminares. Segundo o monitoramento feito pelo Deter – que é um sistema mais ágil, porém menos preciso, voltado para orientar a fiscalização a partir de alertas que indicam onde pode estar ocorrendo o problema – foram derrubados 2.206 km² entre 1º de janeiro e 30 de abril, alta de 17% em relação a 2022 (1.886 km²). Em comparação com a média do período para 2019-2022 (1.521,75 km²), o aumento foi de 45%

O monitoramento dos últimos anos vêm apontando para uma predominância do desmatamento no Cerrado na região conhecida como Matopiba, que engloba partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Em 2021, segundo levantamento feito pelo MapBiomas, a região por onde vem se expandindo o agronegócio respondeu por 72,5% do desmatamento do Cerrado.

Os dados referentes a 2023 mostram uma concentração dos cortes particularmente na Bahia. Entre as dez cidades com mais alertas de desmatamento do Deter no Cerrado entre janeiro e abril, seis estão no oeste do estado. São cidades como São Desidério e Formosa do Rio Preto, que estão entre as mais desmatadas também nos últimos anos. Lá, a vegetação nativa tem sido substituída por culturas como soja e algodão.

A declaração de Rodrigo Agostinho vai ao encontro da política ambiental aplicada na última década no estado. Levantamento da Pública com base em portarias de autorização de supressão da vegetação nativa (ASVs) especificamente para o oeste da Bahia mostra que nos dois últimos anos essas licenças bateram recordes.

Em 2022, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), órgão do estado responsável pela fiscalização ambiental, publicou pelo menos 240 ASVs na região oeste, dando o aval para o desmate de cerca de 2.381 km², uma área maior que a cidade de Palmas (TO). No ano anterior, a área autorizada no Cerrado baiano já havia somado mais de 1.941 km², quase o tamanho da cidade de Santa Maria da Vitória, que fica localizada na região. A título de comparação, as autorizações para desmate na região oeste entre 2015 e 2020 variou entre 400 km² e 1.195 km².

Neste ano, o Inema autorizou o desmatamento de 120 km² nos quatro primeiros meses de 2023, em um total de 17 ASVs. Os municípios do oeste baiano com mais área autorizada para desmate foram São Desidério (64 km²), Santa Rita de Cássia (33 km²) e Barreiras (11 km²).

O ritmo desacelerou um pouco, mas ambientalistas que atuam na região estimam que parte do desmatamento que está ocorrendo pode ser de autorizações dadas ainda no passado. O prazo das licenças varia de um a cinco anos, podendo ser prorrogado, portanto um desmatamento legal autorizado em anos anteriores pode estar sendo concretizado agora.

Desmatamento legais, porém irregulares

Um estudo do Imaterra (Instituto Mãos da Terra) lançado no ano passado já havia mostrado que as supressões autorizadas pelo governo da Bahia correspondem à maior parte do desmatamento captado pela plataforma MapBiomas entre 2014 e junho de 2021. Em 2019 e 2020, as ASVs chegaram a totalizar uma área maior do que o desmate efetivo captado pelo MapBiomas.

A mesma organização, em parceria com a UFBA (Universidade Federal da Bahia), também constatou que, entre janeiro de 2010 e julho de 2020, o Inema emitiu mais de quatro mil portarias de autorização de supressão de vegetação nativa em todo o estado, dando aval para o desmate de mais de 8 mil km², quase 27 vezes a área continental de Salvador – a maior parte da área autorizada se concentrou em 12 municípios do Cerrado baiano. A realidade destoa do Mato Grosso, por exemplo, onde 580 autorizações foram concedidas entre 2009 e 2018, com a maior parte do desmatamento ocorrendo de maneira ilegal.

Pesquisadores do Imaterra e da UFBA fizeram ainda uma análise amostral mais detalhada sobre os processos administrativos de 16 autorizações de supressão de vegetação no oeste da Bahia, totalizando o desmatamento de 500 km². Eles lançaram em julho do ano passado o relatório intitulado “Desmatamentos irregulares no Cerrado baiano: uma política de estado”, com a conclusão de que todas as 16 ASVs possuíam irregularidades e inconformidades em relação às leis ambientais.

O trabalho teve continuidade de lá para cá e mais 10 autorizações foram investigadas pelo grupo. “Todos estavam em não conformidade técnica. Nenhum deles estava correto”, disse à Pública a bióloga Tatiana Bichara Dantas, pesquisadora do Imaterra que participou das análises do relatório.

Foram identificados pelos pesquisadores erros, por exemplo, no registro das áreas de preservação permanente (APP) e da Reserva Legal das propriedades que, se submetidos a um técnico, provavelmente levariam a uma desaprovação da supressão. Também foram observados na amostra analisada conflitos com comunidades tradicionais, uso de técnicas para captura de fauna que podem ser fatais e pareceres assinados por servidores sem qualificação técnica.

“Durante a análise dos processos, foram identificadas muitas irregularidades e inconformidades que afetam diretamente a biodiversidade e seus serviços ecossistêmicos, e as comunidades tradicionais que habitam a região de estudo, tornando as concessões de ASVs analisadas legalmente questionáveis”, informa o relatório.

“É claro que os proprietários querem ter a legitimidade para dar o uso para a propriedade, mas o órgão ambiental que teria por competência ser o avaliador, o tomador de decisão sobre a viabilidade tanto da implementação do empreendimento quanto da conservação dos recursos naturais, está abrindo mão disso, dando prioridade para o uso privado em prol de um uso público”, complementa Tatiana.

O Cerrado já perdeu cerca de 50% da cobertura vegetal nativa e diversos pesquisadores têm alertado para o risco que a perda da vegetação pode ter sobre os recursos hídricos do país. É no Cerrado onde nascem algumas das principais bacias hidrográficas do Brasil. A região do oeste baiano, cortada pelos rios Rios Grande e Corrente, abastece, por exemplo, o rio São Francisco.

Para Rodrigo Agostinho, do Ibama, o desmatamento no Cerrado só será contido se houver um conjunto de medidas que, por um lado, estabeleçam áreas a serem protegidas – por meio da criação de unidades de conservação, por exemplo –, e por outro criem alternativas e incentivos econômicos para que o produtor não desmate tudo o que ele é autorizado a fazer pelo Código Florestal.

Áreas de cerrado estão sendo derrubadas por tratores com correntes — Foto: Reprodução/TV Globo

‘Libera geral’ começou há mais de uma década na Bahia

A Bahia é governada pelo PT desde 2007, quando o atual senador Jacques Wagner foi eleito governador. Depois do segundo mandato, ele fez seu sucessor, Rui Costa, que hoje é ministro da Casa Civil de Lula. Costa também governou o estado por oito anos e ajudou a eleger mais um petista, Jerônimo Rodrigues, atual governador.

Ao longo do período do partido à frente da administração estadual, houve um processo de desregulamentação e flexibilização da legislação ambiental, segundo fontes ouvidas pela Pública. O desmonte incluiria o esvaziamento do poder de órgãos participativos, redução na transparência e o estabelecimento da “Licença Ambiental por Adesão e Compromisso” (LAC) — o autolicenciamento que a bancada ruralista tenta implementar para todo o país e que os parlamentares do PT na Câmara são linha de frente na oposição.

Quem implementou boa parte dessas mudanças foi o gaúcho Eugêncio Spengler, que comandou a Secretaria Estadual de Meio Ambiente entre 2010 e 2017. Falecido em 2021, ele teve sua gestão criticada em carta aberta de servidores do Inema ainda em 2015.

Outra figura central no “libera geral” de autorizações de desmatamento durante toda a última década foi Márcia Cristina Telles, uma servidora de carreira da Secretaria de Meio Ambiente da Bahia. Desde 2012, ela ocupou quase ininterruptamente a diretoria geral do Inema, órgão responsável não só pelas ASV como pelas outorgas de recursos hídricos — que também passam por um “libera geral”, como mostrou uma série de reportagens da Pública em 2021. Por sete meses, Telles chegou a acumular os cargos de diretora geral do Inema e de secretária interina do Meio Ambiente. Depois, deixou o Inema e foi secretária efetiva da Sema até o final da gestão de Rui Costa. Em fevereiro deste ano, voltou a ser nomeada diretora geral do Inema por Jerônimo Rodrigues.

Foi durante o período de Telles à frente do órgão ambiental que o desmatamento e a utilização de vastas quantidades de recursos hídricos se impulsionou no Cerrado baiano, transformando-se em política de estado. Em mais de uma oportunidade, ela foi alvo de manifestações contrárias a sua gestão por parte da sociedade civil e por organizações que defendem o meio ambiente.

O Inema foi procurado pela Pública, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem. Se houver resposta, o texto será atualizado.

Imagem: Desmatamento reflete no clima e na falta de recursos hídricos, impactando comunidades locais – José Cícero/Agência Pública

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