Raoni: ‘Depois que eu partir, a geração futura vai precisar estar unida’

A mais forte raiz do movimento indígena prepara sua sucessão, mas sem deixar a luta. E promete ‘puxar a orelha de Lula’

por RAFAEL MORO MARTINS, em Sumaúma

Manhã de uma sexta-feira de julho, temperatura de 30 graus Celsius na Terra Indígena Capoto/Jarina, norte de Mato Grosso, na Amazônia brasileira. O cacique Raoni Metuktire está de pé no palco montado sob uma grande tenda de estrutura metálica e cobertura de lona branca, no centro da aldeia Piaraçu. Mulheres e homens Kayapó (também conhecidos como Mebêngôkre), na plateia, se levantam. Reunidos em pequenos grupos, cantam e dançam, elas de um lado, eles do outro. Celebram. Raoni havia recebido um mapa emoldurado das mãos da presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana. Ele ergue o presente acima da cabeça e o exibe como um troféu, talvez o mais importante que tenha conquistado ao longo dos 60 anos de sua luta para defender os direitos e territórios dos povos indígenas no Brasil.

Levada por Joenia, a notícia foi o ponto culminante do Chamado do Cacique Raoni, um encontro de cinco dias das “Lideranças Guardiãs da Mãe Terra” organizado pelo instituto que leva o nome daquele que é a maior referência dos povos originários no Brasil. No último dia, Joenia anunciou que a Funai havia reconhecido os estudos que identificaram e delimitaram a Terra Indígena Kapôt Nhinore. “É o primeiro grande passo para a demarcação. É um presente que viemos trazer a Raoni”, comemorou.

Encravado entre outros territórios já demarcados dos Mebêngôkre, em meio a fazendas e áreas de garimpo ilegal, na divisa entre Mato Grosso e Pará, Kapôt Nhinore é um lugar sagrado para Raoni. Ali ele nasceu – e também é onde seu pai, o pajé Umoro, está sepultado. A área traz a marca de inúmeros conflitos entre indígenas e fazendeiros. Para Raoni, demarcar Kapôt Nhinore era questão de honra e de sobrevivência de seu povo.

O chamado de Raoni levou à aldeia representantes de 54 etnias originárias no Brasil e convidados não indígenas do Brasil e de outros países. Segundo a organização, 900 pessoas atenderam à convocação do ancião. Não indígenas aplaudiram, tiraram fotos e filmaram com seus celulares. O tom era festivo, para celebrar as décadas de luta de Raoni, mas o cacique também foi duro com seus parentes: advertiu que indígenas que permitem o garimpo criminoso e a exploração de madeira em seus territórios devem abandonar esse caminho. E, sem dizer adeus, deu recados importantes sobre sua sucessão à frente dos Mebêngôkre.

Mesmo quem não compreende o idioma dos Mebêngôkre percebe a habilidade e a eloquência de Raoni como orador, uma qualidade muito valorizada na cultura Kayapó. O adorno que leva em seu lábio inferior, o labret, foi colocado na boca aos 15 anos, com a ajuda do irmão Motibau. Para os Mebêngôkre, o labret é “uma marca de reconhecimento dos guerreiros prontos a morrer por sua terra”. Nada define melhor o cacique.

Raoni modula o tom de voz, faz pausas calculadas e então retoma o discurso, apontando e citando pessoas que vê diante de si, na plateia. Em seguida, puxa de trás da cadeira um mapa de seu território. Neste momento, seu neto Patxon Metuktire passa a traduzir suas palavras para o português – até então, só os falantes da língua Mebêngôkre acompanhavam o discurso. Raoni aponta para o mapa no chão à sua frente e, dirigindo-se à ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, anuncia: “Quero ampliar nosso território nesta linha”, enquanto indica uma área na divisa entre as terras indígenas Capoto/Jarina, ao sul, e Kapôt Nhinore, ao norte.

Raoni repete o que faz há décadas. Ele não se acomoda com uma vitória – segue lutando pela demarcação das terras tradicionais de seu povo. Com o apoio do sertanista e amigo Cláudio Villas-Bôas (1916-1998), Raoni compreendeu que a busca pela conservação dos territórios tradicionais é uma causa comum de todos os indígenas. Com isso se fez admirado por líderes dos mais de 300 povos originários brasileiros. Em sua trajetória, explicou aos não indígenas por que somente a floresta em pé assegura a existência humana e não humana – e, hoje, é crucial para a sobrevivência da vida na casa-planeta.

Em 2023, com estimados mais de 90 anos de idade, Raoni segue preocupado com o futuro. “A gente precisa da ampliação do nosso território. Vamos fazer um documento para mandar ao presidente Lula sobre isso. A população indígena está crescendo aqui no Xingu também”, afirmou. O último censo populacional, divulgado em julho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que há no Brasil 1,7 milhão de indígenas, 90% mais do que a população contabilizada em 2010. Em terras demarcadas como a Capoto/Jarina, a população cresceu 16%. “Quando precisarmos criar mais aldeias, vai faltar espaço”, alertou o líder Kayapó.

Raoni sabe que não terá condições de liderar essa luta por muito mais tempo. “Vocês precisam se preparar. Depois que eu partir, os caciques desta geração, da geração futura, vão precisar estar muito unidos e bem preparados para defender os territórios e os povos”, pediu aos mais jovens, segundo a tradução de Patxon. “Eu tinha muita força, eu conseguia andar rápido. Mas, agora, estou cada vez mais fraco, vocês estão vendo. Estou muito cansado.”

‘O céu caiu, a terra pegou fogo’

A aldeia Piaraçu, como é próprio da cultura Kayapó, se organiza em um círculo. No perímetro externo, estão as casas – algumas poucas, como a escola, de alvenaria; a maioria, de paredes de madeira e cobertura de palha. Elas rodeiam um pátio em cujo centro fica a “Casa dos Homens”, espaço para assembleias e reuniões das lideranças da aldeia. Para dar conta da quantidade de pessoas que atenderam ao chamado de Raoni, foi erguida ao lado dela a tenda principal do evento. Redários temporários, chuveiros e banheiros químicos foram instalados na aldeia e em comunidades vizinhas. Mas mais gente do que o previsto compareceu e não havia espaço para tantas redes. Improvisaram-se barracas, a água faltou. Todos queriam escutar Raoni. E Raoni tinha o que dizer.

Sentado do lado de fora da casa simples, de madeira, Raoni conversou longamente com SUMAÚMA na tarde abafada de 28 de julho. “Eu quis juntar lideranças dos povos que mexem com atividades ilícitas, com exploração de madeira nativa, garimpo, para incentivá-los a não seguir nesse caminho”, explicou o cacique na entrevista exclusiva, segundo a tradução feita por outro de seus netos, Beptuk Metuktire.

É um recado que Raoni já havia dado no dia anterior, 27 de julho, o primeiro do evento aberto a não indígenas. Naquela tarde, ele chegou à tenda principal por volta das 16 horas. Bem-humorado, cumprimentou amigos antes de se sentar na plateia para assistir ao final de um debate de que participavam o indigenista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai, seu sobrinho Megaron Txucarramãe, cacique da aldeia Piaraçu, e Renan Sotto Mayor, defensor público da União que trabalha com comunidades indígenas. Em seguida, Raoni subiu ao palco, agarrou o microfone e, falando sempre em seu idioma, foi direto ao ponto: “Não quero que os Kayapó, os parentes que estão aqui presentes, mintam para mim, dizendo que estão defendendo a floresta, as suas terras, mas sigam fazendo coisas erradas”, afirmou, segundo a tradução feita pelo neto Patxon.

“Eu gostaria muito de voltar a ficar jovem de novo, para defender toda a população indígena. Quero que essa luta não pare na mão de vocês, jovens. Meus netos, vocês estão me ouvindo?”, convocou. Em seguida, lembrou que, durante a pandemia de covid-19, quando estava doente, sonhou que havia morrido – imediatamente, mulheres Kayapó se levantaram das cadeiras e começaram a cantar. “Mas no céu está o pai, na terra está a mãe. Essas duas pessoas me deram força, me pediram para me levantar e seguir firme na luta. Esses espíritos me acompanham, estão comigo hoje. E, no sonho, me contaram que a Terra já foi extinta uma vez. O céu caiu, a terra pegou fogo. Acabou. Se não defendermos o que temos, vai acontecer de novo”, alertou Raoni.

Raoni sabe o que enfrenta dentro dos territórios indígenas. E não é de hoje. Na década de 1980, o cacique Tutu Pombo ficou milionário com a exploração de mogno e a cobrança de uma porcentagem sobre o ouro extraído de garimpos na Terra Indígena (TI) Kayapó, no Pará. Acumulou dinheiro e prestígio até morrer, em 1992. Décadas depois, em junho de 2023, João Kayapó, neto de Tutu Pombo, se tornou cacique de uma das aldeias que continuam a permitir a atuação de garimpeiros, chamada Turedjam. Após anos de exploração, João Kayapó diz querer lutar para proibir a atividade e expulsar os garimpeiros.

A influência de Raoni impediu que a exploração chegasse com força aos territórios Kayapó mais ao sul, em Mato Grosso. Mas o dinheiro é sedutor e, sem a resistência de um líder com a dimensão de Raoni, pode acabar por se impor, como admitem líderes indígenas com quem SUMAÚMA conversou em Piaraçu. “Não vai nascer outro Raoni. Isso é muito preocupante”, afirmou o líder Yanomami Davi Kopenawa. “Ele passou por tanta coisa – perseguição, doença, perdas na família – e continua resistindo. O território dele já é demarcado, mas ele segue falando pela demarcação dos territórios de outros povos. Isso não é todo mundo que tem”, disse a liderança Alessandra Korap Munduruku.

“Hoje eu ouvi Raoni falar que estava cansado. Em todos esses anos, em tantos encontros, pela primeira vez senti a preocupação dele com a sucessão, com a continuidade da luta”, contou a cacica Juma Xipaia. Primeira mulher a liderar uma aldeia do povo Xipaya, no Médio Xingu, Juma atualmente é secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas no ministério comandado por Sonia Guajajara. “Raoni falar publicamente que ele está cansado, fazer aquela fala tão forte para a juventude indígena, para as mulheres indígenas, foi como sentir um grande abraço dele. Mas não quero entender como se fosse uma despedida, não quero acreditar nisso”, disse. Raoni deu um apoio decisivo a Juma quando ela foi ameaçada por grileiros no encontro Amazônia Centro do Mundo, realizado em Altamira em novembro de 2019.

Preparando a sucessão sem dizer adeus

Na tarde do dia anterior, 27 de julho, no discurso em que pediu a atenção de seus “netos”, Raoni afirmou que apresentaria até o fim do evento “as lideranças que vão continuar o meu trabalho”. Não chegou a fazer isso. No dia seguinte, enquanto conversava com SUMAÚMA e era questionado sobre sua sucessão, Raoni mandou chamar o sobrinho Megaron Txucarramãe, hoje com 68 anos, cacique de Piaraçu e companheiro em muitas de suas lutas nas últimas décadas, e Yabuti Metuktire, que tem por volta de 70 anos e é visto como provável sucessor de Raoni como cacique da aldeia Metuktire, onde ambos vivem.

Megaron é um personagem conhecido de quem acompanha as lutas dos indígenas brasileiros. Com Raoni, liderou a “guerra da balsa”, em 1984, e em seguida se tornou o primeiro administrador não branco do Parque Indígena do Xingu. Em 2006, ajudou nas buscas pelos destroços do Boeing 737 da Gol que caiu no território Kayapó após ter colidido com um jato Legacy que voava em altitude irregular.

Yabuti é considerado por seus parentes Kayapó, e por quem trabalha com eles, um dos últimos caciques tradicionais do povo – e é profundo conhecedor versado na cosmologia e nas tradições culturais Mebêngôkre. Servidor aposentado da Funai, Yabuti continua trabalhando no órgão indigenista, em uma coordenação em Mato Grosso. Nos últimos anos, Raoni passou a incluí-lo em suas viagens pelo Brasil e pelo mundo, repetindo o que já faz, há décadas, com Megaron.

Pessoas próximas a Raoni veem na provável escolha dos dois uma divisão clara de papéis: Megaron, o líder político, experiente na lida com os governos e os não indígenas; Yabuti, o líder tradicional, guardião da cultura dos Kayapó. Embora mais jovens que Raoni, Megaron e Yabuti já têm idade. E na TI Capoto/Jarina há uma nova geração de líderes despontando. Ela inclui mulheres como Mayalu Waura Txucarramãe, filha de Megaron, Kokonã Metuktire, filha de Raoni e vice-presidenta do instituto que leva o nome dele, as sobrinhas Nhakmeti e Yapi, além dos netos Patxon e Beptuk. Resta saber se terão sobre os Kayapó – um povo com quase 10 mil pessoas e vários subgrupos, como é comum entre os indígenas – a ascendência que possui Raoni.

‘Esse clima quente, esse vento forte’

O aeroporto com voos regulares mais próximo da aldeia Piaraçu fica em Sinop. A cidade mato-grossense, fundada há apenas 48 anos, é lar de quase 200 mil pessoas e se tornou um florescente “eldorado da soja” – em 2022, registrou o maior Produto Interno Bruto do agronegócio no estado. Tem bares e restaurantes caros, anúncios e lojas de produtos de luxo, casas grandes e novas e condomínios fechados em profusão. Um deles, em construção, anuncia uma pista de pouso particular de onde os futuros moradores poderão decolar direto para seus latifúndios ou terras griladas.

De Sinop, é possível voar até a aldeia Piaraçu em pequenas aeronaves. Mas a maneira mais fácil e econômica de chegar lá é pelo chão, pelo menos durante o verão, a estação seca na Amazônia. São 476 quilômetros percorridos em duas rodovias, a BR-163 e a MT-322, repletas de enormes caminhões do agronegócio que levam soja em grão aos portos de Miritituba e Santarém, no Pará. Em parte do percurso, a MT-322 ainda não tem asfalto. Mas dezenas de máquinas e caminhões pesados trabalham para pavimentá-la até o limite do território indígena. A obra, desejo dos fazendeiros e grileiros da região, é uma promessa do governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, e um sonho de Sandro José Luz Costa, o prefeito de São José do Xingu. Os dois são filiados ao União Brasil, partido que surgiu da fusão do Democratas – o antigo PFL, reduto de apoiadores da ditadura empresarial-militar (1964-1985) – com o PSL, pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente, em 2018.

Nos dias quentes e secos, a passagem dos caminhões graneleiros ergue imensas nuvens de poeira fina. “Eu sei por que está vindo esse clima quente, esse vento forte”, disse Raoni. “Já estive com os que são os donos desses ventos, desse sol. Hoje, talvez eles tenham uma noção, sentindo na pele esse sol quente, talvez assim aprendam. Se a gente não cuidar do território, isso tudo vai acabar, e não vai acabar somente para nós”, afirmou.

As lideranças da TI Capoto/Jarina rejeitam o asfalto. Preferem a poeira. Raoni vive na aldeia Metuktire, ao norte de Piaraçu e à margem do Xingu, aonde só se chega de barco após uma viagem de 40 minutos. Mas Piaraçu é estratégica para os Kayapó da região pela facilidade de acesso – além da estrada, tem uma pista de pouso capaz de receber aviões como os bimotores que voaram de Brasília levando autoridades ao evento. É, também, simbólica da luta Kayapó.

No trecho em que passa pela aldeia Piaraçu, a rodovia MT-322 atualmente marca a divisa entre a Terra Indígena do Xingu (antigo Parque Indígena do Xingu), ao sul, e a Terra Indígena Capoto/Jarina, ao norte. Inaugurada em 1971, na época a rodovia invadiu o território dos Kayapó e o parque, demarcado em 1961 após intensa pressão dos irmãos sertanistas Cláudio (1916-1998) e Orlando Villas-Bôas (1914-2002), amparados na resistência indígena. Reportagem do jornal Folha de S.Paulo, nos anos 1980, registra a indignação de Raoni com a obra, entregue pelo então ministro dos Transportes da ditadura, Mário Andreazza, que liderou uma comitiva de 23 aviões à festa, na qual foi servido um churrasco a “grandes empresários que começavam a investir na Amazônia”.

Demarcar as terras de seu povo ao norte da estrada passou a ser uma obsessão para Raoni. Em fevereiro de 1984, ele foi a Brasília e avisou que, caso as terras ao norte da estrada não fossem demarcadas até abril, ele agiria. Como nada foi feito, cumpriu a promessa. Ele e o sobrinho Megaron Txucarramãe tomaram a balsa e fizeram os servidores da Funai e do governo federal reféns. O caso, manchete de jornais à época, acabou conhecido como “a guerra da balsa”. Após cerca de 40 dias, os indígenas venceram. A ditadura capitulou e aceitou iniciar a demarcação.

Mas aquela vitória não foi completa. Kapôt Nhinore, a terra onde Raoni nasceu, ficou de fora da área demarcada. Quase 40 anos depois, o impasse persiste. O avanço na demarcação anunciado por Joenia Wapichana é o primeiro em oito anos de um processo burocrático que se iniciou, na Funai, em 2004. Um tempo que custou caro à natureza e aos indígenas: há 201 fazendas e áreas griladas sobre boa parte dos 362 mil hectares de Kapôt Nhinore. Ao site Canal Rural, portal de notícias ligado ao agronegócio, Nilson Leitão – um político filiado ao PSDB que foi deputado federal e prefeito de Sinop e atualmente preside o Instituto Pensar Agro, entidade que articula a pressão dos latifundiários sobre a natureza – acusou a Funai de “engessar o desenvolvimento” da região. “Vai ter uma revolta do setor produtivo, [uma] atuação enorme da classe política, que não vai poder aceitar uma ordem dessa que desemprega e desaloja 201 proprietários”, ele prometeu, dias após o evento de Raoni em Piaraçu.

Dados oficiais mostram uma situação diferente da descrita por Leitão. Há, na verdade, 153 proprietários, 32 posseiros e 15 áreas sem informação alguma no território de Kapôt Nhinore. Como a lista de “propriedades” somaria 500 mil hectares, e a terra indígena tem apenas 362 mil hectares, isso é uma sinalização clara de sobreposição de matrículas e fortes indícios de grilagem.

O “desenvolvimento” defendido por Nilson Leitão ressoa como morte para o povo de Raoni. “Venho falando disso há muito tempo, de defender os povos, a floresta, os animais, para que tenhamos comida. Estamos sentindo o efeito do clima, que está mudando, estamos sentindo muito calor”, alertou o ancião durante o evento em Piaraçu. “É por isso que eu peço: o Xingu inteiro tem que estar junto. Não deixem os brancos entrar no nosso território.”

O recado de Davi Kopenawa

Inspirado na luta de Raoni, o xamã Davi Kopenawa fez seu chamado em defesa do povo Yanomami. “Se vocês não resolverem, vamos nos preparar para guerrear”, avisou. Kopenawa aproveitou a presença de Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Weibe Tapeba no evento para mandar recados ao governo federal.

A mais forte liderança Yanomami está irritada com a demora na solução da crise provocada pelo garimpo criminoso na terra indígena de seu povo, impulsionada pelo governo do extremista de direita Jair Bolsonaro.

Além de cobrar a presença de Lula e seus ministros nas áreas críticas do território, Kopenawa afirma que o garimpo segue forte e ativo. “Não adianta só ir lá tirar foto. Estamos morrendo de doenças do garimpo ilegal”, denunciou. “Estou pedindo para retirar os garimpeiros. Porque as autoridades prometeram e podem cumprir. Senão, vamos pegar arco e flecha para guerrear com homem branco que está roubando e destruindo as nossas terras, as nossas águas.”

Em nota enviada a SUMAÚMA, o Ministério dos Povos Indígenas alegou que “ao longo dos últimos meses uma articulação interministerial tem trabalhado com cooperação das Forças Armadas, agências federais e órgãos de segurança pública no combate à desassistência ao povo Yanomami e na desintrusão de seu território”. Apesar de reconhecer que há desafios estruturais para a expulsão dos invasores e o enfrentamento à desnutrição e à malária, a força-tarefa do governo federal argumenta que houve “redução de 95% na presença de garimpeiros no Território” e “119 prisões de pessoas envolvidas em garimpo ilegal em Território Yanomami desde fevereiro, sendo 91 delas a partir de 21 de junho, data do decreto que ampliou a participação de militares no enfrentamento ao garimpo ilegal”.

O trauma do PAC

Em discurso de mais de 40 minutos, Sonia Guajajara fez uma espécie de balanço de sua gestão à frente do Ministério dos Povos Indígenas. E desabafou: “A gente tem pavor de ouvir falar em PAC. Porque ele nos lembra de grandes obras de infraestrutura que causam impacto para nós”. A ministra se referia ao Programa de Aceleração do Crescimento, que seria relançado por Lula dias depois.

A versão 2023 do PAC ganhou o slogan “Desenvolvimento e Sustentabilidade”. O governo promete que haverá prioridade para projetos de saúde e educação. Convém não esquecer, contudo, que a primeira encarnação do PAC vasculhou o arquivo de projetos abandonados pela ditadura empresarial-militar para ressuscitar a hidrelétrica de Kararaô, depois rebatizada Belo Monte. “Se vai ter obras de infraestrutura, vai ter que ter obras que levem estrutura aos territórios indígenas”, cobrou Sonia Guajajara.

“Não pensem que é fácil para a gente estar nesse lugar sem conseguir fazer as coisas como a gente gostaria. Os desafios são gigantes, por conta da correlação de forças, que ainda é muito desigual, e da burocracia de um Estado que nunca se preparou para atender a diversidade de povos que tem nesse Brasil”, disse a ministra, na incômoda posição de ser ao mesmo tempo governo e liderança indígena num país que está longe de finalizar a demarcação das terras dos povos originários, determinada pela Constituição de 1988.

Na tarde anterior, numa longa conversa com SUMAÚMA, Joenia Wapichana, presidenta da Funai, resumiu o desafio. “A gente alcançou um espaço importante. Mas também tem que ter condições para que esses espaços não sejam só vitrines”, ponderou. “Quero que as coisas andem. Tem que ter o cargo, mas tem que ter estrutura para trabalhar.”

A ausência tão presente de Lula

O presidente havia sido convidado pessoalmente por Raoni, no mês de abril, em Brasília, para comparecer ao evento. Deu sua palavra de que iria – e faltou. Coube à ministra Sonia Guajajara o constrangimento de explicar a ausência: “O presidente Lula queria muito vir. Mas, infelizmente, ele teve recomendação médica para não viajar e talvez ele precise fazer uma cirurgia de emergência. Ele mandou trazer esse recado, de que vai combinar uma outra oportunidade para encontrar o cacique Raoni”.

Naquela mesma tarde, Lula foi padrinho do casamento do senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), em Brasília. Dois dias antes, o presidente tinha feito um procedimento para aliviar a dor no quadril, provocada por artrose, para no futuro se submeter a uma cirurgia. Lula posou sorridente para fotos com os noivos e seus convidados. Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso, foi um dos primeiros a atacar a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima Marina Silva quando o Ibama negou a licença à Petrobras para perfurar um poço em busca de petróleo na bacia da foz do Amazonas.

Ao escolher comparecer ao casamento de Randolfe em vez de ir ao evento de Raoni, Lula foi questionado nas redes sociais. Quando ficou evidente que o presidente não iria, os indígenas divulgaram uma carta lembrando da posse de Lula, em 1º de janeiro, quando ele subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado do ancião indígena, e de outros representantes de minorias, para criar uma imagem-símbolo de que o Brasil deixava para trás os anos sob o fascismo de Jair Bolsonaro: “O cacique Raoni já atendeu o seu chamado. E vocês, quando irão atender o nosso?”.

Não houve resposta.

A ausência de Lula foi ressaltada pela presença de Herman Benjamin, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do Brasil, e de Melanie Hopkins, vice-embaixadora do Reino Unido no Brasil, que entregou a Raoni uma carta do rei Charles III, chefe de Estado da Grã-Bretanha.

Em busca das orelhas do presidente

Dias depois, Raoni viajou para Belém a fim de participar da Cúpula da Amazônia, que reuniu movimentos sociais e dirigentes de oito países com florestas tropicais. Na capital paraense, o cacique esperava ter uma chance de conversar com Lula e finalmente lhe entregar uma carta com o pedido da demarcação do território Kayapó localizado entre as TIs Capoto/Jarina e Kapôt Nhinore.

Em Belém, outra frustração. Raoni esperava uma audiência com o presidente, mas não foi recebido. Conseguiu conversar com as ministras Sonia, Marina e Nísia Trindade (Saúde), além de Márcio Macêdo (ministro da Secretaria-Geral da Presidência). Irritado, o cacique disse que terá que “puxar a orelha” do presidente na próxima vez em que se encontrarem.

Quando é Raoni que promete, pode não ser força de expressão. Há precedentes. Em 1984, após vencer a “guerra da balsa”, Raoni foi a Brasília para uma audiência com Mário Andreazza, naquele momento ministro do Interior e um dos homens mais poderosos da ditadura, que comandou obras como a da rodovia Transamazônica. Recebido na Esplanada dos Ministérios, Raoni agarrou as orelhas de Andreazza e, puxando-as, disse: “Aceito ser seu amigo, mas você tem que ouvir o índio”. Se fez isso na ditadura, é provável que possa repetir o gesto. Isso se conseguir ser recebido por Lula.

O CHAMADO DE RAONI: REPRESENTANTES DE 54 POVOS ORIGINÁRIOS FORAM OUVIR O CACIQUE FALAR NA ALDEIA PIARAÇU, NO ESTADO DO MATO GROSSO, REGIÃO DA AMAZÔNIA BRASILEIRA. PABLO ALBARENGA (FOTO)

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