Não se pode agarrar o ar, mas na queda, tenta-se. Tateia-se o nada em busca de algo que ampare, mas não há amparo possível no nada. Há apenas a sensação do nada. A angústia do nada. A perdição no vazio rodopiante em que não se sabe onde é céu ou chão. Até que vem o impacto. Doloroso choque. E tudo para num estalo que parece estrondo. Tudo vira dor e atordoamento. Clarisse caiu do segundo andar de um prédio quando tinha 15 anos. Ainda hoje tem pesadelos com as sensações da queda. Doeu muito. As dores passaram. O corpo ficou bem depois de um tempo. Mas as sensações ruins da queda ficaram na sua mente. Seu espírito, por algum motivo, até hoje cai.
Não é sempre que ela se vê acometida do que chama, na intimidade do divã do seu psicanalista, de mal da queda. A queda vem e vai, depois volta. É como um ciclo, ou um rodopio no ar. Clarisse não sabe explicar bem como ou porque acontece, como quase todo mundo, que não sabe explicar bem o que sente e seus porquês. Só sabe que sente. Só sente que sente, sem saber bem.
Mas começou a perceber um padrão na sua queda. Há gatilhos. Como se seu mal da queda começasse de um empurrão íntimo. As coisas que vê, ouve e lê sobre o mundo a empurram para o vazio de sua queda.
Numa manhã de terça estava bem. Dormiu muito e bem. Não caiu nos pesadelos. Acordou firme e disposta em sua cama sólida e macia. Tomou café da manhã com gosto, revezando a atenção entre comida, agenda e notícias. Foi numa notícia que vertiginou. Uma mulher bêbada abandonada à rua, na porta de casa, por motorista de aplicativo. E violentada por quem passa e encontra o corpo inerte à disposição. Pensar em mulheres vulneráveis como carne à espera do predador a lançou na queda.
Tentou agarrar-se a algo. Insistiu na leitura em busca do amparo normalmente perdido nas quedas. Topou com outro empurrão para o abismo de sua angústia. Juiz, que de alguma maneira deveria ser para as vítimas o amparo pela lei, ignora a lei, o amparo e a moral reduzindo-as às mulheres que deseja em suas fantasias de homem desejado. Às mulheres que imagina que o desejam e que imagina sua resistência a elas como prova da moral que imagina ter.
O ar, em abundância na queda, começou a faltar-lhe na sua queda íntima. Asfixiou-se de angústias no confronto com um mundo angustiante. Respirou fundo. Novamente. Pensou em usar a bombinha, companheira das crises de asma. Desistiu. Tentou concentrar-se em outras coisas, como quem tenta agarrar-se a algo durante a queda.
Nos pensamentos descontínuos e imprecisos nos quais tentou focar-se, surgiu-lhe uma ideia em particular que lhe pareceu dar algum chão. “Não sou eu que caio. É o mundo”. Ele decai em violências gratuitas, ambições desavergonhadas, indiferenças variadas a tudo que não seja coisa ou prazer próprio.
Pensou que, na queda do mundo, suas vertigens talvez não fossem doença, mas sua tentativa de manter-se sã no meio de um mundo adoecido. Esforço por não cair junto. Talvez, doentes mesmo, sejam os que não sentem vertigens. Os que caem junto com o mundo. Acomodaram-se em suas angústias e já não sentem a queda, nem as dores morais de uma gente cansada de tanta injustiça.
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Ilustração: Mihai Cauli