A Câmara dos Deputados dá urgência a um projeto de lei genocida. Por Rubens Valente

Brasília a Quente / Agência Pública

A última quarta-feira (24) tornou exposto o processo de sabotagem da Câmara dos Deputados contra os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, patrocinada principalmente por ruralistas e bolsonaristas ante as dificuldades, que para muitos pareceu omissão deliberada, da articulação política do governo. Passado o impacto inicial, é necessário averiguar as reais consequências na organização administrativa do governo Lula e qual o desdobramento na execução das políticas públicas para os povos indígenas.

Ao contrário do que pode parecer pela leitura do noticiário, o verdadeiro desastre para o futuro dos povos indígenas não está nem na possível alteração da Medida Provisória nº 1154, assinada por Lula em 1º de janeiro e que precisa ser aprovada pelo Congresso até a próxima quinta-feira (1), sob pena de caducar. Ao forçar a transferência do MPI (Ministério dos Povos Indígenas) para o MJSP (Justiça e Segurança Pública) a palavra final, no âmbito dos ministérios, sobre o processo de demarcação de terra indígena, os parlamentares do Centrão pretendem colocar um obstáculo na gestão da ministra Sônia Guajajara.

Se persistir, a alteração é um dificultador e esvazia os poderes de Guajajara, mas ainda é contornável pela ação de um ministro da Justiça e de um presidente da República de fato comprometidos com os direitos indígenas. Mesmo com a mudança, é importante destacar que o decreto de homologação, na realidade o documento fundamental para a segurança jurídica do processo, continuaria sendo assinado pela Presidência da República. Os grupos de trabalho voltados para identificação, delimitação e demarcação das terras indígenas também continuariam sendo instalados e apoiados pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), que por sua vez seguiria vinculada ao ministério de Guajajara.

A alteração em andamento seria um retrocesso, que ainda pode e deve ser combatida em todas as instâncias pelo governo, dentro e fora do Legislativo, entretanto não é, do ponto de vista técnico, um cenário de fim de mundo. É bom lembrar que o Ministério da Justiça demarcou todas as terras indígenas no país desde o fim da ditadura militar. Ou seja, no campo administrativo voltaríamos às práticas adotadas pela União de 1988 a dezembro de 2022, período em que mais de 450 terras indígenas foram demarcadas pelo Ministério da Justiça e depois homologadas por diferentes presidentes da República, com exceção de Jair Bolsonaro e Michel Temer, por decisões próprias e não por questões legais.

Mas o Projeto de Lei número 490/2007, cuja urgência foi aprovada pelo plenário da Câmara na quarta-feira e pode ser votado ainda nesta terça-feira, é muitíssimo mais devastador. Praticamente vai impedir novas demarcações no país. Primeiro, ao determinar a data de 5 de outubro de 1988 como suposto “marco temporal”. Ou seja, só irá aceitar como passível de demarcação de terra indígena o território ocupado por indígenas naquela data.

“Novos pedidos que não tiverem essa comprovação serão negados, caso a lei seja aprovada, e o processo de aprovação caberá ao Congresso – e não ao Executivo. Além disso, fica proibida a ampliação das reservas indígenas já existentes”, conforme alertou, em requerimento protocolado na Câmara, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), presidente da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara dos Deputados – comissão que, aliás, nunca foi ouvida ao longo da tramitação do PL.

A essência de um autêntico golpe nos poderes presidenciais está em retirar de Lula a capacidade, assegurada pela Constituição e exercida pelos presidentes desde 1988, de homologar terras indígenas. Em uma Casa hoje abertamente reacionária, tomada por parlamentares orgulhosos do mais ignorante sentimento anti-indígena, seria praticamente o fim das demarcações de terras indígenas.

E o PL vai muito além. O substitutivo de Arthur Maia (DEM-BA) permite, em seu artigo 16, nada menos que a “retomada”, pela União, de uma terra indígena já demarcada. Ela seria revertida para o programa de reforma agrária. É difícil encontrar, na história do Congresso brasileiro desde 1988, tamanha violência contra os indígenas. O motivo alegado para o despejo é “alteração dos traços culturais da comunidade”. A armadilha montada contra os indígenas pela extrema-direita: prega que os indígenas devam ser “cada vez mais como nós”, conforme discursava Bolsonaro na Presidência. Mas quando eles se tornam “parecidos conosco”, automaticamente perdem suas terras. Uma arapuca cínica e certamente racista: quem ditará se houve ou não as “alterações” será a máquina do Estado, majoritariamente cristã e branca.

É o retorno da falsa tese da “emancipação indígena”, que a ditadura militar tentou colocar em prática na segunda metade dos anos 1970 mas acabou rechaçada por uma forte reação da sociedade civil. O projeto assimilacionista – que nem a ditadura ousou implementar – propõe a transformação, à força, de grupos indígenas em pequenos agricultores que poderão, no futuro, inclusive vender suas propriedades. Assim, também representa um crime contra as futuras gerações indígenas.

É evidente que o traço característico da cultura é o dinamismo, a adoção de novas práticas, costumes e modos de fazer e viver, sem que isso signifique perda da identidade cultural. Exigir que os traços culturais de qualquer comunidade sejam estáticos no tempo, tal qual uma fotografia de quando os europeus violentamente invadiram estas terras, é abrir a possibilidade de extinguir-se qualquer efetiva proteção normativa aos direitos indígenas”, escreveram os defensores públicos federais da DPU em nota técnica emitida nesta quinta-feira (25).

O PL também altera o uso exclusivo do território pelos povos indígenas. “As novas regras abrem espaço para a exploração hídrica, energética e mineração e garimpo, expansão da malha viária, caso haja interesse do governo, e libera a entrada e permanência das Forças Armadas e Polícia Federal, sem a necessidade de consultar as etnias que ali habitam. Fica também liberado o cultivo de plantas geneticamente modificadas em terras indígenas e o contato com povos isolados em territórios de ‘utilidade pública’”, informou Xakriabá no seu requerimento.

É um ataque direto aos isolados cujo paralelo mais recente só vamos encontrar na ditadura militar. A alteração extingue a “política do não contato” que vigora há quase 40 anos, estabelecida em meados dos anos 1980 como um dos pilares da política indigenista brasileira na Funai a partir da iniciativa do sertanista Sydney Possuelo e apoiada desde o começo por diversos outros especialistas.

O contato com os isolados muitas vezes desnecessário ou feito sob argumento de um genérico “interesse nacional” está na raiz da extinção ou quase extinção de etnias inteiras. Foi uma prática governamental adotada ao longo de muitas décadas e só recebeu um freio em meados dos anos 1980, após o fim do regime militar. A permissão aos contatos desnecessários e ideologicamente motivados não tem outro nome, é genocídio.

O mesmo pode ser dito sobre o direito à terra. Para diversos grupos indígenas que lutam por suas terras há décadas, brecar as demarcações também será um autêntico genocídio, se não imediato, a longo prazo, pois a terra é condição fundamental para os usos, costumes e tradições dos povos indígenas, conforme previsto ainda na Constituição de 1934 e repetido em todas as Constituições posteriores. Se as mudanças na MP foram um tratoraço, como qualificou a imprensa, a aprovação desse projeto será uma hecatombe.

A própria tramitação do PL 490 é uma dessas típicas aberrações que se normalizaram no Congresso Nacional nos últimos anos e só se tornaram realidade a partir da ação ideológica de parlamentares e do próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que deu vazão, no comando da Casa, a inúmeras investidas contra os direitos indígenas. Para começar, o projeto na Câmara tramita à revelia da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que o Brasil já tornou lei por duas vezes. A Convenção prevê uma consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas inclusive, como é o caso, quando estão em jogo medidas legislativas capazes de afetá-los.

O projeto está indo de um lado para outro na Casa há 16 anos, já recebeu 13 apensos e foi arquivado e desarquivado três vezes. O que foi à votação no plenário na última quarta-feira é um substitutivo que amplia enormemente, como vimos, o texto original apresentado por Homero Pereira (PR-MT). O substitutivo de Arthur Maia foi aprovado em 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro, na Comissão de Constituição e Justiça, então comandada por uma bolsonarista de carteirinha, Bia Kicis (DF), e sob protesto da oposição que desejava pelo menos abrir a discussão sobre a matéria. Em 2009, o PL já havia sido rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial. Nada impediu que o projeto se tornasse uma pauta urgente, sob as bênçãos de Lira.

Como cereja do bolo da manobra anti-indígena, o requerimento de urgência foi apresentado pelo deputado federal Marcos Antônio Pereira Gomes, o “Zé Trovão” (PL-SC). Bolsonarista, foi um dos líderes incendiários dos protestos golpistas e inconstitucionais no 7 de Setembro de 2021. Teve sua prisão decretada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, fugiu para o México e se entregou em outubro de 2021. No ano seguinte, Moraes revogou a prisão domiciliar, mas determinou o uso da tornozeleira eletrônica. Com esse aparelho, “Zé Trovão” foi diplomado deputado federal em dezembro de 2022.

Que um deputado com esse passado antidemocrático possa abalar profundamente alicerces da política indígena brasileira não é mais espantoso no Brasil. O Congresso navega com orgulho em águas reacionárias e anti-indígenas.

Ao aprovar o requerimento de urgência, a Câmara dá um drible nas comissões e leva o PL direto para votação no plenário. O truque impede a discussão democrática. Repetindo o que escrevi acima: o Projeto de Lei que pretende adulterar profundamente a política indigenista sequer foi objeto de avaliação da comissão da Câmara criada justamente sobre o tema dos povos indígenas. A deputada Célia Xakriabá já havia aprovado, na comissão, o requerimento de uma audiência pública a fim de discutir a matéria. Seus colegas solenemente pisaram sobre o próprio Legislativo.

Os múltiplos ataques aos direitos indígenas contidos no Projeto de Lei coincidem com o julgamento, pelo STF (Supremo Tribunal Federal), do “marco temporal” anunciado e adiado pelo menos sete vezes nos últimos anos. Essa “oportunidade”, longe de ser coincidência, não é escondida pelos próprios bolsonaristas.

“A temática está sob os holofotes nacionais, vez que o Supremo Tribunal Federal irá julgar, em sede de recurso extraordinário, o regramento acerca do marco temporal. O agendamento para o dia 7 de junho, [sic] requer um movimento rápido e assertivo do Congresso Nacional”, escreveu a deputada federal Caroline de Toni (PL-SC) em requerimento apensado ao PL 490. Mais direto, impossível.

As derrotas do governo na quarta-feira (24) levantaram muitos pontos de interrogação que merecem atenção de toda a sociedade que se preocupa com o destino dos povos indígenas e meio ambiente: as dificuldades, a aparente apatia e, nas primeiras horas, o silêncio da articulação política do Palácio do Planalto na defesa do setor socioambiental, a vergonhosa “comemoração” no perfil do PT no Senado no Twitter sobre o resultado da votação acerca da MP 1154 e a liberação, pela liderança do governo, do voto dos parlamentares da base durante a análise de regime de urgência para o PL 490.

Nos dias seguintes ao “massacre”, o governo procurou valorizar Sônia e Marina e apresentar justificativas para seu comportamento considerado, no mínimo, muito fraco e suspeito. Sobre o PL 490, por exemplo, a bancada do PT votou contra, mesmo com a liberação de voto, e fontes “em off” – é preciso precaução nesta leitura, são entrevistados anônimos – disseram aos jornalistas que a liberação da bancada foi uma forma de “evitar colar no Planalto mais uma derrota na Câmara dos Deputados”. Pode até fazer sentido, mas que pegou muito mal.

Como vimos acima, o PL 490 é muito mais que uma derrota do governo, é um machado colocado sobre a cabeça dos indígenas, com repercussão internacional, que ameaça a imagem que o país vem tentando reconstruir desde janeiro. Com a Câmara articulando essa vergonha que mancha a história do país, o governo também não pode errar pela tergiversação. A conta é enorme e todos pagam.

Destaque: Coppo di Marcovaldo, Inferno (1260-70). Fragmento de mosaico do teto do Batistério de Florença

 

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