No TaquiPraTi
“Minha escrita é pela oralidade. […] Falar um livro, é assim que eu escrevo”.
Ailton Krenak. Discurso de posse na Academia Mineira de Letras. Março 2023
O primeiro escritor indígena eleito para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), Ailton Krenak, obteve nesta quinta-feira (5) 23 votos, numa competição com candidatos renomados como a historiadora Mary del Priore (12 votos) e o escritor Daniel Munduruku (4 votos), o que dá a dimensão da qualidade da disputa.
Ailton leva para a ABL a escrita e a oralidade, a letra e o som da palavra. Ele escreve de forma tão encantadora como fala. Suas narrativas, poemas, reflexões filosóficas e entrevistas foram publicadas em 13 países em livros como “Ideias para adiar o fim do mundo”, “A vida não é útil” e o mais recente “Um rio um pássaro” , que se apoiam no pensamento ameríndio, algumas vezes em diálogo intercultural com conceitos ocidentais.
Durante cinco séculos, a milenar literatura oral ameríndia, qualificada por Dell Hymes como “the first literature of America”, não era considerada literatura, mas apenas “matéria prima” a ser “transformada em literatura” por autores não indígenas. Em que pese a qualidade literária das obras de Alencar, Gonçalves Dias e até de Mário de Andrade, seus personagens “cheios de sentimentos portugueses”, segundo Oswald de Andrade, nunca lutaram por terras, línguas e culturas.
O romantismo do séc. XIX não entendeu as narrativas míticas dos povos originários e as recriou como “caricaturas” de duvidoso valor etnográfico, com exceção da coleta e transcrição realizada em língua geral pelos tupinólogos Charles Hartt, Couto de Magalhães, Stradelli, Barbosa Rodrigues, Brandão Amorim e Maximiano José Roberto, assim como as registradas em línguas indígenas de Roraima por Theodor Koch-Grünberg.
Reza a lenda
A ABL abriu os olhos quando convidou, em 2019, os Guarani-Mbyá do Rio de Janeiro, recebidos com discurso de boas-vindas em língua guarani proferido pelo seu então presidente, Marco Lucchesi. O coral de crianças guarani cantou aos pés de Machado de Assis, sob os aplausos de Evanildo Bechara – o Cacique do Lácio. A literatura indígena, que permanecia invisível, começou a emergir, com a apropriação da língua portuguesa e o domínio da escrita por autores indígenas, alguns deles bilingues.
Depois da abertura de portas pelos Guarani surge, em 2012, a primeira candidatura indígena de Daniel Munduruku, que não conseguiu os votos para ingressar na ABL. Uma vaga só é aberta com a morte de um dos 40 acadêmicos imortais. Agora, com o falecimento do historiador José Murilo de Carvalho, sua cadeira nº5 é ocupada por Ailton Krenak. O que mudou para que a ABL receba um autor indígena e reconheça sua obra?
Como outras instituições, a ABL, na seleção de seus membros, está condicionada à conjuntura política, social e ideológica. Na época da ditadura, reza a lenda que Pedro Calmon, titular da cadeira nº 16 e reitor da UFRJ, convidou o marechal Castelo Branco a se candidatar à ABL. O ditador de turno, criador do Serviço Nacional de Informação (SNI), objetou:
– Mas não tem nenhuma vaga aberta.
– Por isso não. Eu lhe cedo a minha, marechal – disse o meu saudoso ex-professor de direito constitucional, competente e amável, mas tão subserviente ao poder constituído, que esta “lenda” corria dentro da sala de aula da Faculdade Nacional de Direito. Para isso, as “lendas” rezam.
Adelita
Pedro Calmon continuou vivo, vivíssimo, por mais vinte anos. Quem morreu logo depois foi o marechal num acidente aéreo, em 1967. Sua prometida e sonhada vaga foi herdada pelo general Aurélio Lira Tavares, eleito em 1970 para a Cadeira 20, logo após governar o Brasil como membro da Junta Militar. Qual a sua obra? O AI-5 que assinou. Cassou mandatos, fechou o Congresso Nacional, reprimiu a UNE e os sindicatos e censurou jornais, livros, revistas, peças de teatro e letras de música.
Ele se dizia poeta por haver cometido em sua juventude poemas publicados em jornais da Paraíba, sua terra natal, com o pseudônimo de Adelita, composto com as iniciais de seu nome. Quando embaixador do Brasil em Paris (1970-74), tentou convencer a Académie Française a traduzir sua obra, sem sucesso. Os versos primorosos da Canção da Engenharia do Exército Brasileiro nunca foram traduzidos:
– “A Engenharia, quer na paz, quer na guerra, fulgura, sobranceira em nossa história”.
Felizmente o fim deste mundo, embora adiado por mais de vinte anos, se concretizou. A história da ABL mostrou sua outra face e pôde se arejar nos novos tempos com Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, Eduardo Giannetti, Marco Lucchesi, Cacá Diegues, Ana Maria Machado, Rosiska de Oliveira e tantos outros que honram a memória de Machado de Assis. O pássaro que pousou em silêncio voltou aos céus sem deixar rastros. Adelitas, nunca mais!
A canoa de escritores
Krenak, que já era membro da Academia Mineira de Letras, é doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Tornou-se nacionalmente conhecido em 1987, com seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte, quando na tribuna, enquanto falava, pintava seu rosto com a tinta preta de jenipapo para cobrar a aprovação dos direitos dos povos indígenas.
Sua escolha para ocupar uma cadeira no Petit Trianon se dá num contexto da criação do Ministério dos Povos Indígenas e da nomeação de Sônia Guajajara para dirigi-lo, assim como do fortalecimento da luta organizada, para a qual muito contribuiu o novo acadêmico, que participou da criação da União dos Povos Indígenas, em 1988, e da Aliança dos Povos da Floresta no ano seguinte.
A eleição acontece também no momento da crise climática do planeta, que vem sendo acompanhada de perto pelas reflexões ambientalistas de Ailton Krenak. Ele nos convida a pisar suavemente na terra e a reverter a perda da nossa memória ancestral contida nas árvores, nas montanhas e nos rios.
A eleição de Ailton não foi um ato isolado da ABL. Ela se deu no momento em que vários eventos culturais em diferentes cidades do país mostram o vigor e a potência artística dos povos originários.
Em Manaus, 18 artistas de diferentes etnias exibem 36 obras na 3ª Mostra de Arte Indígena. Em São Luís, a exposição “Maranhão: Terra Indígena” reúne cestos, máscaras, colares, pulseiras, cuias, lanças e grafismos de diferentes povos. Em Brasília, a exposição da artista Daiara Tukano traz mais de 70 obras na mostra Pamuri Pati – Mundo de Transformação.
Em São Paulo, o Sesc Ipiranga abriu a exposição “Araetá – A Literatura dos Povos Originários” com a produção literária de escritores indígenas, que representam mais de 50 povos originários de todo o Brasil. Entre eles, Jaime Diakara – escritor do povo Desana, para quem “a presença dos livros escritos por autores indígenas em exposições e feiras é uma grande oportunidade de trazer para a sociedade, por meio de obras escritas, o que antes só existia na oralidade”.
Tiago Hakiy, autor de 15 livros, definiu a exposição para a Agência Cenarium como “uma canoa que chega e dentro dela traz muitos remadores, pintores, escritores, músicos, que trabalham para que a cultura e a tradição de seus povos não sejam esquecidas”.
Essa canoa – diz um dos curadores da Araetá, Ademário Ribeiro Payayá – transporta Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Yaguarê Yamã e um total de 114 autores, com 334 títulos publicados por 105 editoras.
Foi de dentro dessa canoa com esses 114 remadores que Ailton desembarcou na ABL.
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