Como Senado ataca indígenas – e a possível resposta

Senadores tentam impor “marco temporal” já rechaçado pelo STF – e ampliam o escárnio, ao permitir empreendimentos em terras dos povos originais. Lula anunciou que vetará. Mas governo continua preso a acordos com a bancada ruralista

Por Carolina Fasolo e Oswaldo Braga de Souza, do ISA, no Outra Saúde

Por 43 votos a 21, o plenário do Senado aprovou, na noite desta quarta (27), o texto principal do Projeto de Lei (PL) 2.903/2023, a maior ameaça aos direitos indígenas desde a Redemocratização (veja como votaram os senadores). As duas emendas que buscavam amenizá-lo foram rejeitadas e ele segue agora para sanção ou veto presidencial.Entre outros retrocessos, segundo a redação final, os povos originários só teriam direito às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, o chamado “marco temporal”.

Na quinta passada (21), o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria contra a mesma tese ruralista, considerando-a inconstitucional, por 9 votos a 2. Nesta quarta, enquanto os senadores iniciavam a análise do PL 2.903 no plenário, a Corte finalizava o julgamento, fixando teses complementares sobre a demarcação de Terras Indígenas (TIs) (saiba mais abaixo).

Trata-se de mais um capítulo na novela de tensões e conflitos entre o Legislativo e o STF, e uma represália de parte do Congresso. Após o resultado parcial do julgamento, na quinta passada (21), a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) passou a ameaçar obstruir as votações. Também articulou o apoio de outras bancadas, como as de armamentistas e evangélicos, contra a decisão do tribunal. A oposição tenta agora articular uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para rever decisões do órgão máximo do Judiciário.

Assim, o “marco temporal” acabou entrando na blitz parlamentar conservadora, que defende que o Supremo estaria usurpando a competência do Legislativo de decidir sobre alguns temas, como a descriminalização do aborto e do porte de drogas.

“Não aceitaremos qualquer interferência na prerrogativa legislativa do Congresso Nacional. Tomaremos as devidas medidas para restabelecer o equilíbrio entre os Poderes”, diz nota assinada pelo FPA e mais 17 frentes parlamentares. Entre os partidos, só o PL e o Novo assinaram o documento.

Governo e Pacheco cedem às pressões

Tanto o governo quanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), acabaram cedendo às pressões para votar o PL 2.903 a toque de caixa. Ele foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) horas antes, pela manhã, por 16 votos contra 10, junto com um requerimento de urgência para apreciação no plenário. O PL havia sido aprovado na Comissão de Agricultura (CRA), no mês passado, e no plenário da Câmara, em maio.

Pacheco descumpriu promessas feitas a lideranças indígenas de que o projeto teria uma tramitação em ritmo moderado, que permitisse o aprofundamento do debate sobre o assunto.

O relator da proposta na CCJ e no plenário, Marcos Rogério (PL-RO), agradeceu o empenho de Pacheco. “Esse tema só está sendo votado neste momento porque vossa excelência o chamou para si. Eu sei das dificuldades regimentais inerentes ao processo, mas sei do esforço que vossa excelência fez para que votássemos no dia de hoje essa matéria”, disse.

Ecoando o discurso de retaliação ao STF e reconhecendo, em parte, os problemas do projeto, Marcos Rogério repetiu que o Senado tem o direito de tomar a decisão política de aprová-lo e que o presidente da República poderia vetá-lo.

O governo fez pouco esforço para barrar a votação, temendo perder outras, como a do projeto do programa apelidado de “Desenrola”, que prevê renegociar as dívidas de milhões de devedores.

“De nossa parte não há nenhum tipo de sentimento revanchista em relação à Suprema Corte do nosso país”, afirmou Pacheco. Ele reconheceu que o projeto tem muitos pontos que são “objeto de dúvida”. “Eventualmente, num caso de veto, será então debatido pelos colegas senadores se isso é realmente importante estar ou não no ordenamento jurídico”, completou.

No plenário, orientaram favoravelmente ao projeto PL, União, Podemos, Republicanos, PP, PSDB, Novo, Minoria e Oposição. Já o MDB, PT e Governo orientaram voto contrário. Maioria, PSB, PDT, PSD e a Bancada Feminina liberaram os parlamentares para votar como quisessem.

Acordo

A informação que circulou é que o governo teria costurado um acordo para que o presidente Luís Inácio Lula da Silva vete parte do projeto e para que o veto seja mantido. O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), disse que Lula irá vetar o texto aprovado.

Se o PL 2.903 não for vetado e alguém provocar o STF a se pronunciar sobre ele por meio de uma ação, a decisão tomada nesta quarta pela Corte será a base a ser usada na análise.

Além do “marco temporal”, o projeto também permite a exploração dos recursos naturais e a instalação de empreendimentos predatórios nas TIs, a destituição de “reservas indígenas” e a possibilidade de contatos forçados com indígenas isolados, especialmente vulneráveis a doenças e conflitos. Em nota técnica, o ISA apontou a inconstitucionalidade da proposta.

“O Senado quer perpetuar o genocídio indígena. Esse projeto de lei legaliza crimes que ameaçam as vidas indígenas e afetam a crise climática. O PL é inconstitucional e o Supremo já anulou o ‘marco temporal’, mas o projeto tem muitos outros retrocessos aos direitos indígenas”, criticou Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

“O Senado vai na contramão da Constituição ao legislar em favor de tese declarada inconstitucional pelo STF. Infelizmente, a bancada ruralista não se conforma com um dos principais papéis das Supremas Cortes nas democracias: a defesa dos direitos fundamentais das minorias”, afirma a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.

“Infelizmente, o governo cede ministérios e verbas de emendas parlamentares, mas fica sem votos. Dessa forma, promessas fundamentais feitas pelo presidente Lula, como a continuidade das demarcações e a proteção dos direitos e das Terras Indígenas, serão descumpridas”, completa.

Fim do julgamento

Na conclusão do julgamento no STF, nesta quarta, os ministros ajustaram e fixaram outras teses complementares sobre a demarcação de TIs que surgiram na análise do caso (leia mais no quadro ao final da reportagem).

A principal novidade, até agora não prevista na legislação, é a possibilidade de pagamento de indenização da terra para produtores rurais que forem removidos de suas propriedades. Hoje, segundo a Constituição, a indenização deve ser feita apenas pelas benfeitorias.

Segundo a decisão, haverá direito à indenização quando houver ocupação de boa-fé e o proprietário tiver um título expedido pelo Estado, no caso em que for comprovado que os indígenas não estavam no território e não havia disputa judicial ou conflito possessório em 5 de outubro de 1988, o chamado “renitente esbulho”. Não caberá indenização para as áreas já “pacificadas”, ou seja, no caso de TIs já reconhecidas e declaradas , exceto em casos já judicializados.

O receio do movimento indígena e da sociedade civil é que uma indenização “prévia” torne ainda mais demoradas as demarcações e dificulte ainda mais o acesso das comunidades aos seus direitos e territórios.

“A indenização prévia relativa à terra nua pode tornar o acesso das comunidades indígenas às suas terras ainda mais demorado do que já é”, avalia Moreno Saraiva Martins, coordenador do Programa Povos Indígenas no Brasil (PIB) do ISA. Ele lembra que, no caso de algumas demarcações, o território continua indisponível para os indígenas por mais de 20 anos. “De acordo com a decisão do STF, no caso de comunidades que estejam fora de seu território tradicional, há um grande risco de que elas tenham o direito de reocupá-lo só após o Estado definir o valor da indenização e realizar o depósito para ocupante”, conclui.

Além disso, segundo a decisão do STF, o governo poderá assentar uma comunidade indígena em outra área que não a de ocupação tradicional, por meio da desapropriação de terras para constituição de “reservas”, no caso de “absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação”. Nesses casos, as comunidades indígenas seriam ouvidas, mas não teriam o direito de vetar a decisão.

Ampliação de áreas

Ainda de acordo com a decisão do STF, qualquer ampliação de TI só poderá ocorrer em até cinco anos após a “demarcação anterior” e desde que comprovado “grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites”. A regra não abrange ações judiciais ou pedidos de revisão desses limites já registrados na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Uma proposta feita pelo ministro Dias Toffoli que causou bastante polêmica e acabou sendo retirada do debate por ele próprio, no último momento, após o intervalo da sessão desta quarta, foi a de determinar que o Congresso regulamentasse, em até um ano, o dispositivo da Constituição que prevê a possibilidade de exploração mineral e a construção de hidrelétricas nas Terras Indígenas.

Antes do debate dos dez pontos da tese final da decisão, os ministros decidiram se adotariam a tese mais sintética, elaborada pelo relator, Edson Fachin, ou a mais extensa, proposta por Toffoli com base em seu próprio voto, no de Fachin, dos ministros Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin.

Derrotada por 6 votos contra 5, a proposta mais concisa apenas afirmava que o direito territorial indígena independe de qualquer “marco temporal” ou da comprovação de disputa judicial ou conflito em campo pela terra.

Tese final do STF

(transcrito da transmissão do julgamento e sujeito a revisão com base no texto que será publicado)

1- A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena.

2 – A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e das necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições, nos termos do parágrafo primeiro do Artigo 231 do texto constitucional.

3 – A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente, à data da promulgação da Constituição.

4 – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias previsto no Parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

5 – Ausente a ocupação tradicional indígena, ao tempo da promulgação da Constituição Federal, ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição Federal, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada, relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular o direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis pela União, e quando inviável o reassentamento dos particulares caberá a eles indenização pela União com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área correspondente ao valor da terra nua paga em dinheiro ou em título da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitida autocomposição e o regime do Artigo 37, parágrafo 6° da Constituição.

6 – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de Terras Indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados em andamento.

7 – É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das Terras Indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida em todo caso a comunidade indígena, buscando-se se necessário a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas, Artigo 16.4 da Convenção 169 da OIT.

8 – O procedimento de redimensionamento de Terra Indígena não é vedado, em caso de descumprimento dos elementos contidos no Artigo 231 da Constituição da República, por meio de instauração de procedimento demarcatório, até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da Terra Indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento.

9 – O laudo antropológico, realizado por meio do Decreto 1.775/1996, é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com os seus usos, costumes e tradições e observado o devido processo administrativo.

10 – As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nela existentes.

11 – As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.

12 – A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas.

13 – Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutir seus interesses sem prejuízo nos termos da lei, da legitimidade concorrente da Funai e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei.

Foto: Verônica Holanda/Cimi

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

eight + 12 =