À ONU, organizações denunciam genocídio indígena e a tese do marco temporal

A denúncia foi realizada durante a 53ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU; lideranças indígenas e quilombolas participam do evento em Genebra

POR ADI SPEZIA, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

Em declaração conjunta, nesta terça-feira (4), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e as instituições Right Livelihood Award Foundation (RLAF), Vivat Internacional, FIAN Internacional, Terra de Direitos e Justiça Global denunciaram a genocídio dos povos indígenas e apontaram a tese inconstitucional do marco temporal como uma das causas da violência contra os povos originários no Brasil.

Paulo Lugon Arantes, assessor internacional do Cimi, deu voz às denúncias durante o Diálogo Interativo com a sub-secretária-geral das Nações Unidas e assessora especial para Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu. O evento faz parte da 53ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH 53) das Nações Unidas, que está sendo realizada de 19 de junho a 14 de julho de 2023, na sede da ONU em Genebra, Suíça.

“É importante trazer à tona as várias atrocidades que têm vitimado os povos indígenas no Brasil e os desafios contínuos para garantir sua proteção”

Ao agradecer a visita da assessora especial ao Brasil, as organizações também destacaram a importância de seu mandato trazer à tona várias questões preocupantes, como as recentes atrocidades que têm vitimado os povos indígenas no Brasil e os desafios contínuos para garantir sua proteção.

Durante a 53ª sessão, dirigindo-se à Alice, Paulo reforçou que “o que você viu nos territórios, sobre a situação dos Guarani Kaiowá, Yanomami, Ye’kwana, Karipuna e Wapichana, é fruto de uma dívida histórica, agravada pelo antigo governo federal e vários governos estaduais”.

Na avaliação das organizações, o governo brasileiro ao negar a pandemia, “abandonou todas as políticas de proteção, disseminou discursos de ódio e, assim, legitimou a violência, que intensificaram conflitos mortais, negaram serviços básicos de saúde e alimentação e colocaram em risco a existência de diversos povos, levando a muitas mortes evitáveis”, destacou o assessor internacional do Cimi.

“Governo brasileiro ao negar a pandemia, abandonou todas as políticas de proteção, disseminou discursos de ódio e legitimou a violência, que intensificaram conflitos mortais”

No Brasil, segundo dados obtidos e divulgados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e informações divulgadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até 20 de abril de 2021, 46.820 pessoas indígenas foram contaminadas pela Covid-19. Dessas, 640 morreram.

“As atrocidades cometidas pela administração passada devem ter seus autores, materiais e intelectuais identificados, processados ​​e julgados de acordo com o direito internacional. As vítimas, suas famílias e comunidades devem obter reparação integral, incluindo a verdade sobre os fatos. A tese do marco temporal é de fato um fator de atrocidade”, considera Paulo Lugon.

“As atrocidades cometidas pelo governo passado devem ter seus autores identificados, processados ​​e julgados de acordo com o direito internacional”

As organizações e lideranças indígenas e quilombolas – que acompanham a sessão desde Genebra -, afirmam que vão continuar seu trabalho junto às Nações Unidas, à sociedade civil e ao governo no Brasil, para identificar todos esses problemas e atuar a respeito. “Esperamos que seu mandato continue adotando medidas frente à situação problemática que você encontrou durante a sua visita”, reforça o assessor do Cimi na 53ª sessão do CDH da ONU.

Na presença da assessora especial para Prevenção do Genocídio e as representações do Estados-membros, Paulo questionou: “Que medidas o Brasil deve tomar para cumprir suas recomendações?”

“Esperamos que seu mandato continue adotando medidas frente à situação problemática que você encontrou durante a sua visita”

Durante o diálogo interativo, Alice Wairimu Nderitu, apresentou um relatório com o resultado das reuniões e visitas que fez aos Estados-menbros, dentre eles, o Brasil. Alice destacou ser necessário continuar com os esforços para combater o genocídio e, também, os fatores que levam a tal violência.

Sabemos que é fundamental prevenir os genocídios e os crimes relacionados”, explicou a assessoria. Isso “significa não se render, pois do contrário pode ser que a impunidade se imponha e aumente o risco de genocídios futuros. Portanto, genocídio é algo que se deve prevenir, que se pode prevenir também”.

Confira o pronunciamento assessora especial da ONU para Prevenção do Genocídio:

Evento Paralelo

Com objetivo de dialogar sobre os  fatores de risco e desafios na prevenção do genocídio no Brasil,  a  ACT Alliance, o Ibase, o Fórum Ecumênico ACT Brasil (FEACT), a Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil (AMDH), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Justiça GlobalMNDH, o Projeto Legal, Koinonia e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Brasil (Conaq), organizaram um evento paralelo durante a 53ª sessão do CDH.

Realizado na segunda-feira (3) de forma híbrida – online e presencial –, o evento contou com a presença da sub-secretária-geral das Nações Unidas e, Alice Wairimu Nderitu.

“A ideia de realizar esse evento paralelo é justamente para ampliar esses relatos e fazer ecoar as denúncias e pedidos de justiça que foram feitas. O evento em si não é a solução final para tantos que sofrem com as ameaças e violências no Brasil, mas faz parte de uma estratégia de luta da sociedade civil”, explica Rita Corrêa Brandão, diretora do Ibase.

“A ideia de realizar esse evento paralelo é justamente para ampliar esses relatos e fazer ecoar as denúncias e pedidos de justiça que foram feitas”

Em maio deste ano, Alice se reuniu com lideranças comunitárias, grupos ameaçados e em situação de vulnerabilidade, além de representantes de organizações da sociedade civil, integrantes de comunidades indígenas e autoridades. O evento paralelo é um dos desdobramentos da visita que fez ao Brasil e teve como intuito reafirmar a necessidade de ações efetivas para pôr fim às ameaças aos povos indígenas, à população negra, jovens moradores de favela e adeptos de religião de matriz africana.

De Genebra, Josiel Kaiowá destacou a importância da visita da assessora especial da ONU ao território Guarani Kaiowá. “No Mato Grosso do Sul estamos passando por uma série de violências, foi muito importante e significativa essa ida da Alice ao território Guarani Kaiowá”, destaca a jovem liderança. Na ocasião, Josiel ainda questionou o Sistema ONU e o mandato de Alice sobre a situação de violência que vivem: “Como vão acompanhar os casos dos Guarani Kaiowá no Brasil?”

“No Mato Grosso do Sul estamos passando por uma série de violências, foi muito importante e significativa essa ida da Alice ao território Guarani Kaiowá”

Ainda no evento, a pastora Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), denunciou o aumento da intolerância religiosa no país, que está diretamente relacionada ao racismo estrutural.  O racismo é o principal fator da intolerância religiosa no Brasil, porque há uma intolerância direcionada especialmente contra comunidade religiosas de matriz africana e indígena, aponta a pastora.

“Para ter uma dimensão da situação, temos três casos diários de intolerância religiosa no país, principalmente, contra povos de terreiros que são das religiões de matriz africana. Nós temos um relatório recente, que saiu das comunidades Guarani Kaiowá, onde nove rezadeiras foram fisicamente atacadas justamente por causa da sua liderança religiosa e da importância do seu papel nas comunidades Guarani e Kaiowá. A intolerância religiosa antecede o que poderíamos chamar de crimes atrozes, porque ela é uma forma de negação da humanidade das pessoas afrodescentes e indígenas”, denuncia a secretária-geral do CONIC.

“Recentemente nove rezadeiras foram fisicamente atacadas justamente por causa da sua liderança religiosa e seu papel nas comunidades”

Também presente no evento paralelo, Alice se comprometeu em seguir acompanhando a situação do Brasil. “Eu vi com meus próprios olhos as pessoas responsáveis por esses crimes, eu vi a pobreza e vi a riqueza ao lado da pobreza. É uma obrigação do Brasil fazer as coisas bem e tem os meios para o fazer”, avalia a relatora especial da ONU.

A assessora assegura que voltará ao Brasil.  “Tem várias ações que precisamos implementar, mas primeiramente gostaria que o governo brasileiro entrasse em ação sobre essas problemáticas em relação às populações indígenas e quilombolas e nós atuaremos aqui em Genebra, Nairóbi”, destaca. E ainda reforça: “estou fazendo uma promessa aqui, porque eu vi, diretamente essas pessoas, vocês não vão estar esquecidos, não vou esquecê-los, não se preocupem”, finaliza.

“Estou fazendo uma promessa aqui, porque eu vi, diretamente essas pessoas, vocês não vão estar esquecidos, não vou esquecê-los, não se preocupem”

Visita ao Brasil

Em maio deste ano – entre os dias 1 e 12 -, a sub-secretária-geral das Nações Unidas (ONU) e assessora especial para Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, esteve no Brasil com o objetivo de conhecer a situação dos povos indígenas e negro do país, bem como de outros grupos e comunidades brasileiras. Também verificou práticas de genocídio contra indígenas, afrodescendentes e outros grupos e comunidades em situação de vulnerabilidade.

Entre os dias 5 e 8 de abril, a Hutukara Associação Yanomami, Urihi Associação Yanomami e o Conselho Indígena de Roraima (CIR) receberam a comitiva, também composta pela assessora internacional do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), e por representantes do Ministério de Relações Exteriores (MRE) e do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC).

“Em maio, a assessora especial para Prevenção do Genocídio da ONU esteve no Brasil para conhecer a situação dos povos indígenas e negro do país”

Em Roraima, a comitiva ouviu as organizações e dialogou sobre os modos de vida, a importância do território, os desafios que enfrentam e sobre a forma como se organizam no estado. Entre os desafios, o avanço do garimpo ilegal, a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami, os constantes ataques contra os povos e o pedido pela urgente e necessária retirada dos garimpeiros e demais invasores das terras indígenas no estado de Roraima.

Entre os dias 9 e 10 de maio, Alice esteve no Mato Grosso do Sul, onde foi recebida por lideranças indígenas e organizações indigenistas. Os Avá-Guarani, Guarani e Kaiowá receberam a comitiva da ONU no tekoha Guyraroka e no tekoha Guapo’y, em apoio às iniciativas de retomada das terras de onde foram expulsos e também denunciaram a política de extermínio indígena praticada contra seu povo pelo governo de Jair Bolsonaro.

“Os indígenas receberam a comitiva da ONU e denunciaram a política de extermínio indígena praticada pelo governo Bolsonaro”

“A desassistência, a fome e a desesperança que agudizou durante a pandemia afetou principalmente os jovens, provocando uma onda de suicídios com 16 vítimas fatais e mais de 25 tentativas [de suicídio] registradas, apenas nos anos de 2021 e 2022”, alertam os indígenas.

Brasília e Rio de Janeiro também compuseram os locais visitados pela comitiva da ONU. No último dia da visita ao Brasil, em 12 de maio, Alice realizou uma coletiva de imprensa onde apresentou as observações preliminares de sua verificação em onze dias de incursão no Brasil.

“A desassistência, a fome e a desesperança que agudizou durante a pandemia afetou principalmente os jovens, provocando uma onda de suicídios”

Pela primeira vez no país, a assessora especial para Prevenção do Genocídio, também produziu um relatório com o resultado das reuniões. Ele será entregue ao governo federal e às organizações. 

Confira o discurso do assessor do Cimi na íntegra:

Senhora Nderitu,

Agradecemos sua recente visita ao Brasil, que trouxe à tona várias questões preocupantes ao seu mandato, como as recentes atrocidades e os desafios contínuos de proteger a população indígena do Brasil de crimes de atrocidade.

O que você viu nos territórios, sobre a situação dos Guarani Kaiowá, Yanomami, Ye’kwana, Karipuna e Wapichana é fruto de uma dívida histórica, agravada pelo antigo governo federal, e vários governos estaduais, que negaram a pandemia, abandonaram todas políticas de proteção, disseminam discursos de ódio e, assim, legitimam a violência, intensificaram conflitos mortais, negaram serviços básicos de saúde e alimentação e colocaram em risco a existência de diversos povos, levando a muitas mortes evitáveis.

As atrocidades cometidas pela administração passada devem ter seus autores materiais e intelectuais identificados, processados ​​e julgados de acordo com o direito internacional. As vítimas, suas famílias e comunidades devem obter reparação integral, incluindo a verdade sobre os fatos. A tese do marco temporal é de fato um fator de atrocidade.

Esperamos que seu mandato continue adotando medidas frente a situação problemática que você encontrou durante a sua visita.

Que medidas o Brasil deve tomar para cumprir suas recomendações?

Muito obrigado!

Aproximadamente 2 mil indígenas desceram a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para acompanhar a retomada do julgamento. Foto: Marina Oliveira /Cimi

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

18 − quinze =