Idolatrias. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Não há homenagem a herói, sábio ou santo que não escape à indiferença de quem passe por ela quotidianamente. As glórias são coisa do instante. Para além do seu tempo, é só esquecimento e indiferença. Quando muito, são lembrados em livros de história lidos por alunos desinteressados. Não há estátua que não acabe pontilhada de excrementos de pombos a enfeitar o vai e vem de uma multidão perdida com as mesquinharias do seu presente. Alguém distraído com uma cena assim poderia pensar que não há ídolos nesta Terra. Engana-se. Há os ídolos do presente. Por todos os lados. De todos os tipos.

Há os ídolos de metais, plásticos e vidros. Carregados para todos os lugares e ostentados não apenas pelas suas utilidades, mas, sobretudo, pelo que tê-los significa. As idolatrias das coisas são celebrações de si mesmo pelo olhar do outro. Um fazer sentir-se especial não por ser alguém especial, mas por ter algo especial. Algo que todos dizem ser especial pelas tecnologias especiais que tem. E que é caro porque tem as altas tecnologias que mal se sabe usar.

Também há os ídolos de carne e osso. Muitas vezes sem um bom caráter a animar as carnes. Idolatram-se genocidas, estelionatários, picaretas e heróis das mais variadas torpezas. Não se idolatra o que fazem, mas o que significam. E os significados quase sempre são melhores que o caráter. O que fazem, pouco importa, pois tudo vira motivo para reforçar o significado. Só se vê o significado. Pelo significado. Através do significado. Se fulano significa vida, quando tortura e mata é pela vida. Se significa honestidade, quando trai e rouba é por honestidade. A idolatria é cega aos fatos. Cega à realidade. Cega a tudo que não nos permita nos vermos como pessoas melhores do que somos porque idolatramos alguém.

Há, ainda, a mais abstrata das idolatrias. A das ideias. Quase sempre modelos de vida vividos só na cabeça de alguém que, depois, quer que sejam vividos pelos outros. O bom e o ruim da vida; quem presta e quem não presta; as genialidades e as burrices; tudo é julgado segundo a régua da ideia idolatrada. O idólatra só consegue ver o mundo pelas lentes da ideia idolatrada. Fora dela, não há razão. Nem sentido. Nem propósito. Nem diálogo. Só se dialoga dentro da ideia. Com quem concorda com ela. Quem discorda deve ser calado. Cancelado. Eliminado. Higienizando para que o mundo corresponda cada vez mais à ideia.

Ídolo é simulacro. Imagem de alguma coisa que não está ali. Antigamente, coisa divina. Hoje, coisa mundana. É a marca de uma ausência sentida. Da ausência de convicções verdadeiras. De um caráter verdadeiro. De virtudes verdadeiras. De um ser verdadeiro. Carência de uma vida verdadeira em suas alegrias e dores. Todo idólatra é alguém que faz da sua vida a imagem da vida que lhe falta. Toda idolatria é como a de narciso, que ama a imagem de si porque não consegue amar a si mesmo tal como é. E tampouco aos outros como eles são, seja lá como forem. Toda idolatria é perversa.

Mas toda idolatria passa. Torna-se estátua solitária e suja. Esquecida. Lembrança de um vazio no vazio da praça. E é no vazio de ídolos que se pode ver as coisas como são, com suas belezas e feiuras. Só no vazio de ídolos que se pode realmente ver a si mesmo e aos outros. Só no vazio de ídolos que se pode realmente respeitar e amar o outro pelo que ele é e não pela imagem que ele significa para quem o vê. Só no vazio de ídolos que o vazio da vida pode, realmente, ser preenchido.

Ilustração: Mihai Cauli

 

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