Abaixo do chão, onde ninguém vê, os fungos fazem, em silêncio, um trabalho extraordinário, associando-se com as raízes das plantas
O que é o Micélio-SUMAÚMA
Conheça o programa de coformação de jornalistas-floresta de nossa plataforma trilíngue baseada na Amazônia e acesse parte do conteúdo especial
Micélio é o nome do programa de coformação de jornalistas-floresta de SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo. Essa maravilhosa tessitura dos fungos contém nossas aspirações de ser nem um indivíduo nem um grupo, mas uma relação. Micélio-SUMAÚMA é uma relação e traz para o jornalismo o foco na relação – o movimento da floresta, o movimento da natureza.
Cada edição de Micélio-SUMAÚMA acontece em uma região da Amazônia. Esta primeira está em curso desde maio, em nossa base, no Médio Xingu, na região de Altamira. A equipe de SUMAÚMA está em processo de coformação com 14 pessoas, a maioria jovens. Há indígenas dos povos Xipaya e Yudjá/Juruna; há ribeirinhos das reservas extrativistas do rio Iriri e do rio Xingu e da comunidade de Maribel; há uma pescadora, uma quilombola, uma camponesa e há periféricos da zona urbana de Altamira. Como SUMAÚMA tem convicção de que a proteção da floresta depende do fortalecimento das mulheres, elas são maioria. Todes recebem bolsa mensal por um ano e equipamento.
Além de seis encontros presenciais coletivos – o primeiro deles ocorreu na Reserva Extrativista do Rio Xingu e durou nove dias –, os ‘miceliantes’, como são chamados, têm acompanhamento constante de ‘sementoras’, jornalistas de SUMAÚMA. É um programa de coformação porque a equipe de SUMAÚMA ensina o jornalismo ético e de profundidade que sabe fazer, e as pessoas-floresta nos ensinam como contam suas histórias, já que na Amazônia os indígenas tecem narrativas e dão notícias há mais de 10 mil anos. Dessa interação miceliar, descobriremos juntes novos jornalismos.
Abrimos o “galho” Micélio na plataforma trilíngue de SUMAÚMA para compartilhar com os leitores parte do conteúdo escrito preparado para os participantes. No segundo semestre esperamos publicar também parte de suas próprias reportagens. A ideia do Micélio-SUMAÚMA é coformar jornalistas-floresta para a redação de SUMAÚMA, para outras agências de jornalismo independente na Amazônia, para a criação de iniciativas que partam delas e deles – porque miceliar é preciso.
Eliane Brum
Semeadora de SUMAÚMA
Sabe o que é a névoa branca que vemos saindo do chapéu dos cogumelos maduros quando um feixe de luz atravessa a copa das árvores e atinge esses organismos vivos?
Tal névoa é formada por bilhões de esporos, como são chamadas as células de reprodução dos fungos. Cada esporo carrega metade do material genético (DNA) para gerar outro cogumelo. Os esporos são levados pelo vento, por insetos e outros animais para diversos locais, dispersando as espécies de fungo.
Quando o esporo encontra um substrato, que é sua comida, na temperatura, umidade e luminosidade adequadas, ele germina, gerando filamentos bem finos, invisíveis a olho nu, denominados hifas. Essas hifas se ramificam e formam uma rede chamada micélio.
O micélio primário gerado do esporo possui apenas um núcleo. Sozinho, ele não consegue gerar outro cogumelo. Esse micélio precisa então encontrar outro micélio gerado por um esporo com material genético complementar e compatível com ele. Para que isso aconteça, as pontas das hifas são atraídas por uma incrível comunicação química dos fungos – as paredes e membranas das extremidades são desfeitas temporariamente para que o núcleo de uma hifa passe para a hifa do outro micélio. É como uma relação sexual dos fungos. O micélio formado de hifas com dois núcleos possui todo o material genético da espécie e é chamado de micélio secundário, que é capaz de gerar outro cogumelo.
Ao andarmos pela floresta, ficamos encantados com os formatos, tamanhos, cores e cheiros dos cogumelos. Mas eles, na verdade, são como os “órgãos genitais” de parte de espécies de fungo. Já o que equivale ao corpo do fungo fica na forma de micélio. O maior tempo do ciclo de vida dos fungos filamentosos é na forma de micélio.
Uma visita à floresta é a fotografia de um momento – e o trabalho dos fungos não é visível. Mas, se olharmos para a floresta como se ela fosse um filme, a magnífica ação dos fungos poderá ser vista pela transformação de folhas, frutos, flores, galhos e troncos das plantas mortas, assim como ocorre com os excrementos dos animais e os próprios animais quando mortos. Tudo isso se converte em matéria orgânica que promove o ciclo de nutrientes que mantêm a floresta viva.
Abaixo do chão, onde ninguém vê, os fungos fazem, em silêncio, um trabalho extraordinário, associando-se com as raízes das plantas. Tais associações são chamadas de micorrizas. A planta fornece ao fungo principalmente açúcares gerados pela fotossíntese, e o fungo fornece à planta nutrientes como minerais e umidade absorvidos do solo. Essa associação simbiótica, como é denominado o encontro de longo prazo em que ambas as espécies se beneficiam, favoreceu a evolução das plantas e permitiu aos vegetais dominarem a parte terrestre do planeta.
A rede de micélios no solo e subsolo age também como uma rede de internet entre as plantas. Um exemplo: se uma planta é atacada por insetos, ela envia uma mensagem química por meio dos micélios para que as plantas de sua vizinhança recebam a informação e produzam substâncias que possam repelir os insetos, protegendo e preservando a espécie. Tais substâncias muitas vezes são produzidas pelos fungos endofíticos, fungos que vivem pelo menos uma parte de seu ciclo no interior das plantas vivas sem prejudicá-las. Cientistas relatam que todas as plantas estudadas até o momento realizam associação endofítica, resultado de uma coevolução de pelo menos 400 milhões de anos entre os fungos e as plantas. Hoje é comprovado que os princípios ativos de várias plantas medicinais são produzidos pelos fungos que vivem dentro delas.
Já os fungos parasitas causam prejuízo e até a morte de seu hospedeiro. No caso dos insetos, um dos exemplos mais intrigantes são as “formigas zumbis”. Os esporos germinam em uma formiga saudável, e o micélio produz substâncias que alteram o comportamento dela e a fazem subir em uma planta em alturas que variam de alguns centímetros a mais de 2 metros, a depender da luminosidade do local. Dominada pelo fungo, a formiga morde a planta, fixando-se nela, e morre. O corpo do inseto se torna alimento do micélio, que cresce e fecha seu ciclo de vida com a formação da estrutura reprodutiva. Essa, por sua vez, vai então formar outros esporos, que terão maior dispersão proporcionada pela altitude que a formiga alcançou.
Se há micélios inimigos dos insetos, também há micélios cultivados pelos insetos fungicultores: muitas espécies de formiga e cupim vivem em associação com os fungos. Os insetos não conseguem digerir a celulose das plantas que carregam com tanta determinação para seus ninhos. São os micélios que têm a capacidade de produzir enzimas que quebram macromoléculas – como as celuloses e hemiceluloses – em açúcares e fornecem o alimento aos insetos. Muitos acham que os insetos cultivam os fungos, mas será que não são os fungos que dominam os insetos para que busquem alimentos para eles?
Os liquens vistos por toda parte da floresta, nos troncos das árvores, no chão e nas rochas, são outro tipo de associação simbiótica dos fungos. Nesse caso, eles se associam com as algas e bactérias. Os fungos oferecem proteção e abrigo, e as algas e bactérias retribuem com uma fonte constante de nutrição. Juntos, conseguem viver em ambientes nos quais nenhum deles conseguiria viver sozinho.
Por fim, os mais encantadores e misteriosos de todos os micélios aos olhos e emoções dos seres humanos são seguramente os micélios bioluminescentes. Cientistas estimam que há 160 milhões de anos tenha existido um ancestral comum dos cogumelos do gênero Mycena, o gênero com o maior número de espécies de fungo bioluminescente conhecidas até o momento. Sabe-se que a luz é resultado de reações químicas semelhantes com o que ocorre nos vaga-lumes. A ciência, no entanto, ainda não descobriu ao certo o papel ecológico da bioluminescência nos fungos. Muitos pensam que serve para a reprodução dos fungos, mas ainda não conseguem explicar por que em algumas espécies só o micélio é bioluminescente e o cogumelo não.
Os micélios transformam, alimentam e conectam a vida e a morte entre os seres da floresta. E assim continuam o processo de evolução de mais de 1 bilhão de anos.
*Noemia Kazue Ishikawa. Bióloga e Doutora em Recursos Naturais, é pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Atua na área de Micologia Ambiental.
*Ruby Vargas-Isla. Engenheira Agrônoma e Doutora em Botânica, é bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Atua na área de Fungicultura e Micoturismo.
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COGUMELOS DO GÊNERO ‘COPRINELLUS’ ENCONTRADOS EM ALTAMIRA. FOTO: ALESSANDRO FALCO/SUMAÚMA