A partir do final deste ano, o Brasil passará a ser o “anfitrião” do G20 durante um ano (ao longo de 2024). Não é coisa pequena, mas é preciso avaliar um pouco que G20 o Brasil vai herdar da Índia, o atual anfitrião, depois da reunião acontecida em setembro desse ano.
Mais do que isso, a organização das atividades do G20 é formalmente conduzida por três países – o último, o atual e o futuro anfitrião. Ou seja, a partir do final do ano serão o Brasil, que vai ser o anfitrião em curso, a Índia, último anfitrião e a África do Sul, o futuro anfitrião. Curiosamente, três países dos BRICS, o que deve aumentar ainda mais o peso dos países BRICS na política internacional e vai supor uma coordenação mais azeitada do que nunca, teoricamente. Como o G20 não tem uma estrutura formal, o fato de o anfitrião “secretariar” o grupo, com o apoio dos dois outros, dá a essa secretaria um razoável poder na condução dos assuntos do grupo durante esse período. O esperado é que temas de interesse dos países em desenvolvimento, como o combate à pobreza e as questões do desenvolvimento, incluindo aí a questão ambiental e o financiamento ao desenvolvimento, tomem um lugar importante na agenda de discussões.
O primeiro-ministro indiano Narendra Modi conduziu o processo do G20 na Índia com um olho nas questões internacionais e outro na política indiana. Conseguiu, por exemplo, colocar a reunião sob o guarda-chuva do tema “Vasudhaiva Kutumbakam” (expressão em sânscrito, antiga língua da Índia, que quer dizer “O mundo é uma família”) que entra direto na declaração final. Um fracasso da reunião do G20 (por exemplo, caso não conseguisse chegar a uma resolução final da reunião) poderia ser um desgaste grande da sua imagem, que tem como um dos pontos importantes a projeção da Índia como grande potência internacional, tanto econômica, quanto politicamente. Nesse sentido, Modi já foi parcialmente prejudicado pela decisão de importantes líderes mundiais, como Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, de não participarem da reunião.
Evitou o pior, entretanto, conseguindo que os países ocidentais capitaneados pelos EUA cedessem a respeito da questão ucraniana, e que se pudesse chegar a uma “solução de redação” para a questão da guerra na Ucrânia que criticasse a guerra sem citar a Rússia, possibilitando assim que se chegasse a uma declaração. Essa concessão importante dos EUA mostra o quão sensível é para o governo estadunidense manter sua proximidade com a Índia nesse momento, criando um contraponto à China na região. Lembrando que a Índia, nesse momento, faz parte dos BRICS (onde está a China), mas participa também do chamado Quad (Diálogo Quadrilateral de Segurança), junto com Japão, Austrália e os próprios EUA, grupo informal entre os quatro países que se articulam para questões de segurança na área do chamado Indo-Pacífico, oceanos em que buscam contrabalançar o poder naval chinês.
Quem tiver paciência de ler as 32 páginas da declaração (mais cinco de anexos) vai ver a enormidade de temas discutidos. Alguns, como os econômicos e de meio ambiente, quase repetidos de declarações anteriores, felizmente reconhecendo os problemas nessas áreas para implementar as resoluções anteriores, e o próprio cumprimento das chamadas “Metas do Milênio” (tecnicamente as Metas de Desenvolvimento Sustentável) até 2030, que era o compromisso.
Criticam genericamente a desigualdade, reafirmam o multilateralismo (inclusive com um parágrafo tentando tirar a Organização Mundial do Comércio da UTI em que se encontra há mais de seis anos), mas dizem que para isso é importante reformar as instituições multilaterais existentes, inclusive as financeiras, falam de sistema de proteção social universal, da necessidade de proteger o chamado “mundo do trabalho” e de ter uma transição energética e produtiva “justa” (no jargão internacional, isto quer dizer levando em consideração os interesses e dificuldades do trabalho neste processo de transição), falam em eliminara a fome e a desnutrição, em apoiar a saúde global e a Organização Mundial da Saúde, em educação de qualidade, citam a crise da dívida dos países em desenvolvimento como um problema a ser resolvido, desenham linhas sobre o futuro (citando a economia digital e a inteligência artificial), falam em resolver desigualdades de gênero de forma geral. Enfim, uma larga agenda de temas. De muito novo, a admissão da União Africana como um membro permanente do G20.
O que se pode esperar da presidência brasileira que virá? Bem, virá em um quadro em que o G20 enfrenta evidentes tensões. O Brasil deve tentar seguir com uma agenda de interesse dos países em desenvolvimento (apoiado por Índia e África do Sul), focada em paz internacional, combate à fome e às desigualdades, medidas de proteção ao clima e ao meio ambiente e reformas financeiras e econômicas consistentes que preparem o mundo para uma retomada sustentada do desenvolvimento, em um ambiente de funcionamento do multilateralismo.
Não será simples, pois esses pontos deverão ser encaminhados em um mundo conturbado e de polarização geopolítica e econômica. Lembrando que o Brasil sediará o G20 no ano que vem e os encontros dos BRICS e da COP (meio ambiente) na sequência, portanto é fundamental que a primeira reunião ande bem para o sucesso das seguintes, o que pode projetar bastante o Brasil no cenário internacional. Mas, nesse sentido, a ser aceitável a formulação dessa última declaração na Índia sobre o tema Ucrânia, talvez esse tema possa deixar de consumir tanta energia nas reuniões e abrir espaços para os temas de maior interesse do Brasil e dos países em desenvolvimento. Será possível avançar nessas discussões se equilibrando entre os interesses conflitantes de EUA e China?
Para terminar, uma curiosidade, comentada sem muita explicação pela imprensa internacional. A Índia adotou, ao longo dessa reunião do G20, o outro nome oficial do país que consta em sua Constituição, Bharat. Nas plaquinhas de identificação, nos convites e documentos distribuídos pelo governo indiano, nas identificações dos credenciados, Bharat virou nome onipresente.
Além da curiosidade, não apareceram grandes explicações por aqui para isso. Na Índia, os dois nomes são usados quase que indistintamente e não fazem muita diferença. Internacionalmente, ninguém conhece Bharat, além de raros especialistas em assuntos indianos. Por que então adotar, em uma reunião internacional, um nome que é conhecido apenas na Índia e mais usado exatamente entre os mais fundamentalistas hindus? A explicação não é complicada. Há poucas semanas, em meados de julho, 28 partidos indianos, da centro-direita à extrema esquerda, passando por partidos regionais e com definições religiosas (da minoria muçulmana, por exemplo), anunciaram a criação de uma grande aliança eleitoral, a Aliança Nacional Indiana para o Desenvolvimento Inclusivo (em inglês, Indian National Developmental Inclusive Alliance, que adotou a sigla com as iniciais do nome, exatamente INDIA). As eleições vão ser no ano que vem, e pela primeira vez o atual governo vai ter de se confrontar com uma enorme aliança no processo eleitoral. Governo, aliás, hegemonizado pelo atual primeiro-ministro, Narendra Modi, e seu partido, o BJP, Bharatiya Janata Party (Partido do Povo Indiano), um partido de direita baseado no nacionalismo hindu. A ficar detrás de uma plaquinha com o nome da aliança oposicionista, o primeiro-ministro Modi não teve dúvidas em adotar o nome do país pouco conhecido no exterior.
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone