Prender Bolsonaro: eis a questão. Por Valerio Arcary

Há hora em que a mão não pode tremer. Ideia de que punir os crimes do ex-presidente o tornaria mártir é equivocada. É preciso acertar contas com o passado. Livre, o capitão influencia a política. E o fascismo, quando retorna, nunca perdoa

No Outras Palavras

“Primeiro mataremos a todos los subversivos, luego mataremos a sus colaboradores, después a sus simpatizantes, enseguida a aquellos que permanecen indiferentes y, finalmente, mataremos a los tímidos.”

Declaração do general argentino Ibérico Saint Jean, governador da província de Buenos Aires durante a ditadura militar, publicada no diário Internacional Herald Tribune (Paris), em 26/7/1977. Saint Jean faleceu em outubro de 2012, tinha 90 anos, e estava esperando julgamento por crimes de lesa humanidade, mas não chegou a ser condenadoMorreu impune.

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Tem momentos em que a “mão não pode tremer”. Um dos temas centrais da conjuntura brasileira, senão o mais vital, é o destino de Bolsonaro. Não deveria ser muito polêmico, se consideramos tudo o que aconteceu durante os quatro anos de mandato, mas é. A prisão de Bolsonaro seria uma derrota terrível para a corrente neofascista. Mas é controverso. Mesmo em círculos da esquerda, alguns argumentaram até contra a condenação de inelegibilidade de Bolsonaro pelo TSE. A ideia de que a prisão de Bolsonaro não o enfraqueceria, ao contrário, o fortaleceria, porque favoreceria sua “martirização”, é um cálculo ingênuo. Bolsonaro preso seria uma derrota irreparável para toda a extrema direita. Já a extravagante ideia de que o maior problema, no Brasil de 2023, seria o excesso de poder dos Tribunais Superiores, e não a impunidade da corrente neofascista, é insustentável. A subestimação do perigo representado pelo neofascismo é inexplicável, ou melhor, imperdoável, como ficou claro na Argentina com a explosão do vulcão Milei, depois de quatro anos de governo fracassado do peronismo de Alberto Fernandez.

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O governo Lula abraçou uma estratégia de governabilidade a “frio” que tem como eixo a construção de uma Frente Ampla para garantir maioria no Congresso Nacional. A integração do PP e dos Republicanos, que estiveram na base de apoio de Bolsonaro, com a colaboração de Artur Lira, presidente da Câmara de Deputados, culmina uma negociação com distintas lideranças de diferentes frações da classe dominante, que passou pela escolha de Alckmin, e pela indicação de Simone Tebet e o PSD de Gilberto Kassab. Esta escolha tem muitas consequências. Uma das mais graves é deixar, exclusivamente, na alçada dos Tribunais Superiores, o destino de Bolsonaro. Que esta seja a aposta do governo Lula não deveria levar os movimentos sociais e o conjunto da esquerda a renunciar a uma campanha por prisão para Bolsonaro. Uma campanha exploratória das possibilidades de colocar em movimento os setores mais avançados pode ser construída. Depois do escândalo das joias, e da possível delação premiada do ajudante de ordens Mauro Cid, se abriu um caminho, com sólidas provas jurídicas e impacto de massas.

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O argumento de que não devemos apoiar a ofensiva da Justiça contra Bolsonaro porque se estabeleceria um precedente de “empoderamento” para, no futuro, legitimar a repressão contra a esquerda é de uma miopia política incorrigível. Quem pensa assim perdeu a bússola. O lugar de toda a esquerda, dos mais moderados aos mais radicais, deveria ser na primeira linha da luta pela repressão impiedosa contra Bolsonaro e a corrente neofascista. Não há razão alguma para reservas e pudores diante da iniciativa dos Tribunais de colocarem os fascistas nos bancos dos réus. Ao contrário, o desafio diante da esquerda é não transferir a responsabilidade, unicamente, para a ação da Justiça. Infelizmente, a esquerda não está unificada em torno de uma campanha de prisão para Bolsonaro. Nem sequer o Psol está unificado, como ficou claro nas plenárias de discussão e eleição de delegados para o Congresso Nacional deste final de setembro. Prevalece a hesitação, mas por quê?

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Por muitas razões. A mais importante é o erro da subestimação de Bolsonaro. Afinal, a extrema direita, embora heterogênea, ainda é liderada pela corrente neofascista que apoiou as ameaças golpistas durante os quatro anos de mandato, e preserva posições políticas centrais no Estado brasileiro, a começar pelos três governos estaduais de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, além de uma bancada estimada em, pelo menos, 100 deputados federais eleitos, centenas de estaduais e, em escala nacional, alguns milhares de prefeitos, além de uma impunidade de agitação e propaganda em algumas empresas privadas de comunicação social, associadas a obscuras campanhas nas redes sociais pela internet. Mas, também, porque nos setores mais militantes vem se acumulando uma justa frustração com os limites do governo Lula: o arcabouço fiscal é um teto de gastos “com desconto”, a reforma tributária não avançou até a regulamentação de impostos sobre as grandes fortunas, a nomeação de Zanin foi um gol contra, etc. A tentação de lutar contra tudo que está errado, ao mesmo tempo, não é realista, mas é grande. Há, também, reais dificuldades de mobilização social, seja qual for a reivindicação. Muitos fatores se combinam como explicação desta debilidade: (a) a estreita, mas histórica vitória eleitoral de Lula mudou a relação política de forças, porque a conquista do governo federal significa a ocupação da posição institucional mais poderosa dentro do regime, e prevalece a expectativa; (b) há acomodação, até dos setores mais ativistas da vanguarda, como ficou claro depois do 8 de janeiro, do 8 de março, do 1º de maio, e mesmo depois do assassinato de Mãe Bernardete na Bahia; (c) o mais importante é que ainda não se inverteu a relação social de forças, e a confiança na possibilidade de vitória nas lutas é pequena.

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Bolsonaro inelegível foi um triunfo parcial no marco de uma luta estratégica contra o perigo neofascista. Continua incerto se será condenado ou não à prisão. Sem uma campanha política de agitação e propaganda unificada da esquerda fica mais difícil. Durante décadas, em escala mundial, o fascismo foi uma corrente, politicamente, residual, em função da derrota de Mussolini e Hitler. Mas a marginalidade da extrema direita era desigual de país para país. No Brasil sempre foi mais influente que na Argentina, por exemplo. Foi, tristemente, assim, porque a ditadura acabou sem que o governo Figueiredo tivesse sido derrubado. E, também, em função da transição pelo “alto” negociada pelo MDB de Tancredo Neves, que deixou intacto o aparelho militar-policial de vinte anos da ditadura. Esse desfecho deu sobrevida ao “malufismo”, herdeiro do partido da ditadura, por uma década. Mas o fascismo do século XXI é uma corrente com um horroroso peso de massas no Brasil e crescente influência em grande parte do mundo. Nesse contexto, a inelegibilidade do “imbrochável” é insuficiente porque: (a) autoriza Bolsonaro a permanecer ativo como articulador da extrema direita para as eleições municipais de 2024, e presidenciais de 2026, com capacidade de transferência de prestígio e indicação de um sucessor; (b) permanece pendente a tarefa incontornável de julgamento, condenação e prisão dos associados de Bolsonaro na oficialidade das Forças Armadas e nas Polícias estaduais, militares e civis.

Protesto no Parque da Redenção, Porto Alegre. Foto: Sul21

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