Para pesquisador da Fiocruz, simpósio da Secretaria de Saúde Digital ignorou tema central – a desinformação no meio virtual. Ele propõe: para avançar na prevenção e promoção da saúde, governo precisa enfrentar a desordem informacional
Em Outra Saúde
O Ministério da Saúde promoveu, nos dias 2 e 3 de outubro, o 1º Simpósio Internacional de Transformação Digital no SUS. O evento é, em si, uma resposta positiva às transformações que vivemos, caracterizadas pela centralidade assumida pelas questões digitais na vida contemporânea, especialmente no campo da saúde.
Vários temas e problemas importantes foram debatidos – entre eles, a transformação digital dos sistemas de saúde, os modelos de gestão, a telemedicina e a Inteligência Artificial. Entretanto, um ponto central para os dias de hoje esteve ausente: a ‘desordem informacional’ e seu enfrentamento.
Nossa preocupação com essa ausência tem uma razão de ser. Em segmentos muito diversos da população brasileira, quando se tem alguma dúvida em relação a qualquer problema de saúde, recorre-se imediatamente à internet. Muitas destas informações podem estar desatualizadas, incompletas, incorretas ou deliberadamente mentirosas. Vivemos, portanto, um contexto do que autores como Claire Wardle e Hossein Derakhshan chamam de “desordem informacional”. Uma informação incorreta na saúde pode causar dano ao indivíduo e à sociedade. Por isso, a nosso ver, a Secretaria de Saúde Digital deveria incluir em sua agenda a questão da desordem informacional.
Quando mencionamos este termo, estamos nos referindo tanto à desinformação, ou seja, a informação falsa e criada deliberadamente para prejudicar uma pessoa, grupo social, organização ou país; quanto à informação incorreta, isto é, a informação falsa, mas que não foi criada com a intenção de causar danos; e à má informação, que é a informação baseada na realidade, mas usada para infligir danos.
Para combater a desordem informacional
Existem pelo menos três formas de enfrentar a desordem informacional. Uma se desenvolve através das práticas de literacia digital em saúde. Outra, com a “checagem dos fatos” – ou, em inglês, fact-checking. Existem ainda iniciativas voltadas para a avaliação da qualidade da informação de saúde na internet, que podem resultar na certificação de ambientes virtuais.
Para a Unesco, a promoção da literacia digital em saúde é um tipo de iniciativa que visa orientar os cidadãos a acessar, avaliar e se apropriar das informações de saúde disponíveis e compartilhadas através das tecnologias de informação e comunicação. Em artigo sobre o papel que esse fator pode cumprir na busca da equidade em saúde, um grupo de pesquisadores liderado pela italiana Laura Leondina Campanozzi ressalta que os usuários precisam ter altos níveis de literacia para que os serviços de saúde digital sejam utilizados de forma adequada.
Já a checagem dos fatos é o trabalho realizado por agências especializadas para detectar os erros, imprecisões e mesmo mentiras presentes em informações disponibilizadas na internet. O Ministério da Saúde havia criado, em 2018, um canal de checagem de informações denominado Saúde Sem Fake News. Estudiosos da área consideravam esta iniciativa positiva, já que ela oferecia subsídios para que o público pudesse conferir, de forma gratuita, se um conteúdo recebido era verdadeiro ou não. Eles destacavam, entretanto, que este canal não conseguia atender à enorme demanda de mensagens que recebia. Em 2021, o canal Saúde Sem Fake News saiu do ar.
Em relação à avaliação da qualidade da informação de saúde na internet, algumas experiências têm sido realizadas no Brasil. Em geral, elas estão voltadas para as “informações incorretas”, que, como visto acima, são informações equivocadas que não foram criadas com a intenção de causar dano.
Publicamos recentemente dois artigos em que avaliamos informações de saúde disponíveis no portal Saúde de A à Z, vinculado ao Ministério da Saúde. Este portal é um glossário que disponibiliza informações sobre saúde chanceladas pelo governo federal. Ele é a principal referência de informação para todas as secretarias estaduais e municipais de saúde e para a população brasileira. A informação disponível nele pode ser considerada confiável.
Porém, nesta série de investigações, cujos resultados foram publicados na revista Saúde em Debate, do Cebes, concluiu-se que a maioria das informações sobre tuberculose e leishmaniose disponíveis no portal não está em conformidade com os critérios e indicadores adotados – ou simplesmente está ausente. Um dos exemplos pode ser encontrado no fato de não constar, no ambiente dedicado à leishmaniose, qualquer informação sobre os hábitos silenciosos e noturnos do inseto transmissor desta doença.
Perguntamos: como o cidadão poderá identificar o inseto transmissor da doença se o site do próprio Ministério da Saúde destaca apenas que ele é pequeno, sem informar mais detalhes?
Informar bem, promover saúde
Informações corretas, atualizadas, cientificamente embasadas e compreensíveis por todos podem exercer um papel fundamental nas práticas de autocuidado, na redução dos custos dos serviços, na prevenção de doenças e na promoção da saúde. Em um estudo de 2020 sobre a influência das informações oriundas do meio virtual sobre as pessoas, as pesquisadoras Maria Bujnowska-Fedak e Paulina Wegierek concluíram que “as informações sobre saúde e doenças obtidas na internet afetam, sem dúvida, o comportamento dos pacientes e as decisões de saúde que tomam”.
Por tudo isso, a desordem informacional e seu enfrentamento deveriam ter um lugar não apenas no próximo Simpósio Internacional de Transformação Digital no SUS. A literacia digital, a checagem dos fatos e a avaliação da qualidade da informação de saúde na Internet devem se transformar em políticas públicas do Sistema Único de Saúde.
Assim, com certeza aumentarão as chances de a saúde digital se transformar em uma realidade palpável para a maioria dos brasileiros.
*André Pereira Neto é pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (ICICT/Fiocruz).